Em Paris
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A bruxa costumava entrar pelo alçapão do teto. Ainda antes do dia despontar. As crianças dormiam. A névoa era tão serrada que o pai mal conseguia ver os degraus onde punha os pés. As coisas que tinham de acontecer, aconteciam. A casa parecia não ter portas. O pai parecia não ter olhos e olhar com os olhos da mãe. Eu fechava e abria os olhos e a parede continuava a ser uma parede. Dentro de casa ainda eram visíveis as marcas dos encantamentos, dos esconjuros e das maldições. A bruxa não gostava de brincar com as palavras. Quando estamos deitados, tudo nos parece mais alto. A mãe parecia ser feita de fumo azul. A bruxa estava no esplendor máximo da sua maldição. Tinha ido visitar o palácio da sabedoria, pois ele está de portas sempre abertas para todos. Nesse palácio continuam a construir escadas para se chegar às estrelas e a criar artes que estão para lá da virtude e do pecado. A mãe perguntou se eu tinha medo das bruxas e eu respondi que apenas tinha medo das mentiras. Ainda hoje é assim. Os olhos costumam cegar de tanto se ver. A bruxa fazia um esforço enorme para sair de dentro de si própria. A bruxa disse uma coisa intrigante: Devolvi a dádiva ao doador. E dez vezes mais forte. Depois a minha irmã riu-se imitando o som do vento nas folhagens. Por vezes parece que os deuses se esqueceram de criar alguma coisa ou de criar outra coisa qualquer em vez do Homo Sapiens. Quando se pensa nisso, parece que toda a sabedoria desaparece para dar lugar à perplexidade. Dentro dos livros tudo é possível. Até desempenhar papéis intercambiáveis de filhos de reis, donzelas de gelo, guardadoras de gansos. E visitar grutas verdes e odoríferas. E mesmo produzir efeitos fulminantes. E transformar as personagens de Shakespeare em galinhas de aviário. Mas a rusticidade pega-se a nós como uma lapa. Um ano de juventude pode ter uma centena de avatares. Ninguém acredita que a caça à raposa seja real. As bruxas aristocráticas costumam posar para as esculturas da Paz, imitando as deusas aladas com coroas de flores atravessando o céu. Tudo flutua rumo à desintegração. Houve tempos em que os escrivas viajavam pelos países à procura de histórias do Santo Graal, dormindo sobre medas de feno durante o verão e procurando abrigo nos celeiros para se resguardarem da chuva e da neve, convivendo com camponeses, vagabundos, rameiras e bruxas. E comiam queijo, pão e maçãs. E levavam numa bolsa algum dinheiro para comprar papel, lápis e canecas de vinho, cidra ou cerveja. Muitos deles traçavam itinerários dentro de si. E decoravam o nome dos rios e das montanhas. Alguns encontraram pelo caminho o génio fugindo da sua lâmpada e de Aladino. Os místicos apreciavam demorar-se nos bosques de azinheiras e nas grutas. Ou abrigar-se nas montanhas, geralmente à altura das águias, para dali observarem as constelações. Adaptavam-se rapidamente à iminência do perigo. Gostavam de viajar contra as catástrofes. A verdade é que as viagens transformam sempre quem as faz. Aprende-se a vaguear em êxtase pelos caminhos silenciosos. E apreciar os bosques que se preenchem com a luz turva do início da manhã. A relação entre a paisagem familiar e a realidade inspira uma segunda linha de pensamento. Os anjos, atraídos pela força demoníaca da gravidade, esvoaçam, transportando lírios, enquanto outros tocam violinos e alaúdes. Está para acontecer alguma desgraça.
Nós não somos gente de amaldiçoar os nossos males nem de buscar cura para eles. Nós deixamos andar. A maioria dos portugueses fica satisfeita com o pouco que a sua sorte lhes dá. O nosso coração costuma ser largo para o amor.
Nós conhecemos o mal. O nosso mal. Desconhecemos é o remédio. Queremos acreditar que a humildade é uma qualidade adequada a alguém bafejado pela sorte. Afinal, é verdade que ser motivo de inveja aconchega muito o ego.
É uma ocupação entediante sentir permanentemente ternura por alguém cuja sorte nunca muda.
É aconselhável seguir os conselhos de quem sabe e comprar produtos nas afamadas lojas de comida saudável. Com os seus almoços protegemo-nos contra a prisão de ventre. Assim como é bom aquecer o espírito com cocktails gelados.
Não são só as crianças e os adultos que perdem a linha. Mas, para grande pena nossa, os seus cães e gatos estão a seguir-lhes o exemplo.
Conhecemos os senhores pelas maneiras dos seus criados. É através da facilidade com que os criados falam connosco que sabemos o quanto somos aceites pelos senhores.
A verdade é que os empregados de agora são tão competentes que não necessitam que os patrões lhes deem ordens.
Trazemos sempre dentro de nós uma pequena, mas detestável, culpa.
Nos tempos que correm, até para dormir bem é necessário talento. Há pessoas que nos deslumbram com o seu aprumo implacável. Algumas andam tão aprumadas e apertadas que, quando olhamos para elas, somos nós que temos dificuldade em respirar.
São muitas vezes as pérolas e os diamantes os que nos fazem enveredar por maus caminhos.
É tudo uma questão de sorte.
A verdade é que nos habituámos uns aos outros. Para o bem e para o mal.
Até nas pequenas cortesias somos inábeis. É muito difícil arrancar um sorriso democrático à classe trabalhadora.
Saint-Exupéry disse que para unir o povo dá-se-lhe um castelo para construir. Para o desunir não há nada melhor do que lhe dar pão para repartir.
Todo o processo político se estabelece segundo a seguinte ordem: o povo aprova o processo político e, depois da aprovação popular, seguem-se as vantagens e os benefícios. Até que chega a altura do indulto, que é um novo processo eleitoral.
O curioso de tudo isto é que depois de uma surpresa surge sempre a surpresa seguinte. Quando uma termina surge logo outra, para a substituir.
Depois de alguma desilusão temporária, lá voltamos a assinalar no boletim de voto o quadrado certo. A verdade é que o partido pode falhar ao seu eleitor, mas o fiel eleitor é incapaz de trair o seu partido. É necessário elogiar a sua lealdade e a sua paciência.
O guião é sempre o mesmo: um bom arsenal de boas intenções e repleto de clichés filantrópicos e sentimentais. Até porque o nosso líder é sempre uma pessoa boa e generosa, um bom católico que vai à missa aos domingos, cheio de bons propósitos e um crente na bondade natural do ser humano. Está claro que os mais radicais consideram estes sujeitos como os mais perigosos.
Os programas políticos são elaborados com base, mais do que na realidade, na verdade. Mas todos sabemos que 50% daquilo tudo é pura mentira. O que verdadeiramente interessa não é o programa corresponder à verdade, mas ser convincente.
Dizemos interiormente que desta vez vamos fazer o que sempre fizemos para não complicar. Mas nada de compromissos. Para a próxima vamos ser mais exigentes. Mais cheques em branco, não. A verdade é que procuramos sempre evitar complicações inúteis. A nós ninguém nos distrai do essencial. Era o que mais faltava!
A verdade é que quando não há exigências nem compromissos, também não há aborrecimentos.
A verdade é que quando sentimos um pouco de felicidade pela nossa insistência é nos momentos em que nos separamos um pouco da realidade.
A verdade é que isso não é nem absentismo nem inatividade. É, apenas, reserva.
A verdade é que, na maioria de nós, se nota uma certa deterioração física e um secreto desamparo moral.
Ainda nos custa sair do círculo vicioso do vitimismo e de responsabilizar sempre os outros pelas nossas próprias desgraças.
Nós por cá somos muito de argumentar a realidade recorrendo à ficção.
Mas continuamos a pensar com clareza.
Está na hora de voltar a ler “La Zizanie” (Astérix – Goscinny e Uderzo).
O sol baixíssimo ilumina os pequenos vidros partidos das janelas. Eu não quero confundir o caminho com as pegadas. Roma vive empacotada dentro da nossa imaginação. Não gosto de Roma porque é inteligível. É resto de ruínas, artefactos, bustos viris, Epicuros e Brutos. E ainda o Anticristo e o próprio Cristo, levados à letra. A idiotia da religião católica baseia-se em alguém querer redimir-se subindo de joelhos os degraus das basílicas. A paisagem da inspiração tomou os caminhos em redor. Os cumes da montanhas são ápices. A sua solidão é eterna. O amor está cheio de explosões súbitas. O problema do amor é que não é um livro. É uma revelação. Uma teia. Um símbolo que nos leva a alma. Por vezes provoca vertigens de vingança. Os cupidos acordados costumam dançar com as donzelas. Mas nunca são o objeto do seu desejo. O principal problema da filosofia assenta sempre numa autobiografia exemplar. O terceiro membro da trindade é sempre aceite porque o duo inicial o julga um parvo glorioso. O louco costuma estar sempre embrulhado na sua loucura circular, que é a solidão desenhada por fronteiras sagradas. Nietzsche, tal como Zaratustra, depois de dez anos de solidão, desceu das montanhas, trazendo consigo o fogo de Prometeu que iria transformar culturas e civilizações, tal como o Espírito Santo trouxera línguas de fogo no Pentecostes. O fogo confere aos escolhidos falarem as línguas que são compreensíveis universalmente. É esse o sinal da sabedoria e da revelação. De facto, a vida é uma pista de dança para acidentes divinos. De facto, foi o livro Assim Falava Zaratustra que escreveu Nietzsche e não o contrário. E isso bem o sabia o cavalo de Turim, quando o filósofo se aproximou do seu dono, que, por ter perdido a paciência, havia começado a chicoteá-lo. Nietzsche tentou impedir a brutalidade dos golpes com o seu próprio corpo. Entretanto, desmaiou. Depois deste trágico acidente, o filósofo, que tinha criado o super-homem, nunca mais recuperou a razão, até à sua morte. Os argonautas do espírito têm a mania de se juntarem num cantinho muito respeitado lá no céu. Wagner era rico em ideias maldosas. A verdade é que Nietzsche vivia perturbado pela eletricidade das nuvens. E pelo fluxo da energia do vulcão Etna, que não deixava de rosnar, ameaçando entrar em erupção. Eram esses os seus sintomas flutuantes. Tudo o atormentava: os momentos, as mulheres e as máquinas de escrever. E as relações humanas baralhavam-no. A sua amante e inimiga Lou, uma aristocrata russa, sabia que Nietzsche era uma espécie de asceta com uma paixão por castidade e prostitutas, definindo-se, ela própria, como uma cortesã de classe alta e uma escrava da sua natureza inferior e sem restrições. A autopiedade e as suspeitas costumam crescer em espiral e levar à loucura. Provavelmente é onde existem túmulos que se dão as ressurreições. Dizem que muitas delas até fazem pingar sangue a Deus. A verdade é que o filósofo fazia questão em apunhalar as labaredas do inferno com o aparo da sua caneta. A ele não o perturbavam as relações sexuais, que andam no espírito da gente, mas o sofrimento dos cavalos quando eram espancados e não podiam defender-se. Pelo meio das suas alucinações, Zaratustra sentia o fedor adocicado da sua febre. Por alguma coisa se abatem os cavalos mancos. Por alguma coisa será.
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