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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

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29
Out20

Poema Infinito (532): Crepúsculo

João Madureira

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Nesta hora do crepúsculo as cores começam subitamente a perder a sua intensidade. A chuva deixou de cair. Lembro-me que no Natal, as luzes salpicavam a parede de cores cheias de persistência. Os sonhos eram nítidos e esgotantes. Os índios rendiam-se aos cobóis ao anoitecer, quando as nuvens começavam a arder no céu. A alquimia, sei-o agora, é um processo ao contrário. As pérolas de resina ainda são visíveis nas tábuas que entaipam agora as janelas da velha casa. As lágrimas quando secam deixam um sal finíssimo que abre ainda mais as feridas, que são as saudades e os sorrisos emoldurados dos nossos antepassados. Eu ainda ando com um saco cheio de recordações. A chuva continua a fazer o mesmo barulho. Lá fora observo círculos indecisos de luz. O tempo é como uma peneira. Com ele cresce a angústia. Já há algum tempo que deixamos de comer piedade. Engorda mais do que o chocolate. As pequenas coisas do mundo ensinam a aprender as grandes coisas. As mulheres gostavam de molhar os olhos nas águas tranquilas do rio. Tanta calma também angustia. Por isso, as mulheres costumam falar com as plantas. Vejo os meus familiares na neblina. O nevoeiro acumula-se no vale nas horas gélidas que antecipam a madrugada. A vida abarca a morte e a infinitude. Entretanto, só nos resta o desejo. O tempo parece sempre o mesmo mas é sempre outro. Um espantalho não pode gostar de pássaros. De todos os mistérios, eu escolho o da luz. A sua rapidez assusta. A verdade nem sempre é o melhor que podemos oferecer aos outros. A vida dos outros parece sempre mais interessante do que a nossa e as suas casas mais arrumadas. Os ódios dos outros são sempre mais condenáveis do que os nossos. E seus amores são sempre mais ridículos. A primavera endoidece as flores, desassossega os animais e acorda o desejo da carne. Acordas muitas vezes durante a noite. Dizes: as pessoas encantadas têm o sono leve. O chão está sedento de chuva. A água parece ter-se zangado com este local. As árvores ficaram egoístas. Há pessoas que cobrem os seus gestos com mentiras verdadeiras, desprendidas de amor. Gostam de poupar nos verbos para matar a sua culpa, que é culpada da culpa dos outros. Durante a noite, mudam o sentido da sua estupidez. Deslumbram-se sempre com aquilo que não chega, com aquilo que não são, com os dias normais. Falam da gramática, da pragmática e penduram os gerúndios à janela como se fossem camisas de popelina. As crianças já não gritam dentro desta casa. Apenas os gatos lambem as suas próprias patas. O tempo emparedou os crisântemos. Um velho inclina-se sobre a sua demência particular. Há muitos caminhos bonitos que não conduzem a lado nenhum. Apesar do corpo alongado, da boa posição dos ossos e do aquecimento dos músculos de todo o seu corpo, a melancolia atravessa a trapezista que não consegue encontrar posição para praticar o ato sexual. São as mãos embriagadas pelo tempo que costumam curvar os dias. A luz inclina-se até conseguir cair dentro da cesta das palavras inauditas. Lembro-me quando acordávamos com o corpo orvalhado. Nesse tempo, as searas pareceriam poderosas e as crianças devoravam o pão e a luz da terra. Uns ceifavam o trigo e outros a água. As pessoas, aos poucos, vão perdendo substância, tornando-se o reflexo do seu reflexo. Há homens que com a fome são capazes de comer a sua própria vontade.

26
Out20

513 - Pérolas e Diamantes: Vola, colomba bianca, vola...

João Madureira

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Os portugueses continuam a comer de mais. O que, como nos ensina a História lusa, era um vício apenas ao alcance dos fidalgos de província, fidalgos esses que se distraíam a comer e a procriar.

 

Nesse tempo caçavam-se os coelhos à mocada. Ia-se de noite com os candeios pelas bermas a roçar o mato. Então os coelhos, tontos, saíam das suas tocas. Depois era dar neles com toda a força e agilidade, disparando-lhes rajadas de bordoadas. No final, era só empilhá-los e ordenar aos criados que os levassem para casa. A verdade é que a coelhada dava cabo das hortaliças e comia a fruta que caía das árvores.

 

Nessa época, as noites aristocráticas eram estreladas e pontilhadas de entusiasmo. Os mais fidalgos dos fidalgos, para espanto e admiração do povo, eram capazes de dominar a populaça mais arrivista, fazendo zunir varapaus e fueiros. A fidalguia era muito lesta a aguentar os embates e a desembaraçar-se de problemas.

 

Os cavaleiros andavam quase sempre metidos com bruxas e as suas esposas com os escudeiros ou os pajens.

 

Tanto os cavaleiros, como as suas amadas damas, eram muito bons nos monólogos. Gostavam de caminhar nos seus jardins de forma abstrata.

 

A verdade é que os próprios rios emitiam sinais de amor. Por vezes, os fidalgos levavam para as praias papagaios de papel e corriam com eles dando-lhes a guita adequada para poderem flutuar e alegrarem os céus. Dizem que se divertiam imenso.

 

Os tais fidalgos dedicavam-se não só à caça, mas também à pesca. E ouviam muita missa.

 

Por vezes apareciam as pestes como castigos divinos. E o povo morria asfixiado, ou com gripes de catarro negro. Era uma tragédia. Os que sobreviviam, acabavam por emigrar. Era difícil resistir a tanta devastação.

 

Dizem que nesse tempo as árvores descansavam durante a noite, os peixes brincavam ao eixo e os pássaros pousados nos ramos dos pinheiros apanhavam apaixonantes insónias de luar. Também os poetas elaboravam versos que faziam brotar o amor dentro das pessoas nobres como se fossem fontes de água cristalina e pura.

 

A fidalguia de antanho eliminava os problemas deixando de se preocupar com o que de importante se passava no mundo. Viviam nos seus domínios, convencidos da sua genialidade, pescando trutas, caçando perdizes e rolas, ou conquistando fêmeas à moda ainda mais antiga.

 

Os fidalgos mais ousados, apesar de terem tudo e de namorarem com as primas, deixavam-se tentar pela ideia de irem romper mundo, andar de terra em terra, montados no seu ginete, à procura da melhor caça.

 

Todos sabemos que na nossa terra, o bom é ser-se estrangeiro.

 

Era normal os fidalgos apaixonarem-se pelas fidalgas e digladiarem-se na procura da felicidade que cada um trazia dentro de si.

 

Também havia bailes nos jardins onde os recém-chegados das terras do Prestes João contavam novas histórias de aventuras.

 

A verdade é que já naquela altura até os bobos eram importados. No século XVIII, por exemplo, Portugal importou cerca de duzentos. Os mais apreciados eram os bobos italianos por deleitarem a assistência com as suas árias napolitanas.

 

Entre nós ficou célebre o bobo Bórbóla por, nas óperas bufas, entoar a quatro vozes sem desafinar nas notas mais agudas. Rezam as crónicas que não havia burricada, piquenique, festa veneziana ou arraial minhoto a que não comparecesse.

 

A sua dona Dona Mafalda, mesmo relutante, devido a ser tão requisitado, acabava sempre por cedê-lo quando se tratava de festas de caridade para a Misericórdia de Viana do Castelo ou para o hospício de surdos-mudos de Barcelos. Cantava coisas tão bonitas como: “Láralá, láralá. Láralá. Laráralá   larálálá. Tailalai lará.” E, já no meio dos buxos do Jardim dos Buxos: “Vola, colomba bianca vola alalá. Vola, colomba bianca, vola.”

 

Algumas fidalgas, ou mesmo princesas, por causa de desgostos de amor, comiam meia dúzia de arrebenta-bois e era uma vez. Naquela altura era tudo muito biológico.

 

Por vezes as paixonetas avinagravam, como o vinho exposto ao ar, mas os amantes fidalgos depressa elaboravam novas lamechices e iam enternurar-se para trás dos salgueiros. A maioria dos bruxedos acabava em bem.

 

Claro que as princesas prometidas por vezes viam-se rejeitadas por processos de anulação de casamentos, onde lhes era feito um exame à sua virgindade por quatro médicos, quase sempre movidos pela curiosidade. Muitas acabavam pervertidas.

22
Out20

Poema Infinito (531): A aprendizagem da loucura

João Madureira

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Quem vive no norte consegue sentir a incorreção do sol. No ano de 1916, chegaram a juntar-se em Verdun: bois, vacas, cães, pombos, canários, burros, mulas e duzentos mil cavalos. Os ratos e as moscas eram enormes, não lhes faltava que comer. Fixo o olhar nos pirilampos, esses pequenos visitantes que parecem vir de outra dimensão. O sofrimento torna-nos mais picturais porque começamos a suportar uma perda de luz no rosto. Há gente profissionalizada na penitência do seu pesar. D. Quixote, falando da sua namorada imaginária Dulcineia, disse a Sancho Pança que a pintava na sua fantasia, segundo os seus desejos. Penso no homem que, pensando ser um Deus desocupado, passeou sob os choupos dourados pelo sol ao longo das margens do grandioso rio Pó, depois de escrever O Anticristo. Foi na altura em que as vinhas que rodeavam Turim tinham adquirido o castanho que, dizem os especialistas, fazem explodir a doçura na boca. A Nietzsche aconteceu-lhe o mesmo com as palavras dentro da sua. Tinha amadurecido em plenitude. Por fim, estava tudo em ordem. O tempo era abundante. O génio fazia quarenta e quatro anos e queria contar toda a história. O mundo estava autorizado a testemunhar a sua transformação. Nietzsche, fazendo de Pilatos, apresentou Ecce Homo flagelado e a sangrar, amarrado e coroado com espinhos, para ser julgado pelo povo, que então condenou o Deus vivo à morte por crucificação. Ao longo do livro, o filósofo, à beira da loucura, apresentou-se em competição com Cristo. Talvez como um segundo Cristo, outro Deus vivo condenado à morte. No caso do filósofo, por obscurantismo, desatenção e falta de interesse pelo seu pensamento. O mestre não era um homem, era dinamite. Era o seu próprio destino. Era uma fatalidade. Dionísio combatia o Crucificado. Quando terminou o livro, o inverno ia a caminho de Turim e as montanhas já tinham enfiadas as perucas brancas que se destacavam no céu desbotado. O seu olhar avançava pela luz e pela sombra estroboscópica das longas arcadas de pedra da capital do Piemonte. Tal como João Batista, o filósofo alemão, estava a abrir o caminho. O livro era anunciativo. “Sou o teu labirinto”, diz Nietzsche por Dionísio, o Deus relâmpago, e pela sua amante Ariadne. Nessa altura, o louco filósofo alemão encontrou um dramaturgo que seguia o mesmo caminho: Strindberg, que vivia no meio de uma catástrofe provocada pela sua primeira mulher, que ele adorava, ambos enfiados na ala de um castelo decapitado, rodeado de pavões e cães ferozes, todos dominados por uma autoproclamada condessa e pelo seu companheiro, que não passava de um chantagista, alquimista, mágico e ladrão. O inferno, muitas vezes, está no meio de nós. Nietzsche começou então a perder o controlo do seu rosto: fazia caretas, chorava incontroladamente, sorria. Era capaz de estar na via pública, de pé, a  sorrir durante meia hora. Durante quatro dias, viu-se incapacitado de dar ao seu rosto uma expressão séria, concluindo daí que alguém que atinge um tal estado deve estar pronto para se tornar o salvador do mundo. Começou então a sofrer por causa das suas botas rotas, mas deixou de se preocupar com isso porque se apercebeu que estava condenado a divertir a próxima eternidade com más piadas. Na manhã de 3 de janeiro de 1889, ao sair à rua, observou um cocheiro a bater impiedosamente no seu cavalo. Nietzsche foi-se abaixo. Dominado pela compaixão, e a soluçar devido ao espetáculo, abraçou-se protetoramente ao pescoço do cavalo e desfaleceu. O filósofo do talvez nunca mais recuperou a razão.

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