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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

30
Nov20

518 - Pérolas e Diamantes: A má consciência

João Madureira

Apresentação3-2.jpg

 

 

A distopia atual apresenta-se-nos como uma espécie de liberalismo a caminho da loucura. Há demasiado ócio.

 

A realidade não é só aquilo que acontece aos outros. Torna-se necessário desconfiar das lindas palavras proferidas pelos papagaios altruístas.

 

Apesar de não o verem, muitos portugueses continuam a ouvir ao longe os cascos do corcel do nosso infatigável rei encoberto D. Sebastião.

 

Depois de quase meio século de vida, a nossa democracia parece estagnada. Imaginámos um país diferente e uma vida diferente, mas o país, e a vida da maioria dos portugueses, continua a ser cinzenta. Respondemos à esperança com os socos da realidade.

 

Temos de convir que a má consciência não é a consciência democrática. Nem pouco mais ou menos. O problema é termos todos de a pagar, com língua de palmo, por causa dos maus democratas, que, por incrível que possa parecer, são os que mais a invocam (em vão), ou dizem defendê-la. A tal putativa democracia.

 

Nós não temos má consciência do passado, nem pretendemos esquecer a velha memória das cumplicidades. Apenas pretendemos mudar de vida.

 

No meio de todo este processo, não é o povo quem tem má consciência. Mas é ele quem, invariavelmente, tem de pagar a conta dos que cometem erros em seu nome. Ou invocando-o sempre em vão. Sacrificamo-nos todos em benefício de alguns.

 

As tretas de ontem, são as penas de hoje. E serão os sacrifícios de amanhã.

 

Mas a pós-modernidade está bem presente no nosso dia a dia, tanto quando cuidamos dos cães e dos gatos, como quando alinhamos os dentes nas clínicas da especialidade para podermos sorrir com insistência e conseguirmos mastigar os vegetais com o necessário rigor dietético.

 

Tudo tem a harmonia de um carrossel. E a mesma lógica. E o mesmo sentido de diversão.

 

A verdade é que somos bons a cozinhar bacalhau e a ver navios.

 

Ensinaram-nos que o nosso destino é viver entre a felicidade e a indiferença. A ritmar as atitudes, sem nos entusiasmarmos.

 

Nós gostamos que nos contem a história de D’Artagnan, mas a verdadeira.

 

Nós gostamos de festejar o valor da poesia, da nossa raça, do nosso partido, do nosso concelho, e de nomear comissões e subcomissões para se reunirem nos dias pares de cada mês para deliberarem sobre as respetivas comemorações.

 

E decidimos dar sempre um cunho e um significado que testemunhe o alto valor intelectual do povo. Sobra-nos em altruísmo, o que nos falta em criatividade. Mas não se pode ter tudo.

 

Gostamos de festivais poéticos, culturais, musicais e, antigamente, até dos taurinos. Mas agora touros nem vê-los, quanto mais comê-los.

 

Nós gostamos muito de ajudar a História e até as suas personagens a movimentarem-se à vontade. E, se nos deixassem, enfiávamos meio Portugal no Panteão e nos Jerónimos.

 

Claro que muitas vezes gostamos de pensar no almoço. Nós gostamos muito de almoçar de graça nos dias festivos. Mas também todos sabemos que não há almoços grátis.

 

Antigamente, nesses dias, acendiam-se os fachos da lírica eterna que nos possuía. Agora fazem-se sessões pirotécnicas de fogo preso que nos enchem de satisfação e orgulho.

 

Apreciamos fechar com estrondo todo o tipo de comemorações.

 

Sem fogo, todos sabemos, a festa nem parece festa. 

 

E temos sempre os bombeiros a apoiar tudo.

 

Todos os portugueses sabem que o amor é o que conta na vida. O resto são tretas. Por isso todos amamos com força. E isso é o que interessa.

 

O que seria de nós sem o amor, como muito bem diz o senhor presidente da República, que, mais do que um comentador, é um vidente. Ao senhor presidente custa-lhe muito pouco adivinhar o futuro. Provavelmente aprendeu com a Blimunda a ver através dos corpos opacos.

 

Para ele, todos os empreendimentos devem ser, essencialmente, amorosos. Por alguma razão lhe chamam o presidente dos afetos. E o epíteto está-lhe muito bem empregue.

 

Nós somos muito bons a esperar pelas comemorações. E quando elas se transformam em feriados, é ouro sobre azul. Mas somos ainda melhores a falar. A falar dos outros e do tempo. Dentro de cada um de nós estagia um ministro das finanças e um meteorologista. 

 

Pouco nos interessa o presente. Nós gostamos muito de vegetar nas glórias do passado.

 

Antigamente é que era. Já nada muda como soía.

26
Nov20

Poema Infinito (536): A distância do tempo

João Madureira

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Durante a noite caiu uma geada fraca nas montanhas que os cascos dos animais fazem estalar ao trepar por cima de folhas, galhos e plantas geladas. A saudade traz-nos os mortos que rodeiam a lareira e se sentam ao nosso lume. Por isso fiz um fogo que nos aquece a todos, como me ensinou o pai. A velha mesa, onde ceávamos, ficou sozinha no meio da cozinha. Quatro vivos e tantos mortos à nossa volta. No meio do silêncio, ouve-se o crepitar das pinhas e das vides da Ribeira. Sentimos o silêncio húmido a isolar-nos do mundo. Ainda me lembro do velho lagar e do cheiro a mosto. E das primeiras chuvas de primavera. E das noites que pareciam não ter fim, desabando em cima de nós como se fossem fantasmas. A voz da avó era sempre a primeira a ser escutada nesta casa. As chamas da fogueira lambiam as negras pedras da parede, iluminando os potes de ferro e a madeira lustrosa do escano. A avó costumava contar-me coisas enquanto fazia o caldo. Lá fora cheira a folhas apodrecidas. As sombras estão mais frias à espera das outras que estão a gelar. O pio das aves anuncia mais frio. A chuva cai. Chegamo-nos mais para a frente. Apaziguamos a verdade. A fogueira aquece-nos a todos, onde ardem toros de carvalho duro como o ferro que dão calor permanente e difundem uma luz mortiça, rachas de pinheiro que se consomem de forma flamejante enquanto produzem pequenos estalidos. Também as vides, que resultaram da poda das vinhas, se vão transformando em cinza. O meu filho mais novo atira pinhas ao lume. Gosta sempre de estar a brincar. Dizem-me que herdei do avô a paixão pelas árvores e pela água. A mãe e a avó agora parecem irmãs, trespassadas pela mesma ternura. Sinto as suas mãos sobre as minhas. Sinto a pequena alegria e a pequena dor de estar vivo. A distância é maior do que o tempo. O espaço começa a contrair-se. E a saudade a expandir-se. Cada um constrói o seu próprio universo. Isto dura tão pouco. Por isso parece inútil. A nossa casa fica junto ao rio. Em frente estão os montes solitários. Por vezes ouvem-se as árvores. A sua força benigna toca-nos e penetra-nos. Foram o avô e alguns pedreiros que racharam a alvenaria para edificarem a casa. Também calcetaram a rua íngreme e lajearam a eira. Eram mestres em cortar as fragas e afeiçoá-las a pico e a cinzel. Gostavam de cantar enquanto trabalhavam. Nessa altura batiam-se os manguais nas eiras e lavrava-se a terra com o arado puxado pelas juntas de vacas. A solidão agora é tremenda. Apenas a serra e as estrelas continuam resignadas no seu lugar. Pelo chão andam os restos do inverno. Passávamos as suas noites infinitas, feitas de chuva e névoa, à beira do lume. O avô costumava contar histórias. Depois todos ficávamos em silêncio. A minha alma criou-se nesse mutismo. A avó aquecia-nos por dentro com o seu olhar. As suas mãos transmitiam o caráter sagrado ao amassar do pão. A sua bondade não nascia do esforço. Era inata. Passava a vida a pensar nos seus. O tronco continua a arder no lume. De fora vem o odor da floresta e da água dos córregos que faz aumentar o silêncio húmido.  A velha mesa da consoada ficou quase despovoada. Parece que tudo isso apenas fez parte de um sonho. Os fantasmas começam a despedir-se de nós. Conservo em mim o caráter eterno das árvores. A avó. O avô. A mãe. E o pai. Essas árvores que arderam antes de tempo.

23
Nov20

517 - Pérolas e Diamantes: Segunda visão

João Madureira

Apresentação3-2.jpg

 

 

 

Apesar de enxergar mal, apercebo-me de que um pica peixe-azul desperta da observação e esvoaça em voos habilidosos de mergulho para papar insetos cansados de andar à roda. Poucos se dão conta deste pormenor. É necessário ter uma segunda visão.

 

Também a democracia é assim: o que está à vista, à vista está . O resto não se vê por ser  segredo de Estado. Por vezes o patético cobre as pedras da calçada.

 

Apenas o interior de uma linguagem pode ajudar a decifrar um sistema.

 

O problema do poder reside sempre nos ciúmes dos descontentes.

 

O problema do sistema democrático é que atua sempre entre o compromisso e a contemporização, entre a concessão e a tolerância, entre o confronto das ideias e das personalidades. O que, na maioria das vezes, torna os seus protagonista incapazes de decidir. É necessário garantir os empregos, os negócios e os lugares de direção. E a rotina da papelada consome quase a totalidade do tempo.

 

É bonito amar a democracia. Só se respeita aquilo que se ama. O amor é uma coisa bela. Só que praticá-lo implica troca de fluidos e alguma sujidade.

 

O altruísmo e a generosidade costumam sair de muita raiva acumulada. Também as rainhas de antigamente costumavam ter junto de si criaturas disformes a quem dedicavam um género estranho de proteção apaixonada. Os seus filhos eram criados por quem sabia: as amas.

 

Uma coisa nos afasta dos idealistas: a sua incapacidade para organizar o pensamento. Todo o bom político sabe que em política nada do que é essencial é essencial. Tudo são rodeios e compromissos no meio de coisa nenhuma.

 

Mas... mas... mas... sim, cheguei à conclusão, tal como Nietzsche, de que há sempre uma nova oportunidade de se provar que “todas as experiências são úteis, todos os dias santos e todas as pessoas divinas!” Está bom de ver que o filósofo alemão andava sob a influência do ópio. Eu encontro-me apenas sob o efeito catártico de um vírus confinador.

 

A maioria dos portugueses acabou de sair da Idade Média às cambalhotas. É uma espécie de nova geração de urbanizados.

 

Nós somos supersticiosos até na desconfiança. Nem naquilo que vemos acreditamos. Gostamos mais de acreditar em milagres. E na Nossa Senhora de Fátima. E nos três pastorinhos.

 

O bom povo português por vezes parece que cresce, para depois nos dar a impressão de que regride, para depois voltar a crescer e a regredir novamente. O seu progresso é circular. Parece bonito, mas leva-nos sempre ao mesmo lugar.

 

A conciliação costuma turbar a clareza dos objetivos. E nós somos conciliadores. Agustina Bessa Luís escreveu em Os Meninos de Ouro que “o bom caráter do povo português provém da sua ignorância”. Mas é a instrução que permite considerar os detalhes, pois possibilita dissimular sempre alguma coisa, protegendo-nos nas ocasiões mais difíceis. É a insensatez o que nos leva à moderação.

 

Nós dizemos ter orgulho na humildade, como se fôssemos membros da nobreza. Mas não é verdade. Andamos sempre aos mandiletes de uns e de outros, transportando recados e recomendações. Tendo a nossa virtude própria, gostamos mais de aderir e elogiar a dos outros.

 

Mais importante do que acreditar naquilo que alguém nos diz é acreditar nessa pessoa.

 

A inspiração é inseparável do espírito do lugar. A inspiração é superstição. E encarnação. É o conceito perfeito de confidência.

 

A invisibilidade é uma coisa visível. Os pensamentos ou brilham ou se apagam. São como relâmpagos. Não existem por necessidade. Não se podem escolher.

 

As fábulas, por muito boas que sejam, não podem fazer-nos acreditar que é legítimo trair-nos a nós próprios. Não é preciso acreditar nas doenças para que elas sejam uma realidade que nos mata.

 

O ressentimento é uma lealdade despropositada.

 

Devemos condenar a inveja, o ciúme, a vingança e o castigo.

 

Os fanáticos do proselitismo, dos passeios ao ar livre, do vegetarianismo, das condições superlativas da ginástica e da abolição do álcool degeneram sempre em totalitários fasciocomunistas.

 

Louvados sejam aqueles que conseguem sentir o vento redentor da gravidade terrena.

 

Nunca estamos isentos de preconceitos. E os que se julgam libertos deles acabam por cair noutros novos.

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