Feira dos Santos - Chaves Sentimental
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Parece que o passado já não cabe em lado nenhum. Não tem sítio nem lugar para ficar. Parece que já ninguém o quer. É como uma máscara descartável que se deita fora quando já não nos serve. Ou como um sem-abrigo de quem temos pena.
Parece que já não sabemos falar sem nos magoarmos. Já não sabemos o que devemos fazer com a nossa história. Talvez escrever outra.
Os anjos modernos perderam as asas.
Parece que a nossa história nos derrota. Mas o que verdadeiramente nos derrota é o silêncio.
A nossa história, por vezes, foi corajosa. E outras foi cobarde. Todos somos assim. Isso não nos deve nem orgulhar, nem envergonhar. Faz parte da vida.
Os pelos também fazem parte da pele.
Há sempre um meio caminho entre aquilo que temos de preservar da nossa herança histórica e o futuro para onde temos de progredir. Não devemos estar demasiado agarrados ao passado, mas também não o devemos desrespeitar.
A vida é feita de passado, presente e futuro.
A minha avó contava que nas burricadas o mais seguro era montar burros de muita qualidade.
Nesse tempo, os burros de qualidade viviam entre Minho e Trás-os-Montes. Eram os que melhor carregavam. Já os de Lisboa não eram tão prestáveis. Tiveram, nesse caso, de os importar daqui. Usá-los na carga era uma medida de longo alcance.
O ginete do ódio carrega sempre ao lombo a invisível personagem que desencadeia as tragédias.
A verdade é que quando conquistámos Guimarães, isso foi um ato de força do nosso primeiro rei. D. Afonso lá tinha as suas razões para se tornar independente. Tinha razões e génio. Dizem que em dias de batalha não era bom estar perto dele. Deitava fumo pela barba. Quando se habituou às conquistas, afirmam que era um espetáculo vê-lo saltar os fossos mais fundos dos castelos. Aprendeu desde novo a resolver os problemas pela espada. Gostava, sobretudo, de correr à desfilada por essas terras fora atrás dos árabes. Era bravo no investir. Mas também era manhoso. Possuía a grande qualidade de perdoar e de lançar das barbacãs os menores e as mulheres casadas. As solteiras dava-as aos soldados, como passatempo.
A verdade é que é pesado arcar com tanta recordação do passado. Nem que fôssemos todos fidalgos!
Apesar das más línguas, a corte da altura era muito rigorosa em termos morais. Para ter alguns momentos de prazer, aquela gente passava muita canseira. Por vezes faziam belas sestas. Os reis gostavam de se deitar com as primas donzelas. Dizem que ambos dormiam muito bem. E quando o rei, por idoso, não conseguia dormir, punha-se a observar quem dormia a seu lado. O resto é poesia e trovas de amor.
Em Lisboa não sei o que por lá havia. Mas por estas terras a hortaliça era da mais viçosa. Excelentes nabiças, milho do melhor. E pencas tronchudas. E nabos de quilo. Os brócolos brancos eram dos mais deliciosos que se podiam encontrar. O problema é que os nossos antepassados se cansavam de todos os dias olharem uns para os outros.
Os burros, e os seus donos, tinham o tal costume bem português de escutar a conversa dos outros. Arregalavam os olhos, punham as orelhas ao alto, não andavam nem para a frente nem para trás e escutavam tudo. O mais normal naqueles tempos era morrer-se de moléstia ou a fio de espada. Ainda se sentia a Criação à solta. Os deuses da flora ainda habitavam em refúgios secretos e o reino era um sonho desmedido. Por cima do casario das povoações, o normal era o fumo dorminhoco sair dos telhados escurecidos. Parecia que o colmo estava sempre a arder em fogo lento.
Na aparência, todos se davam como anjos.
Também se espargiram rios de água-benta pelas nucas e cabeças da criançada.
Espalhados por esse norte fora, os padres deixavam sobrinhos e afilhados como se fossem láparos. E todos robustos de corpo e alma. Sendo nos hábitos e nas parecenças a mais fiel imagem das tentações dos senhores abades.
A verdade é que os invernos eram muito frios, a vida não tinha distrações, as mulheres procuravam bons conselhos e, no final, a carne fraquejava. Nada que uma boa confissão não perdoasse de forma terna e humilde.
A verdade é que estas simples invocações nos trazem muitas saudades.
Todos sabemos que as lajes dos nossos monumentos nos falam das lendas de outrora.
Os pecados dos padres contavam pela metade. Eram os deles e os dos bobos.
Nesta terra somos todos primos.
Bons tempos os de outrora.
Os espaços da noite produziram um vácuo no amanhecer. O sino da igreja bateu o meio-dia, fazendo dispersar um bando de aves que levantaram voo do campanário e debandaram contra o azul do céu. Preparo-me para apreciar a feroz indiferença da tempestade que se avizinha. A paisagem ficou aberta. A lembrança do pai vai-se apagando nos meus olhos. A avó distinguia as estações do ano pela intensidade de luz que entrava pela janela virada a poente, ao fim da tarde. Ela prolongava as conversas pensando prolongar com elas também a vida. Ela gostava das palavras, mas temia gastá-las sem proveito. A mãe teimava em aceitar as opiniões dos outros. Já eu discutia as certezas de todos. E o pai, quando deixou de respirar o ar monocórdico da juventude, passou a encher os pulmões com o fumo dos cigarros, apesar da mãe lhe afagar a cara e o abraçar com carinho. Não é por intensificar o passado e o futuro, que o presente deixa de existir. As memórias são sempre resíduos de sensações. As árvores parecem levantar-se da terra. As janelas abertas deixam respirar a casa. Sente-se a frescura da serra depois da chuva. Tu dizes: anda, vamos, antes que seja tarde. Custa-me deixar os meus deuses domésticos e os movimentos breves da natureza e as gotas noturnas de orvalho e a imagem perene dos choupos que bebem junto ao rio. O dia desaparecerá junto à curva do outeiro, quando nós formos embora. Tudo se transformará em enigma. E depois em decifração. As aves gritam junto à igreja. Fazem lembrar almas antigas, repletas de incenso. Nascem flores estranhas pelos campos. Por vezes, corre e espalha-se um fogo feroz pelas montanhas, alucinando o mundo, queimando corpos e almas como se fosse o tal inferno de Dante. O horror torna-se demasiado nítido. Por isso, quase ninguém acredita nele. Durante muitos dias pendurou-se nas serranias calcinadas um nevoeiro tão denso que todos pensaram ser um castigo divino. Aquele mês deixou de existir, ficaram apenas os dias ímpares, as roseiras bravas, os jardins em volta, as estrelas errantes e as coisas tristes. Ao longe, as portas das casas começaram a morrer. E também os alpendres. Até o sol se perdeu no mar. Os caminhos deixaram de ter fim. O vento dispersou a bruma. Os longos poentes escrevem-se em setembro, quando os olhares andam de norte para sul, reunindo a claridade. É tempo de começar a selecionar os deuses domésticos. São eles que nos escolhem as melhores gotas noturnas, que invocam o orvalho, que descobrem as árvores, que coagulam a chuva verde e que distinguem as várias horas da tarde. Costumam carregar às costas muita das horas do dia sem perderem a paciência. São eles que ligam e desligam os sonhos e rezam por nós as orações decoradas. São também os deuses domésticos que dão voz aos anjos mudos. São ainda eles os quem medem os ângulos das tragédias. Cheguei a habitar num castelo rodeado de vento e de pássaros e de crepúsculos e de donzelas vestidas de girassóis e de pronomes. A rainha tinha um sorriso oblíquo e dizia recear o paraíso. Começaram então a varejar as estrelas nas terras ao redor. Depois parti num barco feito de ondas. Navegava devagar, à procura de destino. Quando chegava às ilhas encantadas, era sempre noite. A claridade passou a ser uma incerteza que ainda hoje se mantém. O dia apareceu na maré cheia.
Como constatou Nuno Brederode dos Santos: no poder não se levita.
Ter mau feitio é muito diferente de ter maus propósitos.
Passamos da descodificação genética à codificação genérica.
Entre nós e a realidade estão os nossos sentimentos. As revoluções são ilusões que acabam mal.
Os cavalos também se abatem, mas são incapazes de pisar um homem morto.
A identificação e os estereótipos dos vilões continuam a ser os mesmos: chineses e alemães.
Connosco vai ser diferente... connosco vai ser diferente... connosco vai ser diferente...
As lengalengas são como máscaras.
A oeste nada de novo.
A verdade é que com este novo tipo de direita e esquerda, muito de nós se sentem cada vez mais a leste da política.
Os cisnes são muito narcisistas, gostam de olhar para o seu reflexo nas águas calmas dos lagos, enquanto espiam de lado o cisne negro que, solidário, desliza no espelho de água.
As almas mais sensíveis também costumam ser as mais maçadoras. Os beijos trocados por necessidade são sempre amargos.
Há pessoas que se drogam com dinheiro, outras fazem-no com a piedade, mas as mais crentes inalam o aborrecimento como se fosse incenso.
É um problema sério quando o idealismo se transforma num vício. Depois só resta a desilusão.
O conservadorismo é um preconceito prático para as elites e um aforismo estúpido para os outros que dizem professá-lo.
Mas uma coisa sabemos: quanto mais Hyde prevarica, mais a consciência de Jekyll se purifica. O que não sabemos é se tudo vai dar ao mesmo. Ou, se calhar, sabemos, mas pouco nos importa.
Todos nos purificamos, e conformamos, com as normas da conveniência.
Os recalcamentos surgem dos desejos proibidos.
Sabemos que a consciência da complementaridade não nos pode impedir a rutura. E também não nos pode abjurar a reconciliação.
Reivindicar princípios não é o mesmo que possuí-los.
As pessoas que se preocupam muito com a ordem externa é porque internamente estão em desordem.
Nós temos de distinguir os políticos das pop-star, apesar da plebe democrática gostar muito de ambos. A sua exigência é o melodrama.
A política está farta de produtos partidários. Estou em crer que, fora disso, muitos desses militantes não valeria coisíssima nenhuma. E ainda valem menos os pequenos conspiradores e as pequenas seitas onde se movimentam.
As escolas partidárias ensinam aquilo que sabem: a intriga, o boato, o segredo e o truque. Pensar pela própria cabeça é proibido. Só causa sarilhos.
Por muito que nos custe, o pensamento cínico tem o poder de antecipar os factos. Até porque o povo são sempre os outros.
Quanto mais as coisas parecem mudar, mais se assemelham ao que sempre foram.
Por brilhar, o sol morre mais um pouco todos os dias. Bem assim como as pop-stars da política, que atualmente incorporam, por direito próprio, o triplo papel de sacerdotes, feiticeiros e curandeiros da tribo. Tal como os atores, também elas fingem ser outra pessoa. Ganhar a vida custa a todos.
Todos entendemos que não são as palavras que nos levam ao socialismo, a ser assim já estaríamos lá há algumas décadas. Fartamo-nos é de caminhar nessa direção, apoiados na Constituição, mas parece que esse é um caminho infinito, como o poema de um nosso amigo.
Afinal esse caminho não passa de um pseudónimo enganoso e, até, abusivo. Não é por andar mais ou menos depressa que se chega ao fim de um caminho que não tem fim. Afinal o caminho para o socialismo, e o próprio socialismo, fazem parte do mesmo paradoxo inatingível.
Como diz um nosso amigo, quem não quer ser socialista não lhe deve vestir a pele. Até porque o rebanho é cada vez maior. E em tempo de gado gordo até os donos se entusiasmam com o balir satisfeito das suas ovelhas. Mas o pobre também costuma desconfiar quando a esmola é grande. Grande para o pobre, não para o esmolador.
A terminar deixo-vos uma adivinha sobre quem terá sido o digníssimo chefe de estado português que escreveu este naco de prosa que, passados alguns anos, ainda é bem capaz de nos embasbacar a todos. Pista: estava a tentar dizer algo de substantivo sobre os jogos olímpicos: “Se a democracia grega radica no ‘logos’, na razão política e no debate público entre os cidadãos e os seus representantes, já a matriz da civilização romana repousa na regra ou ‘jus’.”
Por isso é que o socialismo continua no meio da ponte, como o louco.
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