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Mudar de passeio
O José não gosta nada de mudar de passeio. Diz que tem medo de atravessar a rua. Que lhe desestabiliza o sistema nervoso e lhe mexe com a libido. Ele tem a libido um pouco estragada. Coisas da juventude. O José foi à guerra e quem vai à guerra dá e leva. E ele levou mais do que deu. Por vezes fica com os olhos turvos e começa a chorar. Nesses dias não sai de casa. Nem do quarto. Nem da cama. Desenha fios de metal e aranhas muito coloridas. Pode passar assim dias e dias alimentando-se apenas de iogurtes naturais e fruta cristalizada. Também lê revistas científicas, mas lê os artigos do fim para o princípio. Depois traduz alguns para o árabe e no fim rasga-os. Sabe tocar piano, andar de bicicleta e assobiar com os dedos. Toca piano só a partir das cinco da manhã e apenas até ao amanhecer. Nunca o faz fora deste intervalo de tempo. Tira muitas fotografias às suas mãos e depois amplia-as muitíssimo para observar os poros e os pelos da epiderme. Nos dias de chuva mia muito. Nos dias de sol muge como os bois do barroso. Na sua quinta da aldeia tem uma zebra manca que comprou a um circo. Escova-a todas as semanas e passeia-a pela aldeia. Também toca muito bem cítara. Mas os amigos não gostam deste tipo de música. Coisa que o irrita muitíssimo e o faz estalar os dedos. Costuma sair nas noites de geada e passear um galo de briga cego que comprou a um mexicano de férias em Espanha. Costuma dar-lhe pipocas picantes e levá-lo ao Miradouro de S. Lourenço para lhe mostrar a cidade de C. Nesses dias o galo canta que se farta e ele acompanha-o à guitarra. O José é muito habilidoso com as mãos. Aprendeu a fazer croché e confeciona lindos carapuços para árabes e judeus. Escreve-me cartas enormes com letras desenhadas a rigor e isto vivendo nós apenas a cem metros um do outro. E envia-mas sempre em correio azul. São cartas que falam do seu amor pelos passeios, pelos candeeiros, pelos bancos de granito, pela poesia chinesa antiga, pelas flores da urze e da carqueja, pelo musgo dos muros e pelos reflexos do céu nas águas do T. Ontem compôs uma música muito bonita para o seu galo cego.
Hoje tocou-a para mim. Eu até chorei. Depois fomos os dois, sempre pelo mesmo passeio, até ao rio, descalçámo-nos e molhámos os pés nas suas águas tranquilas.
Então ele tirou um grilo do bolso e pediu-lhe que cantasse uma ária de Mozart. O grilo não se fez rogado e deslumbrou todos os presentes. O mundo é, por vezes, um lugar estranho, mas encantador.
O Wally já não sabe onde está
Eu sou o Wally e estou cada vez mais velho e míope. Antigamente escondia-me no meio da multidão à espera que me encontrassem. Sabia sempre onde estava. Tinha grande sentido de orientação e sabia escolher os melhores sítios para me misturar com a gente e assim passar despercebido. Posso dizer que gostava da minha profissão. Sempre gostei, aliás. Sempre gostei de me misturar com as pessoas, de passear incógnito no meio da multidão, apreciando o andar das mulheres, os sorrisos das crianças ou os gestos magnânimos dos homens. Também via passar os comboios na companhia do meu amigo George Simenon. Sempre tive um pequeno fascínio por comboios. Especialmente pelos antigos, ainda movidos a vapor. Viajava muito de um lado para o outro. E sempre de comboio. No desempenho da minha profissão escolhia sempre lugares com muitas pessoas, tais como praças públicas, mercados, feiras, parques temáticos, jardins zoológicos, festas, praias e estâncias balneares. Depois elegia um sítio muito discreto, a meu gosto, e ali me deixava ficar até os desenhadores concluírem o seu diligente trabalho de esboçar tudo aquilo com muito pormenor. Para me identificarem faziam-me vestir uma camisa às riscas brancas e vermelhas, colocavam-me na cabeça um gorro do mesmo género e uns ridículos óculos redondos pretos sem lentes. Eu por ali ficava algumas horas à espera da conclusão dos trabalhos dos artistas. Naqueles longos espaços de tempo em que permanecia quieto lia muito, sobretudo romances russos. Sou um amante da literatura russa. Aprecio a loucura dos seus amores impossíveis e as dúvidas existenciais dos seus heróis. E amo profundamente as páginas que descrevem as estepes russas, a imensidão dos bosques de bétulas e a neve perpétua. Acabo de me reformar. E fi-lo enquanto era tempo. Reformei-me porque me cansei de que andassem sempre a procurar-me. Agora sou eu quem procuro as pessoas. O estranho é que antigamente sabia sempre onde estava. Agora nunca me descubro. Nunca sei bem onde estou. Atualmente sou eu quem me procuro porque nunca sei onde me encontro.
Conto da trovoada
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