Haiku nº 6: O frio de dezembro / faz chorar / a esperança das flores
A criação do estado de Israel foi oficialmente declarada a 14 de maio de 1948. No dia seguinte, as forças armadas dos Estados muçulmanos do Egito, da Síria, da Transjordânia, do Líbano, e do Iraque atacaram, em simultâneo, a nova nação com o único objetivo de a destruírem logo à nascença, lançando, na sua visão, o cuco para fora do ninho que era o Médio Oriente, empurrando Israel para o Mediterrâneo.
Como todos sabemos, os árabes falharam de maneira estrepitosa. Os israelitas, juntando a coragem ao desespero, e com o fervor moral que assiste a uma cruzada aguardada há séculos, repeliram os inimigos árabes onde quer que estes tivessem atacado, independentemente de o número de tropas muçulmanas exceder várias vezes o número das defensoras. Os árabes retiraram-se batidos, derrotados, lambendo as feridas, surpreendidos com a ferocidade e a capacidade de combate do Estado judaico. Ou seja, é caso para dizer que Israel nasceu sobre sangue derramado, tendo sido temperado no fogo da vitória do campo de batalha.
Em 1956, outra guerra teve lugar. Aquando da nacionalização do Canal do Suez pelo Egito de Nasser. O resultado foi semelhante ao de 1948: humilhação árabe, vitória israelita. Mas seria na madrugada do 5 dia junho de 1967 que a Força Aérea de Israel daria um golpe fatal ao destruir as suas congéneres egípcia e síria, ainda estacionadas no solo. Após o total domínio dos céus, os soldados judeus correram com o sírios dos montes Golã, junto à fronteira setentrional do Estado de Israel, conquistando Jerusalém Oriental à Jordânia e, a sul, tomaram a faixa de Gaza e toda a península do Sinai a um exército egípcio inapelavelmente batido e em desordenada fuga. Nascia, desta forma, o denominado “Grande Israel”.
O Yom Kippur teve reverberações políticas que, como era desígnio de Sadat, se iriam espalhar pelo mundo. Procurava-se um golpe político provocado por um evidente sucesso militar.
O pessoal egípcio analisou detalhadamente os pontos fortes e fracos de Israel antes de estabelecer um conceito operacional para o assalto que preparava. O plano baseava-se em sete pontos essenciais, resultantes da avaliação feita pelos serviços de informação egípcios. A saber: atacar primeiro e de surpresa; usar força maciça numa frente o mais ampla possível; manter um permanente “guarda-chuva” como defesa aérea; forçar Israel a dividir e a dispersar recursos; atenuar qualquer contra-ataque israelita; forçar Israel a incorrer em pesadas baixas; assegurar que as forças egípcias dispõem de material superior e tecnologicamente mais evoluído.
Como já clarificámos, os israelitas tinham conseguido recolher informações fulcrais acerca do que se estava a preparar. Mas os mal-entendidos autoimpostos originaram equívocos que tiveram o efeito de tornar cegos os responsáveis pela interpretação de dados recolhidos ante a importância dos factos que tinham diante dos olhos. Ou seja, Israel revelou-se incapaz de antecipar a guerra que se avizinhava. Chaim Herzog observaria, em relação a esta incrível situação, que os serviços de inteligência israelitas em 1972/73, apesar de terem olhos, não conseguiram ver.
Foi entre 1967 e 1973 que a linha rígida que existia em Israel entre serviços de informação e política se tornou turva. Alguns entendidos na matéria afirmam mesmo que, na verdade, tal separação nunca existiu. Provavelmente resulta daí a superioridade israelita evidenciada ao longo dos anos. E também a sua arrogância. Aliás, até tem um nome. Os veteranos responsáveis pelos planos de defesa conhecem-na como o “Conceito”. O denominado “Conceito” chegou a ser vendido aos incautos como uma política de dissuasão, misturada com as novas e extensas fronteiras de Israel. Por incrível que possa parecer, Israel estava de facto a manter a paz na região. Ou, pelo menos, era essa a opinião de muitos israelitas.
Era, de facto, uma atitude muito ousada. Os serviços militares de informação tinham cruzado, segundo Edward Luttwak, um linha invisível, passando a assumir com determinação o papel de defensores políticos e não de avaliadores de informação. Em Israel tudo está interligado. A sua sobrevivência depende disso. Mas uma coisa sabem bem todos os bons militares: qualquer inimigo digno desse nome jamais se conforma unicamente com as suas próprias esperanças e acalentados planos.
Tudo parecia indicar que o Egipto ia atacar. Mas continuava-se a acreditar mais nos relatórios do que nas evidências que se desenrolavam no terreno. A título de exemplo, convém lembrar que apesar da CIA e do Serviço de Inteligência e Pesquisa terem previsto que haveria de suceder uma guerra no Médio Oriente, no outono de 1973, os serviço de informação israelitas fizeram como Henry Kissinger, que se cria mais fiável que as próprias agências de informação e respetivos especialistas: não concordaram com essa postura. O então secretário de Estado americano resolveu não só ignorar olimpicamente as descobertas feitas pelos seus próprios departamentos, como perfilhou as erróneas interpretações feitas pelos serviços de inteligência israelitas, assim como as da sua primeira-ministra, Golda Meir. Ou seja, todos acreditavam que os egípcios apenas estavam a reconstruir as suas defesas. Lá diz a sabedoria popular, não há pior cego do que aquele que não quer ver.
A data do ataque acabou mesmo por ser objeto de profundo debate no seio do grupo responsável pelo planeamento da operação do Estado-Maior dos exércitos árabes. Surpreendentemente, a decisão final foi tomada na tarde de agosto de 1973, apenas dois meses antes do Dia Y (que era o nome que Sadat tinha posto para identificar o dia da invasão árabe). A equipa de planeamento do denominado Alto-Comando Federal, composto por chefes militares egípcios e sírios, tinha decidido que o ataque seria a 6 de outubro. As razões invocadas eram complexas, misturando questões práticas com outras de perfil psicológico. Esse sábado seria uma noite de luar, o que oferecia óbvios e distintos benefícios práticos. A razão psicológica, um pouco mais rebuscada, tinha um significado mais abrangente para o mundo islâmico. Nesse ano, o 6 de outubro correspondia ao décimo dia do Ramadão, assim como ao aniversário da vitória do profeta Maomé na batalha de Badr, que teve lugar nas imediações da cidade árabe de Medina, no ano de 624, vitória que permitiu ao fundador do islamismo estabelecer-se como líder político e religioso incontestável. A carga simbólica era evidente.
No entanto, os confiantes inimigos do regime egípcio acreditavam plenamente que as movimentações das tropas não passavam de encenação. Tudo aquilo já tinha sido visto antes. A arrogância e o excesso de familiaridade juntaram-se para encorajar uma interpretação completamente errada do que estava para acontecer. As mais de vinte mobilizações de reservistas egípcios para efeitos de treino ocorridas a partir do início de 1973 ajudaram a ludibriar os israelitas. No fundo, faziam parte integrante da estratégia do logro por repetição que toldaram as reações dos serviços secretos de Telavive.
Quando novembro sucedeu a outubro, a muralha de segurança e da fraude estava prestes a desmoronar-se.
Mas nestas, como em muitas outras coisas, há sempre um presumível herói pronto a entrar em ação. Por vezes o problema é que nem ele nem quem está por perto se apercebe da situação.
Ao tenente Benjamim Siman-Tov pouco lhe interessavam os conceitos preconcebidos, os pré-requisitos políticos ou as avaliações nacionais. O jargão passava-lhe um pouco ao lado. No seu gabinete do Comando Sul, ele seguia metodicamente o procedimento dos serviços de informação. Nesse dia 1 de outubro de 1973, Benjamim deparou-se com algo que não foi do seu agrado. Quase todos os indicadores de ataque revelavam uma acumulação de indícios, estando grande parte deles no vermelho, sinal de perigo, e não no verde, sinal de segurança confirmada.
De acordo com o que observava, resolveu enviar um relatório ao seu chefe, o tenente-coronel Geladia, dizendo que as movimentações levadas a cabo pelo Exército de Armas Combinadas, no outro lado do canal do Suez, era, na sua opinião, baseada numa análise objetiva e numa interpretação das provas disponíveis, nada menos do que uma sofisticado engodo para encobrir um ataque iminente. Mas Geladia faria algo imperdoável, algo que acabaria por se revelar um erro crasso: ocultou deliberadamente o relatório do seu tenente pelo simples facto de querer assemelhar-se a Kissinger, ou seja, não acreditar no seu conteúdo. Esse documento apenas chegou ao conhecimento do diretor dos serviços de informação militar, general Zeira, em março de 1974. Como reconhecimento pelo trabalho realizado, o general acabaria mesmo por promover o jovem militar. Infelizmente para Israel, esse reconhecimento apenas chegou com um atraso de sete meses.
As mais importantes figuras associadas ao sistema dos serviços secretos israelitas receberam também um claro aviso proveniente do seu espião egípcio Ashraf Marwan, colaborador de Sadat.
Segundo Yisrael Lior, a mesma fonte que lhes falou desta guerra na sexta-feira (véspera do Yom Kippur), já o havia feito antes, nomeadamente num encontro secreto ocorrido em Londres entre o diretor dos serviços secretos Zamir e o próprio Marwan.
O general Zeira, enfatizou diversas vezes que as concentrações de tropas árabes identificadas através de voos de reconhecimento, tanto podiam estar relacionadas com operações de ataque como de defesa, o que, bem vistas as coisas, até era verdade.
No mundo dos serviços de informação há uma situação que é conhecida como “informação circular”, ou “síndrome da grinalda de margaridas”, ou, ainda entre nós, como “síndrome da pescadinha de rabo na boca”. Isso acontece quando uma agência dá a conhecer um facto ou uma avaliação não confirmados. Isso é sucessivamente agarrado e repetido por uma segunda agência, que põe essa informação num relatório explícito. Entretanto, a primeira agência toma esse relatório como proveniente de uma terceira entidade e, de seguida, aproveita-o como prova evidente que atesta a veracidade da sua informação inicial, dado ser confirmada por uma fonte distinta. Pode parecer que não, mas esta é uma situação perigosa. No entanto, existem mecanismos no interior de um processo analítico profissional dos serviços de informação que impedem que tal aconteça.
Cerca das 14 horas do dia 6 de outubro de 1973, a tensão aumentou na reunião do executivo que se realizou no gabinete de Golda Meir. O habitual espírito de discordância fez-se sentir de imediato, nomeadamente em torno da questão de o ataque ter início, ou não, às 18h00. Mas o secretário militar da líder do governo resolveu emudecer toda a sala quando anunciou friamente: “A guerra já começou, primeira-ministra.”
Foi o distante gemido da sirene de alarme de ataque aéreo quem quebrou o silêncio que se seguiu à notícia.
Se levarmos em linha de conta as próprias despesas de Israel, os reais custos da Guerra do Yom Kippur terão sido avaliados em três mil milhões de dólares, isto a preços de 1973, cerca de 18 mil milhões ao câmbio atual. Nunca se apuraram os custos reais para o Egipto e para a Síria. Damasco sofreu 8000 baixas, perdendo todo o efetivo no que se relaciona com tanques, assim como um ano inteiro de PIB. Ou seja, a Guerra do Yom Kippur foi ruinosa para todos os que nela participaram. Somente o orgulho e a coragem saíram valorizados.
Israel, apesar de ganhar a Guerra, perdeu a confiança. No rescaldo do conflito, Golda Meir ordenou a criação de um grupo de inquérito destinado a investigar os verdadeiros motivos dos erros israelitas. A Comissão Agranat, no final da sua missão, em 1975, emitiu um relatório bastante mordaz. Tanto os Serviços de informação, como a disciplina e a mobilização de reservas apresentavam-se cheios de falhas. A complacência e a arrogância tinham erodido as Forças de Defesa de Israel até ao mais alto nível. E, o que é mais grave, os próprios serviços de informação de Israel tinham-se deixado ludibriar, depois de terem realizado uma interpretação errada das informações que lhes tinham chegado às mãos.
Mas foi remédio santo, a arrogância e a euforia que se seguiram à Guerra dos Seis Dias, em 1967, desapareceram definitivamente. Israel viu-se obrigado a encontrar uma forma de conviver com os seus agressivos e ressentidos vizinhos. Quatro anos após o conflito, o Egipto assinou um tratado de paz em Camp David, nos EUA. Dois anos depois do famigerado acordo, o próprio Sadat seria assassinado por fanáticos islâmicos que preferiam soluções bastante mais radicais para enfrentar o domínio militar dos israelitas, situação que ainda se mantém atualmente. Para o Estado judaico, a nova guerra contra o terrorismo que se seguiu impôs que a pátria dos judeus teria de enfrentar um conflito contínuo, mas de baixa intensidade, contra os seus implacáveis inimigos árabes.
Analisados os dados, não existe desculpa concreta para o falhanço de Israel. Ao contrário de Pearl Harbor, que resultou de uma má organização, e da Ofensiva de Tet, que resultou de uma má divulgação, o fracasso dos israelitas em 1973 nada tem a ver com essa causas. Ironicamente, o fracasso inicial de Israel está basicamente confinado à sua enorme e enfática vitória de 1967.
Os israelitas, inchados pelos sucessos anteriores, descartaram a hipótese de os árabes poderem vir a ter capacidade de aprender com os seus próprios erros. Subestimaram também os novos sistemas de armas que os árabes tinham adquirido. E, acima de tudo, falharam ao não terem na devida conta o revitalizado planeamento levado a cabo pelas chefias egípcias, bem assim como os métodos de treino implementado e a bravura que as suas tropas poderiam demonstrar em campo. Apesar de se julgarem adiantados no tempo, os israelitas cometeram o erro clássico de desprezar o inimigo, a todos os níveis. Quando os israelitas, logo após o conflito, decidiram estudar os mapas egípcios de que se apoderaram, para seu espanto, viram-se confrontados com amplas evidências de que os serviços de inteligência egípcios estavam altamente preparados para a guerra. Para sua enorme surpresa, descobriram, traduzido para árabe, um mapa israelita codificado e altamente secreto do Sinai feito pouco antes da guerra, que incluía todos os códigos secretos e designações utilizados para identificar cada sítio assinalado nessa cartografia. Afinal, os campeões da espionagem, tinham sido espiados. E bem.
Mas o principal erro cometido pelos serviços de informação israelitas foi a ossificação. Quando o Estado judaico era jovem e pujante, todos se conheciam e ocorriam debates genuínos entre os responsáveis pela tomada de decisões e os especialistas da inteligência, situação que se refletia sobre os diversos pontos de vista. Ou seja, a estratégia funcionava. Mas com o passar dos anos, os serviços militares de informação resolveram colocar essas competências sob a sua alçada. Com essa decisão, os serviços tornaram-se poderosos, excessivamente politizados e, muitas vezes, ineficientes. Ou seja, os serviços militares possuíam o monopólio de todas as fontes de dados. Tinham, inclusive, acesso ilimitado a todas as comissões políticas e aos conselhos políticos internos do Estado. Ora isso, eliminou progressivamente qualquer pretensão de objetividade.
Apesar de possuírem todos os dados nas suas mãos, estes foram mal interpretados e corroídos internamente pela acidez do preconceito, pela política doméstica, pelas amizades pessoais e também pela análise defeituosa: pela aselhice. Ou seja, em 1973 os serviços militares de informação de Israel desiludiram a sua nação. Mais do que um disparate, foi um crime.
(continua...)