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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

30
Abr21

História da Espionagem - Notas e relatório confidencial (Agente José Manuel) PARTE IX

João Madureira

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Haiku nº 7: A neve / faz dos ramos das árvores / asas de anjos feridos

Podemos agora falar de uma coisa completamente diferente, como diziam os Monty Python. Sobre a informação servida ao utilizador, como foi o caso da Operação Barbarossa. E do próprio Estaline.

Por volta de 1941, quando alguém revelava algum sinal de preocupação perante o possibilidade de um ataque alemão, a resposta habitual era: “Não te preocupes, o camarada Estaline sabe o que quer.”

Na verdade, nestes casos, tudo depende da pessoa que desempenha o cargo de líder ou chefe. Tudo depende do Big Brother, que tudo sabe e tudo vê, concordar ou não com o que lhe é transmitido, assim como tudo depende de isso ser o que o líder pretende ouvir.

Em 1941, a União Soviética possuía o maior, mais eficiente e bem avisado serviço de informações do planeta. No entanto, Estaline foi surpreendido com a invasão da União Soviética por três milhões de homens e 3350 tanques do exército do Reich Alemão. A incredulidade das tropas que defendiam a longa fronteira ocidental foi enorme. Ninguém estava à espera daquilo. Perguntarão, e bem, os estimados leitores, qual a razão para um falhanço tão catastrófico dos serviços de informação, que conduziu à mais destrutiva Guerra da história da humanidade, poder acontecer, aparentemente, sem qualquer tipo de aviso?

A resposta é extraordinariamente banal: o fracasso teve tudo a ver com o facto de Estaline pura e simplesmente se ter recusado a reconhecer a verdade que lhe era apresentada repetidamente de que a Alemanha nazi se preparava para invadir a União Soviética.

A razão do desastre dos serviços de informação tem uma base comum: Estaline. O ditador soviético acreditava profundamente que uma invasão não podia acontecer com ele no poder.

A sua obsessão radicava na persistente recusa em reconhecer os dados evidentes que demonstravam que os alemães estavam prestes a levar a cabo uma invasão, originando que a URSS sofresse dantescamente à medida que a operação Barbarossa ia empurrando os russos até às portas de Moscovo.

Estaline esperava uma guerra, o problema era que não estava preparado para ela. Três anos antes, o líder máximo comunista tinha deliberadamente destruído o seu exército.

Na primavera de 1937, no período denominado como o “Grande Terror”, Estaline “purgou” o Exército Vermelho dos seus “inimigos internos”. Nos três anos subsequentes executou a maioria dos comandantes militares, depois de os enxovalhar com falsas acusações. O massacre foi devastador: 75 dos 80 membros do Soviete Militar foram executados; os comandantes de todos os distritos militares foram passados pelas armas; dois terços dos comandantes de divisão, metade dos comandantes de brigada e mais de 400 dos 456 coronéis do quadro de oficiais foram também assassinados. Estaline decapitou por completo o “seu” Exército Vermelho.

Os factos falam por si: entre os finais de julho de 1940 e 22 de junho de 1941, nada menos do que 103 advertências separadas e equívocas feitas relativamente a uma eminente ataque contra a União Soviética foram entregues a Estaline. Todas elas foram avaliadas, interpretadas e entregues ao responsável máximo da URSS. Ao que se sabe, e sabe-se já muito acerca disso, nenhum desses avisos foi divulgado e, muito menos, partilhado. Em consequência direta desse fracasso dos serviços de informação, a União Soviética perdeu quatro milhões de soldados, incluindo uns surpreendentes três milhões de prisioneiros de guerra, além de 14 000 aviões, 20 000 canhões e 17 000 tanques nas batalhas que ocorreram entre as fronteiras e os subúrbios de Moscovo de finais de junho a dezembro de 1941.

Os que sobreviveram à guerra, e ao gulag, mantiveram a cabeça baixa, seguindo desse modo uma atitude política e social de sobrevivência baseada no conhecido adágio soviético “farejar, bajular, sobreviver”. Nesta altura apenas os loucos e os estupidamente corajosos se atreveriam a contrariar a interpretação que o tovarisch Estaline fazia dos acontecimentos. Um assessor dos tempos de hoje diria que o camarada de aço estaria em negação.

Numa análise final, podemos dizer que a operação Barbarossa continua a ser um dos maiores fracassos da história universal dos serviços de informação, e como único culpado direto: Estaline. A conclusão é óbvia: os melhores serviços de informação podem não passar de desperdício e, pior ainda, podem transformar-se em agência de autoengano.

A obsessão de Estaline, e a sua fatal má interpretação dos evidentes dados que lhe foram transmitidos, custaram à União Soviética 25 milhões de vidas, além da destruição de seis milhões de casas, de 6000 hospitais e de 70 000 cidades, vilas e aldeias, além de ter mudado o mapa do mundo para sempre.

Contra os factos, não pode haver outro julgamento: mesmo com o melhor serviço de informações do mundo, Estaline deitou tudo a perder. O ditador comunista foi, de facto, “o seu próprio agente de informação, mas também foi terrivelmente incompetente nessa tarefa. Ele que também chegou a ser agente de informação do czar. Ainda hoje a humanidade continua a pagar o preço desses erros.

28
Abr21

Poema Infinito (559): A incoerência do tempo

João Madureira

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Onde me prendo, lanço raízes. O tempo tornou-se incoerente. Perdeu a sua continuidade geográfica. É setembro. As tardes começaram a encurtar, as noites são mais fracas e as folhas voam por cima de nós, como pássaros. A maioria deles já se foi embora. Conheci um bêbado que gostava de passear e dançar em cima do arco-íris. Com a mudança de luz, o arco-íris desaparecia e ele punha-se a chorar. O tempo deixou de passar. Sopra uma brisa amena. Os significados perderam o seu movimento natural. Agora coleciono vazios. O silêncio das folhas é mais pesado do que o seu voo. Atinge rapidamente o chão. Por isso não percebo os vendavais, nem a inaudita atenção das florestas. Depressa chegou dezembro. A neve cai suave. Os flocos têm a espessura de pétalas. Faz muito frio na adega. É difícil encontrar a paz de espírito neste mundo que se desmorona. Viajamos dentro dos sonhos como se fossem pesadelos. Alguém sopra a vida que se apaga como uma vela. Estou sentado à mesa. Cada pequeno utensílio, cada talher, é um símbolo. Uma saudade. A avó dizia que não existe nenhuma erva do esquecimento. O tempo tornou-se tão fluido como o ar e a luz. O Deus das coisas mortas é tão confidencial que até dói. O universo é feito de escamas que atravessam os teus cabelos e refletem os raios de sol. É-me dificílimo dividir a vida entre o mar e a terra, entre os sexos, entre os choros, entre a verdade e a relatividade, entre as esquinas e as portas, entre os enganos e os esquecimentos. As portas matam a direção da luz. E os regressos tardios. Tento aprender de novo o saber adormecer e o recordar do crescimento da pequena cerejeira. Mas continuo a tremer sempre que penso na possibilidade da tua ausência. Ninguém consegue beber a beleza breve das gotas de chuva. Nem tocar a raiz das memórias. Escrevo como se as memórias escorressem sobre um laço. A felicidade está carregada de sangue e da nossa existência mamífera. Por vezes, sentimos uma espécie de febre perfeita. O mundo parece perder a cor. A pandemia tornou o mundo numa espécie de jardim botânico. O crepúsculo desliza bem para lá de nós. Os nossos esforços transformaram os desejos em fantasmas. Tudo agora se desenvolve sob o mito da prudência. Falamos cautelosamente do trabalho, das relações, da saúde, do desejo, da falta de energia, do nervosismo. Tudo nos apanhou de surpresa. Tudo se espalhou pelo chão, como as folhas mortas das árvores no outono. É outono em todo o mundo. Tudo está mais limpo e arrumado. Mas não é possível arranjar o tempo. O cheiro da desilusão atravessa o ar. Trazemos no bolso o livro das orações. As notícias parecem truques de um bando de prestidigitadores amargurados. Flutuamos no meio do medo. Olhamos para o semáforo verde com demasiada expectativa. As ervas crescem com mais vigor, inundando os passeios. Derramam-se o sangue e as palavras. Já ninguém lembra as velhas canções. Alimentamos o amor com rebentos de esperança. Tanta esperança para tão pouco. O desespero cresce demasiado depressa em todas as direções. E o espanto, também. 0 céu parece uma caixa de estrelas. Há longos rastos de escuridão. Guardamos a memória para depois. Vou subir as escadas devagar. A mãe chora vagarosamente. Tudo é silêncio. Até os cães deixaram de ladrar. O tempo começou a fugir-nos. “Para onde estás a olhar?”, pergunta a mãe. “Não sei”, respondo.

26
Abr21

537 - Pérolas e Diamantes: A gesta de Hollywood

João Madureira

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A gesta do Faroeste foi uma história inventada por meia dezena de empresários idos da Europa Oriental para os EUA.

 

Todos esses emigrantes (Warner, Laemmle, Fox, Mayer, Zukor) tinham bom olho para o negócio. Foram eles que construíram os estúdios de Hollywood, a caixinha mágica que fabricou o mito universal com maior êxito do século XX: os filmes do Oeste.

 

Dizem que os verdadeiros cenários desses filmes eram constituídos por povoações insignificantes onde a única coisa audível eram os bocejos que chegavam a ser mais prolongados do que as pândegas.

 

Os verdadeiros cowboys, transformados pelos estúdios em taciturnos e viris cavaleiros que atravessavam aquelas terras selvagens resgatando donzelas e libertando as populações da tirania dos bandidos, não passavam de peões mortos de fome, sem companhia feminina, a não ser a das vacas que conduziam através do deserto, arriscando a vida em troca de um pagamento miserável.

 

E, para que conste, não se pareciam em nada com Gary Cooper ou John Wayne, pois eram negros, mexicanos ou brancos desdentados.

 

Já os índios, contratados a trabalhar como figurantes no papel de maus terríveis, não eram sequer parecidos com aqueles débeis mentais, pintados e emplumados, que não sabiam falar e ululavam em volta das caravanas crivadas de flechas.

 

A história diz-nos, por exemplo, que no século XVIII, a colónia de Massachusetts pagava cem libras esterlinas por cada escalpe arrancado a um índio.

 

Quando os EUA conquistaram a sua independência, os escalpes passaram a ser cotados em dólares.

 

No século XIX tornou-se famoso um senhor chamado Buffalo Bill por ser o maior esfolador de índios e o grande exterminador dos búfalos que lhe deram fama.

 

Buffalo Bill, e outros seus congéneres, cometeram a proeza de reduzir cerca de sessenta milhões de búfalos a menos de mil, provocando a morte da grande parte das tribos índias, que tiveram de se render devido à fome. 

 

Sem búfalos para matar, nem índios para escalpar, Buffalo Bill ajudou a fundar o Wild West Circus e passeou-se por esse mundo fora ao ritmo de uma cidade em cada dois dias, onde resgatava diligências acossadas pelos selvagens, cavalgava potros indomáveis e disparava balázios que matavam moscas a grande distância.

 

Do outro lado sentava-se Touro Sentado.

 

Touro Sentado teve o seu batismo de fogo aos trinta e dois anos, numa tentativa de defender o seu povo de um ataque de tropas inimigas.

 

Passados cinco anos, a sua nação indígena elege-o chefe.

 

Aos quarenta e um anos, em plena batalha, nas margens do rio Yellowstone, caminha firmemente na direção dos soldados e senta-se no chão. Puxa do seu cachimbo e acende-o. As balas silvam ao seu redor. Ele, imóvel, fuma.

 

Mais tarde foi informado de que os brancos tinham descoberto ouro nas Black Hills, terras pertencentes à reserva Índia, e iniciado a invasão.

 

Depois, durante uma dança ritual, tem uma visão: milhares de soldados caem do céu como gafanhotos. Durante o sono é-lhe anunciado que o seu povo derrotará o inimigo.

 

A verdade é que os sioux e os cheyenne, unidos, derrotaram de forma perentória as tropas do general George Custer.

 

Após alguns altos e baixos, segue-se o exílio e a cadeia. Pressionado, aceita ler um discurso de homenagem ao comboio do Pacífico Norte.

 

No fim do discurso, coloca os papéis de lado e, encarando o público, profere: “Os brancos são todos ladrões e mentirosos. O intérprete destacado para a ocasião, traduz: “Nós estamos gratos à civilização.”

 

O público aplaude.

 

Passado mais algum tempo de decadência, passa a trabalhar no espetáculo de Buffalo Bill.

 

Na arena do circo, Touro Sentado faz de Touro Sentado, tal como Buffalo Bill faz de Buffalo Bill. A tragédia repete-se como espetáculo.

 

Aos cinquenta e cinco anos, um sonho premonitório anuncia-lhe: “O teu povo matar-te-á.”

 

Passados quatro anos, índios, envergando uniformes de polícia, trazem uma ordem de prisão. Ele reage e tomba vítima do tiroteio que se seguiu.

23
Abr21

História da Espionagem - Notas e relatório confidencial (Agente José Manuel) PARTE VIII

João Madureira

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Haiku nº 6: O frio de dezembro / faz chorar / a esperança das flores

A criação do estado de Israel foi oficialmente declarada a 14 de maio de 1948. No dia seguinte, as forças armadas dos Estados muçulmanos do Egito, da Síria, da Transjordânia, do Líbano, e do Iraque atacaram, em simultâneo, a nova nação com o único objetivo de a destruírem logo à nascença, lançando, na sua visão, o cuco para fora do ninho que era o Médio Oriente, empurrando Israel para o Mediterrâneo.

Como todos sabemos, os árabes falharam de maneira estrepitosa. Os israelitas, juntando a coragem ao desespero, e com o fervor moral que assiste a uma cruzada aguardada há séculos, repeliram os inimigos árabes onde quer que estes tivessem atacado, independentemente de o número de tropas muçulmanas exceder várias vezes o número das defensoras. Os árabes retiraram-se batidos, derrotados, lambendo as feridas, surpreendidos com a ferocidade e a capacidade de combate do Estado judaico. Ou seja, é caso para dizer que Israel nasceu sobre sangue derramado, tendo sido temperado no fogo da vitória do campo de batalha.

Em 1956, outra guerra teve lugar. Aquando da nacionalização do Canal do Suez pelo Egito de Nasser. O resultado foi semelhante ao de 1948: humilhação árabe, vitória israelita. Mas seria na madrugada do 5 dia junho de 1967 que a Força Aérea de Israel daria um golpe fatal ao destruir as suas congéneres egípcia e síria, ainda estacionadas no solo. Após o total domínio dos céus, os soldados judeus correram com o sírios dos montes Golã, junto à fronteira setentrional do Estado de Israel, conquistando Jerusalém Oriental à Jordânia e, a sul, tomaram a faixa de Gaza e toda a península do Sinai a um exército egípcio inapelavelmente batido e em desordenada fuga. Nascia, desta forma, o denominado “Grande Israel”.

O Yom Kippur teve reverberações políticas que, como era desígnio de Sadat, se iriam espalhar pelo mundo. Procurava-se um golpe político provocado por um evidente sucesso militar.

O pessoal egípcio analisou detalhadamente os pontos fortes e fracos de Israel antes de estabelecer  um conceito operacional para o assalto que preparava. O plano baseava-se em sete pontos essenciais, resultantes da avaliação feita pelos serviços de informação egípcios. A saber: atacar primeiro e de surpresa; usar força maciça numa frente o mais ampla possível; manter um permanente “guarda-chuva” como defesa aérea; forçar Israel a dividir e a dispersar recursos; atenuar qualquer contra-ataque israelita; forçar Israel a incorrer em pesadas baixas; assegurar que as forças egípcias dispõem de material superior e tecnologicamente mais evoluído.

Como já clarificámos, os israelitas tinham conseguido recolher informações fulcrais acerca do que se estava a preparar. Mas os mal-entendidos autoimpostos originaram equívocos que tiveram o efeito de tornar cegos os responsáveis pela interpretação de dados recolhidos ante a importância dos factos que tinham diante dos olhos. Ou seja, Israel revelou-se incapaz de antecipar a guerra que se avizinhava. Chaim Herzog observaria, em relação a esta incrível situação, que os serviços de inteligência israelitas em 1972/73, apesar de terem olhos, não conseguiram ver.

Foi entre 1967 e 1973 que a linha rígida que existia em Israel entre serviços de informação e política se tornou turva. Alguns entendidos na matéria afirmam mesmo que, na verdade, tal separação nunca existiu. Provavelmente resulta daí a superioridade israelita evidenciada ao longo dos anos. E também a sua arrogância. Aliás, até tem um nome. Os veteranos responsáveis pelos planos de defesa conhecem-na como o “Conceito”. O denominado “Conceito” chegou a ser vendido aos incautos como uma política de dissuasão, misturada com as novas e extensas fronteiras de Israel. Por incrível que possa parecer, Israel estava de facto a manter a paz na região. Ou, pelo menos, era essa a opinião de muitos israelitas.

Era, de facto, uma atitude muito ousada. Os serviços militares de informação tinham cruzado, segundo Edward Luttwak, um linha invisível, passando a assumir com determinação o papel de defensores políticos e não de avaliadores de informação. Em Israel tudo está interligado. A sua sobrevivência depende disso. Mas uma coisa sabem bem todos os bons militares: qualquer inimigo digno desse nome jamais se conforma unicamente com as suas próprias esperanças e acalentados planos.

Tudo parecia indicar que o Egipto ia atacar. Mas continuava-se a acreditar mais nos relatórios do que nas evidências que se desenrolavam no terreno. A título de exemplo, convém lembrar que apesar da CIA e do Serviço de Inteligência e Pesquisa terem previsto que haveria de suceder uma guerra no Médio Oriente, no outono de 1973, os serviço de informação israelitas fizeram como Henry Kissinger, que se cria mais fiável que as próprias agências de informação e respetivos especialistas: não concordaram com essa postura. O então secretário de Estado americano resolveu não só ignorar olimpicamente as descobertas feitas pelos seus próprios departamentos, como perfilhou as erróneas interpretações feitas pelos serviços de inteligência israelitas, assim como as da sua primeira-ministra, Golda Meir. Ou seja, todos acreditavam que os egípcios apenas estavam a reconstruir as suas defesas. Lá diz a sabedoria popular, não há pior cego do que aquele que não quer ver.

A data do ataque acabou mesmo por ser objeto de profundo debate no seio do grupo responsável pelo planeamento da operação do Estado-Maior dos exércitos árabes. Surpreendentemente, a decisão final foi tomada na tarde de agosto de 1973, apenas dois meses antes do Dia Y (que era o nome que Sadat tinha posto para identificar o dia da invasão árabe). A equipa de planeamento do denominado Alto-Comando Federal, composto por chefes militares egípcios e sírios, tinha decidido que o ataque seria a 6 de outubro. As razões invocadas eram complexas, misturando questões práticas com outras de perfil psicológico.  Esse sábado seria uma noite de luar, o que oferecia óbvios e distintos benefícios práticos. A razão psicológica, um pouco mais rebuscada, tinha um significado mais abrangente para o mundo islâmico. Nesse ano, o 6 de outubro correspondia ao décimo dia do Ramadão, assim como ao aniversário da vitória do profeta Maomé na batalha de Badr, que teve lugar nas imediações da cidade árabe de Medina, no ano de 624, vitória que permitiu ao fundador do islamismo estabelecer-se como líder político e religioso incontestável. A carga simbólica era evidente.

No entanto, os confiantes inimigos do regime egípcio acreditavam plenamente que as movimentações das tropas não passavam de encenação. Tudo aquilo já tinha sido visto antes. A arrogância e o excesso de familiaridade juntaram-se para encorajar uma interpretação completamente errada do que estava para acontecer. As mais de vinte mobilizações de reservistas egípcios para efeitos de treino ocorridas a partir do início de 1973 ajudaram a ludibriar os israelitas. No fundo, faziam parte integrante da estratégia do logro por repetição que toldaram as reações dos serviços secretos de Telavive.

Quando novembro sucedeu a outubro, a muralha de segurança e da fraude estava prestes a desmoronar-se.

Mas nestas, como em muitas outras coisas, há sempre um presumível herói pronto a entrar em ação. Por vezes o problema é que nem ele nem quem está por perto se apercebe da situação.

Ao tenente Benjamim Siman-Tov pouco lhe interessavam os conceitos preconcebidos, os pré-requisitos políticos ou as avaliações nacionais. O jargão passava-lhe um pouco ao lado. No seu gabinete do Comando Sul, ele seguia metodicamente o procedimento dos serviços de informação. Nesse dia 1 de outubro de 1973, Benjamim deparou-se com algo que não foi do seu agrado. Quase todos os indicadores de ataque revelavam uma acumulação de indícios, estando grande parte deles no vermelho, sinal de perigo, e não no verde, sinal de segurança confirmada.

De acordo com o que observava, resolveu enviar um relatório ao seu chefe, o tenente-coronel Geladia, dizendo que as movimentações levadas a cabo pelo Exército de Armas Combinadas, no outro lado do canal do Suez, era, na sua opinião, baseada numa análise objetiva e numa interpretação das provas disponíveis, nada menos do que uma sofisticado engodo para encobrir um ataque iminente. Mas Geladia faria algo imperdoável, algo que acabaria por se revelar um erro crasso: ocultou deliberadamente o relatório do seu tenente pelo simples facto de querer assemelhar-se a Kissinger, ou seja, não acreditar no seu conteúdo. Esse documento apenas chegou ao conhecimento do diretor dos serviços de informação militar, general Zeira, em março de 1974. Como reconhecimento pelo trabalho realizado, o general acabaria mesmo por promover o jovem militar. Infelizmente para Israel, esse reconhecimento apenas chegou com um atraso de sete meses.

As mais importantes figuras associadas ao sistema dos serviços secretos israelitas receberam também um claro aviso proveniente do seu espião egípcio Ashraf Marwan, colaborador de Sadat.

Segundo Yisrael Lior, a mesma fonte que lhes falou desta guerra na sexta-feira (véspera do Yom Kippur), já o havia feito antes, nomeadamente num encontro secreto ocorrido em Londres entre o diretor dos serviços secretos Zamir e o próprio Marwan.

O general Zeira, enfatizou diversas vezes que as concentrações de tropas árabes identificadas através de voos de reconhecimento, tanto podiam estar relacionadas com operações de ataque como de defesa, o que, bem vistas as coisas, até era verdade.

No mundo dos serviços de informação há uma situação que é conhecida como “informação circular”, ou “síndrome da grinalda de margaridas”, ou, ainda entre nós, como “síndrome da pescadinha de rabo na boca”. Isso acontece quando uma agência dá a conhecer um facto ou uma avaliação não confirmados. Isso é sucessivamente agarrado e repetido por uma segunda agência, que põe essa informação num relatório explícito. Entretanto, a primeira agência toma esse relatório como proveniente de uma terceira entidade e, de seguida, aproveita-o como prova evidente que atesta a veracidade da sua informação inicial, dado ser confirmada por uma fonte distinta. Pode parecer que não, mas esta é uma situação perigosa. No entanto, existem mecanismos no interior de um processo analítico profissional dos serviços de informação que impedem que tal aconteça.

Cerca das 14 horas do dia 6 de outubro de 1973, a tensão aumentou na reunião do executivo que se realizou no gabinete de Golda Meir. O habitual espírito de discordância fez-se sentir de imediato, nomeadamente em torno da questão de o ataque ter início, ou não, às 18h00. Mas o secretário militar da líder do governo resolveu emudecer toda a sala quando anunciou friamente: “A guerra já começou, primeira-ministra.”

Foi o distante gemido da sirene de alarme de ataque aéreo quem quebrou o silêncio que se seguiu à notícia.

Se levarmos em linha de conta as próprias despesas de Israel, os reais custos da Guerra do Yom Kippur terão sido avaliados em três mil milhões de dólares, isto a preços de 1973, cerca de 18 mil milhões ao câmbio atual. Nunca se apuraram os custos reais para o Egipto e para a Síria. Damasco sofreu 8000 baixas, perdendo todo o efetivo no que se relaciona com tanques, assim como um ano inteiro de PIB.  Ou seja, a Guerra do Yom Kippur foi ruinosa para todos os que nela participaram. Somente o orgulho e a coragem saíram valorizados.

Israel, apesar de ganhar a Guerra, perdeu a confiança. No rescaldo do conflito, Golda Meir ordenou a criação de um grupo de inquérito destinado a investigar os verdadeiros motivos dos erros israelitas. A Comissão Agranat, no final da sua missão, em 1975, emitiu um relatório bastante mordaz. Tanto os Serviços de informação, como a disciplina e a mobilização de reservas apresentavam-se cheios de falhas. A complacência e a arrogância tinham erodido as Forças de Defesa de Israel até ao mais alto nível. E, o que é mais grave, os próprios serviços de informação de Israel tinham-se deixado ludibriar, depois de terem realizado uma interpretação errada das informações que lhes tinham chegado às mãos.

Mas foi remédio santo, a arrogância e a euforia que se seguiram à Guerra dos Seis Dias, em 1967, desapareceram definitivamente. Israel viu-se obrigado a encontrar uma forma de conviver com os seus agressivos e ressentidos vizinhos. Quatro anos após o conflito, o Egipto assinou um tratado de paz em Camp David, nos EUA. Dois anos depois do famigerado acordo, o próprio Sadat seria assassinado por fanáticos islâmicos que preferiam soluções bastante mais radicais para enfrentar o domínio militar dos israelitas, situação que ainda se mantém atualmente. Para o Estado judaico, a nova guerra contra o terrorismo que se seguiu impôs que a pátria dos judeus teria de enfrentar um conflito contínuo, mas de baixa intensidade, contra os seus implacáveis inimigos árabes.

Analisados os dados, não existe desculpa concreta para o falhanço de Israel. Ao contrário de Pearl Harbor, que resultou de uma má organização, e da Ofensiva de Tet, que resultou de uma má divulgação, o fracasso dos israelitas em 1973 nada tem a ver com essa causas. Ironicamente, o fracasso inicial de Israel está basicamente confinado à sua enorme e enfática vitória de 1967.

Os israelitas, inchados pelos sucessos anteriores, descartaram a hipótese de os árabes poderem vir a ter capacidade de aprender com os seus próprios erros. Subestimaram também os novos sistemas de armas que os árabes tinham adquirido. E, acima de tudo, falharam ao não terem na devida conta o revitalizado planeamento levado a cabo pelas chefias egípcias, bem assim como os métodos de treino implementado e a bravura que as suas tropas poderiam demonstrar em campo. Apesar de se julgarem adiantados no tempo, os israelitas cometeram o erro clássico de desprezar o inimigo, a todos os níveis. Quando os israelitas, logo após o conflito, decidiram estudar os mapas egípcios de que se apoderaram, para seu espanto, viram-se confrontados com amplas evidências de que os serviços de inteligência egípcios estavam altamente preparados para a guerra. Para sua enorme surpresa, descobriram, traduzido para árabe, um  mapa israelita codificado e altamente secreto do Sinai feito pouco antes da guerra, que incluía todos os códigos secretos e designações utilizados para identificar cada sítio assinalado nessa cartografia. Afinal, os campeões da espionagem, tinham sido espiados. E bem.

Mas o principal erro cometido pelos serviços de informação israelitas foi a ossificação. Quando o Estado judaico era jovem e pujante, todos se conheciam e ocorriam debates genuínos entre os responsáveis pela tomada de decisões e os especialistas da inteligência, situação que se refletia sobre os diversos pontos de vista. Ou seja, a estratégia funcionava.  Mas com o passar dos anos, os serviços militares de informação resolveram colocar essas competências sob a sua alçada. Com essa decisão, os serviços tornaram-se poderosos, excessivamente politizados e, muitas vezes, ineficientes. Ou seja, os serviços militares possuíam o monopólio de todas as fontes de dados. Tinham, inclusive, acesso ilimitado a todas as comissões políticas e aos conselhos políticos internos do Estado. Ora isso, eliminou progressivamente qualquer pretensão de objetividade.

Apesar de possuírem todos os dados nas suas mãos, estes foram mal interpretados e corroídos internamente pela acidez do preconceito, pela política doméstica, pelas amizades pessoais e também pela análise defeituosa: pela aselhice. Ou seja, em 1973 os serviços militares de informação de Israel desiludiram a sua nação. Mais do que um disparate, foi um crime.

 

 (continua...)

21
Abr21

Poema Infinito (558): O pormenor deslumbrante

João Madureira

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O grande problema de Leonardo da Vinci foi quando chegou o momento de pintar duas cabeças da Última Ceia: a de Cristo e a de Judas. Teve dificuldade em encontrar um modelo. E procrastinou no seu trabalho. O duque Ludovico fê-lo então assinar um contrato pela sua própria mão que o obrigava a terminar a obra no prazo acordado. A espera valeu a pena: daí resultou a pintura narrativa mais fascinante da história. As ondas transmitidas pelos movimentos e emoções parecem encenadas como se de uma coreografia teatral se tratasse. Esses movimentos são exagerados, evidenciando os truques de perspetiva que Leonardo conhecia enquanto produtor de espetáculos da corte. O quadro retrata a reação dos apóstolos logo após Cristo lhes revelar que um deles o ia trair. De início, parece um momento congelado. O que é bastante arrepiante. Mas quando se olha mais tempo para a pintura, ela vibra. A cabeça de Cristo está inclinada, em silêncio, enquanto as mãos continuam o seu movimento em direção ao pão. O efeito provocado é de ondulação, como quando atiramos uma pequena pedra sobre as águas calmas de um rio, espalhando o ligeiro movimento a partir desse centro até às margens da pintura, criando, dessa forma, uma reação narrativa. As palavras de Jesus reverberam, tornando os momentos seguintes do evangelho parte do drama. Um discípulo pergunta se será ele o traidor, enquanto os outros se olham, em perplexidade, sem saberem a quem o seu Mestre se refere. Enquanto os três apóstolos da esquerda ainda reagem, os restantes começam a responder e a fazer perguntas. O seu método para exibir as intenções da mente era através dos gestos. Leonardo aprendeu o quanto pode ser comunicado por gestos observando o mudo Cristoforo de Predis. Os doze apóstolos estão reunidos em grupos de três. Observando-os a partir da esquerda, sente-se o fluir do tempo, como se a narrativa se movesse a partir desse lado. O grupo da esquerda exibe a reação imediata de surpresa perante o anúncio de Jesus. Bartolomeu, firme e vigilante, está a pôr-se de pé, prestes a erguer-se com a cabeça para diante. No segundo trio, Judas, feio, escuro e de nariz aquilino, segura na mão direita um saco com moedas de prata que recebeu por trair Jesus, cujas palavras ele sabe que lhe são dirigidas. Recua a mão sinistra e alcança o pão incriminatório que partilhará com Jesus. Pedro está agressivo e agitado, abrindo caminho à cotovelada, pronto a entrar em ação. Na sua mão direita exibe a faca com que nessa noite cortará a orelha a um servo de um sumo-sacerdote. João está em silêncio. Ele sabe que não é o suspeito. Está triste. Encolhido pela tristeza. O andrógino João até pode ser, sem o ser, Maria Madalena. Ou não ser, sendo-o. Leonardo era habilidoso a esbater as diferenças entre os sexos. Jesus está sentado, sozinho, ao centro, com a boca ligeiramente aberta. Afinal, acabara de fazer a sua declaração. As figuras dos apóstolos são intensas, como se fossem atores. Mas a expressão de Jesus é serena e conformada. A janela aberta, com a radiosa paisagem ao fundo, é o seu halo natural. Está pintada em azul ultramarino. O mais caro dos pigmentos. O trio da direita tem Tomé com o indicador da mão virado para dentro, como a colocar, antecipadamente, o seu dedo sobre a futura ferida do Mestre. O último trio, à direita, encontra-se numa acesa discussão sobre o que Jesus quis dizer. A mão destra de Jesus alcança um copo. O seu dedo mindinho é visto através dele. Esse é o pormenor deslumbrante.

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