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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

09
Abr21

História da Espionagem - Notas e relatório confidencial (Agente José Manuel) PARTE VI

João Madureira

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Ao nível da recolha de informação, surge sempre uma questão: o que é que não pode ser conseguido de uma maneira aberta? Ou seja, para se saber o que se pretende, é indispensável possuir sempre fontes secretas. Só um néscio é que acredita que apenas as fontes abertas são utilizadas para a recolha de dados das agências de informação.

Para comparar informação é necessário juntá-la toda. É a parte custosa e enfadonha do trabalho, mas a maior parte do mundo operacional dos serviços de informação gira em torno da análise desse manancial de dados, após se proceder à sua recolha. Na realidade, essa é a especialidade dos funcionários inteligentes e industriosos e dos seus computadores e bases de dados, contrariando a ideia feita do mundo das pistolas especiais, metralhadoras, mísseis e forças especiais e da frente de batalha, tão ao gosto dos meios de comunicação populares e dos jogos de computadores.

E a competência nem tem ideologias, nem fronteiras. Por exemplo, o coronel Gehlen, principal especialista de Hitler em Exército soviético, que através do seu enorme rigor conseguiu construir o melhor arquivo da Frente Oriental, foi rapidamente recrutado pelo Exército americano no final de 1945. Uma boa base de dados única pode transpor quase todos os escrúpulos.

Mas existe o denominado “pecado capital” para quem tem por missão comparar os dados recolhidos, que consiste no facto de poder estar na presença de uma prova vital e não ter conhecimento disso ou não possuir condições para a descobrir e interpretar e, muito menos, a poder transmitir a quem toma as decisões. Mesmo trabalhando com os melhores computadores do mundo, a tarefa da interpretação tem-se revelado cada vez mais difícil. Há quatro questões elementares que nos permitem interpretar o significado de tudo isto: “É verdadeiro?”, “O que é ou quem é?”, “O que faz?” e “O que significa?” São as respostas objetivas dadas a estas simples questões que fazem com que o esforço despendido possa prevalecer ou ruir. Repito sempre três vezes aos nossos novos agentes uma coisa que aprendi com John Hughes-Wilson: “Nem o computador mais inteligente consegue avaliar intenções.”

Os relatórios que elaboramos têm de possuir informação precisa e oportuna que permita diferenciar nitidamente um facto concreto de um comentário interpretativo. Todos os nossos relatórios finais são brutalmente honestos e objetivos. Connosco é sempre sim ou sopas.

No topo de todo o processo de inteligência estão sempre os designados “indicadores e alertas de exibição”. São eles que possibilitam a via principal para alguém se manter a par das capacidades e das intenções de um inimigo. Seja ele qual for. Neste, como noutros assuntos, utilizamos a teoria da geometria variável. A nossa matriz de “política externa” é essencialmente fluida e multidimensional, com acordos políticos, coligações e parcerias estratégicas flexíveis, de acordo com os protagonistas e os respetivos benefícios. Como bem sabem os estimados leitores, até os conceitos de bem e de mal são fluídos. Existe até aquela velha frase: “A Luz não existiria se não houvesse a Escuridão”, e vice-versa.

Não nos iludamos. Espiar significa confiar, mas também trair, ter medo, mas também ter esperança. Significa ainda amar e odiar. Recolher informações acerca dos outros é uma “profissão eterna”. Sempre existiu e sempre vai existir, pois centra-se nas pessoas e nas personalidades. Destacam-se, entre outras, a espionagem familiar, a espionagem financeira e a espionagem entre nações. Enquanto aqui nos estamos a entreter, ou a aborrecer, dependendo do ponto de vista, operacionais em todo o mundo tentam diariamente convencer indivíduos com meios de acesso a informação a que se tornem traidores, usando métodos ancestrais que vão do encorajamento à coação. Os fins justificam os meios.

Claro que sempre há quem tente por ordem nisto tudo. Por exemplo, a CIA e o FBI, em 1990, instituíram regras que impediam o recrutamento de fontes responsáveis por violar os direitos humanos ou, tão só, que pudessem embaraçar os serviços. Mas a realidade é que para se saber realmente o que se passa dentro das organizações criminosas e terroristas, nomeadamente os sangrentos grupos jihadistas, é necessário “sujar” mesmo as mãos. Quando a solução passa por recrutar agentes entre militantes islâmicos, no mínimo há que falar com experientes decapitadores sanguinários. A manipulação e a ligação com agentes requer, muitas vezes, um coração de pedra e uma grande dose de amoralidade. A relutância e a abstinência não permitem a recolha de informações concretas. Quer queiramos, quer não, o espião e  o respetivo ato de espiar continuam a ser as melhores, mais longas e variadas de todas as fontes de informação.

Os motivos para que exista espionagem (traição) são tradicionalmente designados pelo acrónimo MICE: money, ideology, compromise/coercion e ego.

Mas uma coisa vos garanto, por detrás de todos eles existe um motivo ainda mais poderoso: o ressentimento inflamado.

O espião tem de lograr ocultar a sua identidade. Há-os tão ladinos que conseguem ser espiões e contraespiões ao mesmo tempo, vendendo a identificação dos traidores a ambos os lados. O agente ideal assemelha-se muito a um vendedor de carros usados: tem de conseguir vender-se a si mesmo.

Ler a correspondência de outra pessoa é pecado tão antigo quanto a literacia humana. Por isso, as tentativas para dissimular o texto através de códigos e cifras têm sido feitas desde os tempos mais remotos. Os criptoanalistas de Thurloe, o mestre dos espiões de Cromwell, asseguraram-se que o Lord Protector poderia ler a maioria das “intenções secretas” dos inimigos como se de um livro aberto se tratasse. O embaixador de Veneza, Nicolò Sagredo, asseverou, com relutante espanto, que não existia na Terra nenhum governo que divulgasse tão pouco os seus assuntos como a Inglaterra e que, ao mesmo tempo, estivesse tão bem informado relativamente às outras nações.

Por falar em SIGINT, tenho de confessar que, de certa maneira, também este livro está encriptado, mas nenhum computador poderá alguma vez resolver o enigma, apenas a mente e a inteligência humanas são disso capazes.

Em 1863, o major prussiano na reserva, Friedrich Kasiski, publicou o seu livro Die Geheimschriften (Escrita Secreta), explicando as análises de frequência das criptografias da altura. Passados vinte anos, Auguste Kerckhoffs editou alguns dos princípios fundamentais da criptografia que ainda hoje são relevantes. A saber: todo o sistema de códigos tem de ser virtual e matematicamente indecifrável; não deve exigir sigilo e não deve dar azo a problemas caso caia em mãos inimigas; deve possibilitar a comunicação e a memorização da chave sem que seja necessário o uso de notas escritas e os seus utilizadores devem ser capazes de a alterar ou modificar à sua vontade; deve ser aplicável às comunicações telegráficas. Para Kerckoffs, a chave era o elemento essencial da segurança e não o próprio sistema.

Foi a partir da Grande Guerra de 1914-1918 que nos conflitos se passaram a dispensar os fios. A 5 de agosto de 1914, o navio inglês Telconia intercetou o cabo submarino alemão que permitia as comunicações do Império Alemão com o resto do mundo e cortou-o. A partir daí, a Alemanha passaria a estar dependente da telegrafia sem fios ou de países neutrais amigos para poder comunicar com o mundo.

A Divisão Naval dos Serviços de Informação inglesa apercebeu-se, com perplexidade, do incremento do tráfego de rádio que existia entre Berlim em Bremen. Tudo o que escutavam estava codificado. Aconteceu então algo de inédito: obtiveram de uma assentada três livros que continham as chaves dos códigos navais alemães. Esta série de coincidências notáveis nunca foi convenientemente explicada. E a versão oficial deixa muito a desejar.

No entanto, até ao final da guerra, os intercetores de mensagens codificadas mantiveram a Frota Alemã do Alto-Mar sob apertada vigilância. De início, foram auxiliados pela velha altivez alemã de que os sinais dos seus emissores de baixa potência não podiam ser intercetados por quem estivesse a mais de 80 km. Isto fez com os serviços de informação navais britânicos estivessem quase sempre um passo à frente do adversário, fornecendo à frota a cargo de Londres informações precisas e atempadas.

Mas tudo se alterou drasticamente, a partir da década de 1920, quando os alemães puseram a funcionar a supostamente impenetrável máquina Enigma. Esta nova tecnologia eletromecânica transformou os originais discos de Leon Battista Alberti em genuínas máquinas giratórias em que uma sequência encriptada podia ser gerada através da rotação supostamente infinita da sequência dos rotores.

Em 1938, os serviços de informação polacos conseguiram descobrir a forma exata de recriar as configurações-chave do código Enigma nos seus três rotores elétricos. O que se revelou uma descoberta surpreendente.

A 16 de agosto de 1939, semanas antes de Hitler invadir a Polónia, os britânicos receberam uma máquina Enigma em funcionamento com um tabuleiro extra de ligações, juntamente com as “cábulas” dos polacos.

Entendamo-nos, a SIGINT baseia-se no uso do material recolhido, o que significa a obtenção de informações em condições de máximo sigilo, para que elas cheguem aos que tomam decisões e a todos aqueles que têm por missão agir tendo por base aquilo que foi reunido a tempo de fazer a diferença. Os decifradores de códigos, sendo necessariamente entendidos e necessários, representam apenas uma peça da engrenagem da grande máquina que são os serviços de informação. De certa forma, transmitir pode ser trair, pois cada vez que se transmite algo, arriscamo-nos a arcar com sérias consequências. Por exemplo, sabemos hoje que os responsáveis pela defesa aérea do III Reich sabiam sempre quando é que uma incursão da aviação aliada estava em curso, escutando as conversas realizadas entre as tripulações das forças aéreas americanas e britânicas aquando dos testes que faziam aos seus rádios antes das descolagens. Eram conversas simples que proporcionavam informação crucial.

É difícil estabelecer uma fronteira onde a ação dos serviços de informação acaba e a vigilância em massa se inicia. 

Nos dias de hoje já é rotineiro o implante de microchips sob a pele dos animais. São pouco maiores do que bagos e funcionam através de uma tecnologia de identificação por frequência de rádio passiva.

A monitorização eletrónica é hoje frequente. Eduardo Snowden, denunciador das atividades da Agência de Segurança Nacional, vulgo  NSA, divulgou ao mundo que esta agência vigiava as conversas telefónicas de, pelo menos, 35 líderes mundiais. Segundo o Le Monde, a NSA acedeu a mais de 70 milhões de conversas telefónicas gravadas de cidadãos franceses num período de apenas 30 dias. É o que se denomina como uma nova forma de controlo social: o Estado-vigilância.

Toda esta situação levou ao estabelecimento daquilo que agora se designa como a comunidade de serviços de informação, ou de inteligência, se preferirem.

 

(continua...)

07
Abr21

Poema Infinito (556): Quando tudo arde

João Madureira

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O dia parece não ter ar. Daí a sensação de afogamento. Os alicerces do desespero são muito sólidos. Os meus olhos são como lentes de aumentar fixando os grãos de areia da nossa dimensão humana. Vamos passar a clareira. A lógica das coisas é inexorável. Umas vezes são as bombas contra a moralidade. Outras vezes é a moralidade contra as bombas. Os sábios antigos acreditavam que registar hinos e histórias sagradas acaba sempre por diminuir o sentimento religioso. Nada existe de mais mágico do que uma narrativa, um poema ou uma oração religiosa a agir na mente, através da eficácia da voz humana convocando a memória pelas palavras da verdade. Há 13,7 mil milhões de anos, o Universo estava num estágio de densidade infinita, com toda a massa contida num ponto com um diâmetro de zero. De repente desapareceu toda a cor do céu. As aves noturnas elevaram-se e mergulharam porque o ar cheirava a chuva. De repente sentimos que nos estamos a extinguir. Oiço desde aqui o som da chuva nos telhados de colmo, o vento nas árvores e os monges cantando no mosteiro próximo. Dentro de casa a luz ficou tão verde como se estivéssemos mergulhados dentro da água de um poço e de súbito abríssemos os olhos. Os loucos vestem-se de espaço. Apesar de os rios subirem e descerem, há sempre uma travessia para fazer a quem quer trilhar o seu caminho. A superfície prateada do rio lento reflete a luz do sol. Tenho o rio só para mim. Os autênticos viajantes cheiram as cidades antes de as verem. Parecia sempre inverno no meu tempo de escola. Todas as coisas florescem por si próprias. As coisas triviais podem desencadear grandes catástrofes. Tudo parece possível quando as folhas novas abrem. Caos, na boa tradição chinesa, tanto quer dizer céu como criação. Tudo é uma parte do sempre. Olho para a velha casa com os olhos marejados de lágrimas. A madrugada é fria. Logo que o sol se ergue sobre as casas, a neblina começa a dissipar-se. Apesar de o espetáculo ser maravilhoso, sou arrasado pela solidão. Visito então os meus altares da chuva. Por vezes, são eles que me veem sorrir. Daqui oiço os gritos dos pássaros esfomeados nos pomares e os gritos das mulheres e das crianças que os afugentam. Os homens preferem atirar-lhes pedras. Por vezes oiço vozes, mas não consigo perceber o que estão a tentar dizer-me. Os objetos agora são negros. Como buracos. Do interior de um buraco negro, a luz já não consegue sair. Depois é o vazio total. A previsão dos físicos tem de estar errada. Os núcleos dos átomos, quando chegam ao mundo quântico, tornam-se manchas, pois a sua expansão altera a dimensão. A árvore da minha sombra fica num jardim público que pouca gente frequenta. Dali vejo a madrugada subir. A sua luz é intraduzível. Vivo aqui de vez em quando. Tento fingir que tudo está como dantes, apesar de nada estar como devia. Até a parva da nostalgia tem dificuldade em encolher para o seu tamanho normal. A casa ficou silenciosa e oca. Os sonhos adquiriram o aroma amargo da perda. Não tenho nada para dar. O amor não é um ato solitário. É difícil suportar o tédio e a solidão. Os solitários despojam-se de tudo aquilo que consideram acessório. A sensação é agora a do tempo finito a tender para o infinito. As portas batem com força por causa do vento e do abandono. A verdade é que tudo arde, até o sangue.

05
Abr21

534 - Pérolas e Diamantes: Os atrativos da busca

João Madureira

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Sempre senti que tive um cavalo a que lhe faltou sempre a sela. E o cavalo até era bom.

 

Sempre fui melhor a escrever do que a pintar paredes e a fugir. Nunca me senti um underground, comigo foi sempre tudo feito às claras. Nunca tive jeito para as mistificações, para as desculpas, para a mentira e para a manipulação.

 

Perante algo que não conseguem compreender, as pessoas tendem a falar e a exagerar aquilo que viram.

 

Eu não acredito em milagres mas nos mais rigorosos princípios da humanidade. Nós temos de acreditar mais nos outros do que nas nossas falhas.

 

A verdade é que cheguei a acreditar que os burros eram mágicos.

 

Uma vizinha nossa tinha um gato amarelo que gostava de devorar pintos e depois ia para os baldios, onde cresciam as papoilas, purgar-se petiscando ervas.

 

Também por ali medrou um rapaz estouvado que se  empenhou em desenvolver um génio ácido e vingativo que ainda hoje conserva. Cada um é para o que nasce. Ou nem para isso.

 

E também havia raparigas que não se cansavam de desfolhar malmequeres para saber se o seu amor estava para breve.

 

Nos bons velhos tempos, os amantes decadentes, burguesotes ou fidalgotes, eram pessoas da boémia que se diziam empenhadas entre o suicídio e uma cruel orgia. Comentam que eram gente boa, artistas ou jovens mestres de línguas ou de outras licenciosidades eletivas.

 

A inspiração flutuava no ar misturada com a aguardente e o fumo dos cigarros. Afirmam que também eram gente empenhada em empunhar, qual espada de mosqueteiro, fatias de presunto e copos de tinto de boa cepa.

 

De feio só havia as fitas mata-moscas junto das portas das casas de pasto. Ou uma que outra criança andrajosa a pedir tostões para o altar do Santo Antoninho. Asseguram que havia muita pobreza escondida. Qual o quê! Não existia era esbanjamento. Não havia era cambadas de incréus, como agora.

 

Também garantem que existia muita conformidade, mas tal era fruto da emoção. A bonomia, quando alguém mais audacioso a expressava, era zelosa e cheia de ponderabilidade.

 

Na nossas vilas e cidades de província guerreavam-se barbeiros e poetas, padres arqueólogos e bacharéis em leis. E também estavam na moda as missas, as festas de beneficência, as temporadas nas termas, as verbenas e a laranjada Flávia. Naquele tempo, apenas o calor de verão era gordo como a carne da pá do porco cevado a lavadura.

 

Muitos cavalheiros partilhavam o mesmo alfaiate e as suas distintas esposas a mesma costureira.

 

Os amantes, mais do que se amarem uns aos outros, amavam o flirt.

 

Muita da instrução era feita através do catecismo: “Padre nosso, rilha o osso, rilha-o tu que eu já não posso”.

 

Não é a presença daquilo que amamos o que nos satisfaz, mas sim a sua recordação. Os fantasmas fazem parte da monotonia.

 

A qualidade, naqueles tempos, era difícil e até misteriosa.

 

E havia velhos tão velhos que até a morte perdia sentido quando olhávamos para eles.

 

Apesar do filme ser colorido, os cenários eram todos a preto e branco. As caras pareciam de fotografia. A maioria das pessoas sentia-se de segunda, de categoria inferior. Alguns de nós éramos visíveis apenas para os nossos pais.

 

Os jovens suburbanos eram impercetíveis. Sentíamo-nos fora do alcance do mundo. Éramos bons a lidar com a tristeza. O que não é coisa de espantar, pois o país era de uma tristeza singular.

 

A busca possui sempre atrativos. A mim aconteceu-me a denominada narrativa da busca. Que é uma forma de tentar combater o amorfismo da vida. Por vezes alivia-nos a angústia de sofrer e sentir o que o mundo é. Incoerente. Depois refugiei-me no estudo e nas ficções. E podia ter sido tudo, só que não foi. Mas é o que agora resta.

 

Mesmo sem querer, aprendi na leitura de Camões o queixume, pois, ao que dizem os estudiosos do cânone literário nacional, não existe outro poema épico em que o seu autor se queixe com tamanha intensidade, que envie tantos recados e faça tantas reprimendas, em que moralize tanto, como n’Os Lusíadas.

 

Foi por isso que me virei para o Quixote, pela ilustração do excesso contra a ilustração do defeito dos Lusíadas.

 

Ficou-me, no entanto, a angústia de Camões ao falar da corrupção na nossa pátria comum.

 

A verdade é que as Tágides que inspiraram Camões eram musas de água doce. Contudo, temos de reconhecer que Os Lusíadas são uma veemente condenação da guerra e do desmando dos poderosos, da brutalização de inocentes e da intolerância religiosa e cultural.

 

Valha-nos isso, pois já não é pouca coisa!

02
Abr21

História da Espionagem - Notas e relatório confidencial (Agente José Manuel) PARTE V

João Madureira

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Haiku nº 4: A grande cidade / espera iluminada / pela colheita das desilusões

Antes de continuarmos, temos de nos entender sobre outra coisa, os acrónimos. COMINT (communications intelligence), são as informações recolhidas a partir de comunicações humanas; ELINT (electronic intelligence), consiste no uso de sensores para obter dados especialmente sobre a rede de defesa inimiga, como alcance de radares, etc.; HUMINT (human intelligence), baseia-se em dados recolhidos por agentes no terreno, nos interrogatórios, etc. (é mais a nossa praia); IMINT (imagery intelligence), está relacionada com os dados adquiridos através de imagens captadas por satélite ou por aviões; SIGINT (signals intelligence), tem tudo a ver com as informações que resultam da interceção, análise, quebra de códigos, etc., emitidas por mecanismos eletrónicos.

Napoleão baseou o seu sistema militar no que ia recolhendo através do reconhecimento efetuado pela cavalaria no campo de batalha, mas, sobretudo, baseado na estratégia HUMINT, com espiões infiltrados no lado inimigo. Ou seja, o sucesso militar francês apoiava-se essencialmente na recolha de informações adequadas e concretas.

Mas voltemos aos EUA. Abraham Lincoln escolheu, para chefiar os seus serviços de informação Allan Pinkerton, um detetive que fugira da Escócia com a cabeça a prémio, tendo fundado a Pinkerton National Detetive Agency depois de chegar à América, a terra das oportunidades. À semelhança da nossa, ou vice-versa, esta agência fornecia serviços de informação e segurança a um consórcio composto por companhias ferroviárias. Pinkerton não percebia muito de serviços secretos, mas sabia o bastante relativamente ao trabalho básico realizado pelas forças policiais. E foi nisso que se concentrou: espiar e apanhar espiões. Com se diz cá na nossa terra: quem faz um cesto, faz um cento.

Mas, entendamo-nos, os serviços secretos não conseguem ganhar batalhas por si sós.

Na Guerra Civil Americana, a União beneficiou enormemente da capacidade que possuía para conseguir supremacia através da mais competente rede de espionagem de toda a guerra. E, o que é mais curioso, fê-lo a partir de Richmond, a capital confederada. À frente da rede estava Elizabeth Van Lew, uma pequena e extravagante solteirona, também conhecida como “Crazy Bett”, uma abolicionista convicta que há muito tinha libertado os seus próprios escravos negros. O mesmíssimo coronel George Sharpe, prestou homenagem ao sucesso inverosímil da superespia, declarando que ele se devia “à inteligência e devoção da senhorita Van Lew”. Apesar disso, mesmo tendo sobrevivido à Guerra Civil, passou o resto dos seus dias como uma verdadeira pária, na Virgínia. O Congresso americano recusou conceder-lhe qualquer tipo de gratificação monetária pela sua astúcia e valentia. Esta genuína mestra em espionagem viveu os seus últimos dias na solidão e na pobreza.

Agora vamos falar de um dos pais da espionagem moderna, o saxão Wilhelm Stieber, que possuía todas as qualidade inerentes a um verdadeiro agente dos serviços de informação: era intrujão, falso, traiçoeiro, fingido e um aliado perverso. Era advogado na Prússia onde se tornou num informador da polícia. Mais tarde foi admitido como inspetor. Durante a revolução de 1848, teve o mérito de ajudar a salvar o rei de uma multidão exaltada, atuação que fez com que fosse promovido a chefe da polícia. Pensa-se que o próprio Stieber, desempenhando o papel de agente provocador, pagou a elementos da populaça para tentarem assassinar o rei, mas com o respetivo aparato, para a polícia ter tempo de agir. Stieber e Otto von Bismark conceberam então os planos expansionistas em prol do Exército prussiano. Conceberam e estruturaram uma das principais potências secretas do século XIX. Durante os vinte anos seguintes, Stieber, na opinião de admiradores e detratores, foi o “cão de fila” de Bismark. Distribuiu por todo o império um rede de informadores clandestinos, daí a confidência de ele ser “chefe para 40 000 espiões”. Conhecia quase ao pormenor toda a situação interna da Prússia através dos inúmeros relatórios e dossiês que recebia.

A sua dedicação e o seu empenho eram tão grandes que, em pleno verão de 1865, o chefe da polícia secreta prussiana percorreu a Áustria e a Boémia, trajado como um vendedor ambulante e conduzindo numa carroça puxada por um cavalo.  Parava em vilas e cidades para falar com as pessoas e com um sorriso nos lábios vendia-lhes a sua mercadoria. O seus alvos preferidos eram as unidades austríacas em manobras. Enquanto aos civis exibia para venda artefactos religiosos e imagens de santos, aos militares, sobretudo aos jovens e ricos oficias austríacos, aliciava-os com um estimulante conjunto de imagens pornográficas. Quando regressou a Berlim conseguiu elaborar para o imperador e o seu marechal-de-campo, Von Moltke, um relatório minucioso acerca dos austríacos, designadamente quanto às delineadas rotas de invasão da Áustria. Ou seja, a esmagadora vitória, em 1866, da Prússia sobre o Império Austro-húngaro, teve tudo a ver com a minuciosa e precisa informação recolhida pelo chefe da polícia secreta.

Em 1870, disfarçado de “empresário grego”, e fazendo-se acompanhar de uma mala cheia de ouro, foi à procura de oportunidades para investimento na indústria francesa, enquanto, dois seus assistentes contratavam dezenas de prostitutas onde existiam guarnições do exército gaulês. Os prussianos aliciaram ainda centenas de mulheres jovens, com “boa educação”, para desempenharem funções de serviçais e de empregadas nas messes dos oficiais franceses, nos hotéis de referência e nas residências dos presidentes de câmara e demais autoridades locais. Como se ainda não fosse suficiente, “o príncipe dos espiões”, como também era conhecido, foi autorizado por Bismarck a recrutar milhares de “trabalhadores rurais” para ajudarem os agricultores franceses durante a época das colheitas. Contas feitas, no seu auge, existia um grupo de 35 000 elementos controlados por oficiais alemães na reserva que tinham estabelecido negócios com as principais guarnições das mais importantes cidades francesas, começando por Paris e terminando em Marselha. Todo este prodigiosos trabalho foi controlado pessoalmente pelo “cão de Bismarck”.

Depois do fim da Guerra Franco-Prussiana, Stieber regressou a Berlim como chefe da polícia secreta de Bismarck. Instalado na capital do Império, o principal responsável pelos serviços de informação montou um bordel destinado à alta sociedade a que chamou “A Casa Verde”, local que passou a ser frequentado por diplomatas estrangeiros, aristocratas alemães e altas chefias militares. Quem sabe nunca esquece. A raposa pode mudar de pelo mas não muda de hábitos. (Agora até me vieram as lágrimas aos olhos com as saudades do Soso. Soso, querido, Soso. Ai Koba do meu coração.) todo o pessoal que ali passou a trabalhar foi cuidadosamente selecionado entre um grupo de agentes da sua confiança.  Meretrizes, informação e segurança passaram a estar ali combinados em natural sinergia. As prostitutas, e os prostitutos, arrolados por Stieber logo passaram a informá-lo sobre os gostos e as antipatias dos distintos clientes, especialmente as suas perversões individuais. Armado com este manancial de informações acerca dos hábitos sexuais e ligações ilícitas, o “velho cachorro” de Bismarck pôde então chantagear muita da sociedade berlinense da época e também um grande número de visitantes estrangeiros de relevo.

Apesar das mais de vinte condecorações pelos seus serviços em prol de uma Alemanha unida e poderosa, nunca conseguiu obter a aceitação social que cobiçava. Na altura do seu concorrido funeral, em 1892, uma enorme multidão de aristocratas fez questão de estar presente, tendo ido atrás do féretro. Os jornais da época, no entanto, noticiaram que os presentes estavam estranhamente alegres. Em Berlim correu a piada de que a presença de tantos figurões foi devida ao facto de os presentes se quererem inteirar pessoalmente de que Stieber estava realmente morto, não fosse o Diabo tecê-las. 

Mas, caros leitores, o trabalho do “príncipe dos espiões” continua vivo nos tempos que correm. De facto, este alemão foi o primeiro responsável pela organização de um serviço de informações nacional a utilizar agentes para monitorizar e controlar a imprensa, os bancos, os negócios e a indústria.

Agora peço-vos que nos detenhamos um pouco nos serviços de informação. Só com um jogo francamente mau é que perdemos uma partida de cartas quando conseguimos ver a mão do nosso adversário. Na política e na guerra, esta competência de ver a “mão do adversário” sempre foi de indubitável importância. No entanto, os serviços de informação militares, são perseguidos pela velha piada, qual Cinderela privada, de que a “inteligência militar é uma contradição de termos”. Maquiavel ensinou-nos que nunca devemos tentar ganhar pela força “o que se pode conquistar pelo logro”. Sun Tzu vai também ao âmago da questão: “Assim, o que permite que o sábio soberano e o bom general ataquem e conquistem e adquiram coisas fora do alcance dos homens comuns é a PRESCIÊNCIA.”

Nem sempre a vitória sorri aos audazes, mas todos sabemos que os êxitos dos serviços de informação resultam, de forma equivalente, das decisões tomadas por comandantes militares e políticos, bem assim como, em diferentes conjunturas,  disso depende o futuro dos respetivos países e povos. Serviços de informação competentes ajudam na tomada de decisões. Mas o contrário também é verdadeiro: se eles forem incompetentes conduzem, inevitavelmente, a desastres, tanto políticos como militares. Mas se os serviços de informação ajudam, não conseguem tomar as decisões pelos seu líderes. A História está repleta de casos em que políticos e comandantes obstinados, ambiciosos e mal orientados ignoraram deliberadamente as provas gritantes que lhes foram apresentadas. Na maioria dos casos, o fracasso ficou a dever-se à falta de conhecimento do inimigo. E também ao excesso de confiança, ignorância, ingenuidade ou meramente a uma incapacidade manifesta para perceber os factos. As derrotas militares estão quase sempre, para não dizer invariavelmente, associadas a desaires dos serviços de informação. Apesar da sua indiscutível importância, a logística e os serviços de informação são muitas vezes tratados como um lugar de repouso ou um abrigo misterioso para indivíduos inteligentes, mas considerados difíceis. Mesmo nas democracias liberais, que sabem perfeitamente que não vale de muito matar o mensageiro, os portadores das más notícias rapidamente se podem tornar impopulares e ver-se marginalizados e esquecidos.

A noção de que a informação vital pode ser desacreditada ou alterada por ser considerada desagradável ou inexata fez com que os modernos serviços que a ela se dedicam passassem a ser ainda mais precisos, robustos e independentes na sua gestão.  O grande objetivo é obrigar os “clientes” políticos ou militares, a reconhecer a verdade que têm à frente dos olhos. Existem atualmente sistemas concebidos para reduzir o erro ao mínimo. 

Ensino sempre aos nossos agentes a definição de inteligência: É o processamento de informação rigorosa que tem de ser apresentada dentro de certos limites de tempo para permitir que um decisor determine qual a ação necessária a tomar. Está organizada da seguinte forma: Direção (pedido de informações), Compilação (plano de recolha); Comparação, Interpretação, Disseminação. Há dois aspetos fulcrais para a inteligência: precisão e atualidade. É crucial compreender a diferença entre “capacidades” de um potencial  inimigo e as suas “intenções”. Exemplo: alguém tem uma arma na gaveta para armar ao pingarelho. Possui a “capacidade” para levar a efeito uma ação violenta. Apesar disso, nada existe que torne evidente tal “intenção”. Esse sujeito apenas revela ser uma ameaça “potencial”. No entanto, se alguém possuir um lápis afiado e o empunhar diante da cara de outrem, revelando a determinação evidente de cravá-lo entre os seus olhos, esse indivíduo passa evidentemente a ser extremamente perigoso. Ou seja, capacidades e intenções são conceitos bastante diferentes. Mas até os melhores serviços de informação fracassam quando são confrontados com as excentricidades e as obstinações da mente humana. Qual a razão que levou Saddam Hussein a invadir o Kuwait em 1991? O que originou a intervenção de Putin e do exército russo no Leste da Ucrânia? Conclui-se que os “contadores de feijões”, os homens aptos para a recolha de dados, geriram a “quintarola” dos serviços secretos e de informação com o propósito da desforra. Depois da recolha maciça de informação e da aquisição de grandes quantidades de dados, frequentemente com altos custos económicos, chegou-se a conclusões muita vezes erradas, a partir das provas recolhidas.

(continua...)

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