Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

25
Jun21

História da Espionagem - Notas e relatório confidencial (Agente José Manuel) PARTE XVI

João Madureira

DSCF3361 - cópia copy - cópia copy copy.jpg

Haiku nº 14: A névoa / deixou a cidade / desmoronar-se

Os islâmicos foram em tempos uma civilização com uma avançada cultura literária e científica. Convém lembrar que a astronomia, a geografia, a botânica, a medicina, a matemática, a poesia e até a metalurgia floresceram em épocas onde a maioria dos europeus vivia no meio de doenças terríveis, do desespero e das trevas.

Por volta de 1095, enquanto uma dinâmica expansão cultural e militar do islão se encaminhava na direção de Constantinopla e da Palestina, milhares de cristãos europeus, crentes e ignaros, derem início a uma longa caminhada com o objetivo primordial de expulsar os pagãos da Terra Santa. Começou dessa forma a Primeira Cruzada. Seguiram-se mais sete que acabaram por implementar um padrão de inimizade atávica entre cristãos e muçulmanos.

De tudo isto resultou o fracasso militar dos europeus mas, por incrível que pareça, o legado que deixaram foi o despertar de um conhecimento e do esclarecimento no Ocidente. Sucedeu o Renascimento.

No início do século XX, deu-se a expansão colonial do Ocidente, tirando partido do desmoronamento do Império Otomano e da retirada do islão em praticamente todas as frentes: territorial, económica, científica, cultural, e ainda na que se veio a transformar na mais perigosa de todas: a religiosa.

No meio de toda esta confusão emergiu uma onda de nacionalismo que colocou de parte a criação de um verdadeiro estado islâmico, à medida que os novos líderes árabes consolidavam a sua posição. Mas até estes se revelaram tão autoritários e corruptos como os anteriores regimes coloniais.

Para homens como Nasser, Assad e o então reempossado xá do Irão, os clérigos radicais muçulmanos representavam somente problemas. Na Síria, por exemplo, os opositores muçulmanos do regime, que tiveram a ousadia de falar foram desaparecendo silenciosamente na versão de Damasco da Lubyanka. No Egipto, a Irmandade Muçulmana foi suprimida e, em 1966, o seu principal teórico, Sayyid Qutb, foi enforcado. Os “corvos negros” do Irão resolveram fugir, para evitar, no mínimo, a prisão.

Entendamo-nos, se ainda é possível. Os clérigos muçulmanos radicais, nas décadas de 1960 e 1970, proclamavam um evangelho de esperança. Com isso conseguiram pôr em polvorosa  toda uma geração pós-colonial de seguidores do islão. A sua única verdade, a sua “causa”, era a divisa: “O Corão é a nossa constituição.” A sua alimentação espiritual passou a vir-lhes exclusivamente das mesquitas.

Para a desgraça ser completa, os acontecimentos ocorridos a nível mundial acabaram por proporcionar aos extremistas e fanáticos a oportunidade pela qual esperavam ansiosamente e que acaba sempre por os unir: Israel. Foi a sua vitória que, ironicamente, acabou por desencadear o grande apelo de mobilização do islão, assim como a apelo às armas.

Pela primeira vez, o “apelo de Alá” transformou-se em sinónimo de oposição a Israel, mas com consequências explosivas. Um das consequências desse chamamento resultou na conclusão de que os apoiantes do Estado judaico eram alvos legítimos para os fiéis islâmicos.

 

(continua)

23
Jun21

Poema Infinito (567): Amarcord

João Madureira

21894404_Z8kkg.jpeg

 

Ainda me lembro das galinhas chocarem na capoeira e das abelhas passarem por nós inchadas de pólen. E de ir à praça com a minha mãe e ver o peixe esventrado derramando uma espécie de água viscosa, onde as moscas pousavam com avidez. Era a época dos exames. E dos santos populares. E dos bailes ao som das bandas e dos conjuntos singulares. E das Marias sozinhas e dos Maneis zonzos. E dos sons dos alto-falantes em declive. E da claridade das manhãs. E do deslizar calmo dos rios. E das luzes nas casas. E das mesas de estudo com livros quase inviolados. E das matinés cinematográficas. As amizades eram poucas. Os costumes levavam quase tudo o que era espontâneo. O sexo. A música. E as ilusões. Dormíamos em divãs. As ceias eram modestas. Tudo era quieto. Os domingos insípidos e os sorvetes sabiam a água e a remédio adocicado. Amávamos a nossa cidade soalheira. As mulheres faziam licores caseiros e talhavam a sua própria roupa interior. As surpresas não tinham perigo. Amava-se a legitimidade, o quotidiano, a prudência e a imponderável sugestão das aventuras. As esposas suspiravam por flores de laranjeira e os esposos pela banalidade da virgindade. Desde que a banalidade fosse amante. A amargura corria rapidamente. E a todos acorrentava. Mesmo os que falavam em coragem tinham as caras empastadas de cobardia e os olhos retraídos e sem fundo. As suas bocas mexiam-se, mexiam-se sempre, em silêncio para aquilo que devia ser dito. E era triste porque bastava um sopro de coragem para tudo se iluminar. Deus era uma espécie de sopro que saía do túmulo de Lázaro. Todo o mundo tinha, ao mesmo tempo, ar de inocente e de culpado. As águas em que nos banhamos, antes de nascer, são as do pecado original. A fé sempre foi a força esmagadora dos incréus. As mulheres eram insípidas, os estudantes luzidios e esmaltados. As raparigas inclinavam-se sobre os ombros umas das outras disfarçando os seus sorrisos de estímulo. Os olhares eram hostis e sorridentes, disfarçavam a falta de beleza fazendo-se de atrevidas, evidenciando uma vivacidade arreliadora e o seu ar de meninas das novenas com laços no cabelo. Essas eram as mais singelas. As meninas de bem usavam tranças ao estilo de heroínas perversas que se escondiam em mosteiros para fugirem das garras de um senhor ditatorial. Riam alto para exprimirem a sua independência de casta. À falta de cavalos de raça, apaixonavam-se por automóveis descapotáveis conduzidos por atores de Hollywood. Todas possuíam almas incolores. Viviam sob o calvário dos preconceitos. Após o casamento, envelheciam a olhos vistos. Depois de preferidas, eram adquiridas e passados poucos anos definhavam como flores podadas pelo jardineiro. Os meninos cavalheiros tinham a pele branca e falavam dos seus heróis santos, épicos cavaleiros do Santo Graal, mas eram incapazes de qualquer tipo de ato heroico. Isso era tarefa dos escudeiros. Pensavam em abater o Tarzan com uma carabina por ser nobre e não se importar de viver entre macacos e vestir umas cuecas de couro e usar um punhal à cintura. Os mais românticos admiravam nos lagos dos jardins as rãs a pularem em cima dos nenúfares à espera do milagre da transformação. Eram exímios a sentirem e a apreciarem o doce cheiro das tílias e o ar fresco de uma noite de verão. Diziam-se admiradores das araucárias do jardins botânicos das grandes cidades. Amavam o amor e aborreciam as mulheres. Este tipo de estupidez não tem cura.  

21
Jun21

545 - Pérolas e Diamantes: O desperdício

João Madureira

Apresentação3-2.jpg

 

Incomoda-me o desperdício. O desperdício de tudo. Até da alma. Eu sou do tempo em que se comia caldo com pão. As entradas eram as ave-marias. E a sobremesa um padre-nosso. A comida trabalhava-se diretamente. Os homens estrumavam as terras com bosta. E com bosta se barrava a porta de ferro do forno onde se cozia o pão. E com ela se tapava a eira para secar o grão e malhar o centeio. Alguns animais tinham até um trato mais cuidado do que os seres humanos. Os bois, ou as vacas, faziam parte da família. Tinham cama limpa e a comida não lhes podia faltar. Podia chover na casa, mas a corte estava sempre abrigada. Os bois faziam os carretos, lavravam os campos e produziam o estrume. Eram animais majestosos, apesar de dóceis e pacientes. O seu olhar parecia sempre doce. Os alpendres das casas estavam remendados com tábuas velhas e a eira era de lajedo. E o caráter da gente estava cimentado pelos anos. Pelos séculos. Dentro das casas guardava-se o pão, a carne e as batatas. O vinho repousava na adega. Na cozinha, a lareira estava sempre acesa. As noites eram escuras e imensas. O inverno permanecia sempre atrás da porta. À noite cheirava-se o isolamento bravio. Nos dias em que cozia o forno, o cheiro do pão inundava os lugares. O bendito cheiro do pão. Por vezes escutava-se o canto dos pássaros e o assobio do vento nos salgueiros. Ainda me lembro das primeiras ervas tenras da primavera. Das mulheres a passarem em frente da casa da minha avó com as gabelas de lenha seca. E também me lembro do cheiro a terra aquecida e molhada. Ou das folhas a fermentarem no chão. Antes do inverno, era frequente os estorninhos puxarem as azeitonas das oliveiras. Depois os dias começavam a ficar mais parados e mornos, porque o sol nascia envergonhado. Os carros chiavam carregados de mato. O bom tempo começava a morrer. A luz tremia. O outono estava por um fio. Lá para dezembro estrumavam-se e lavravam-se as terras para o centeio. Eu olhava com espanto para o meu avô com os socos enterrados nos sulcos, a espicaçar os bois, enquanto, de lado, a minha avó os metia ao rego. O cheiro a esterco era enorme. Noutras leiras, os outros homens faziam o mesmo: deitavam a mão à rabiça e não a largavam. O arado abria o rego e deslocava para o lado a terra luzidia, enfiando no fundo o esterco. E os bois, vagarosos como sempre, puxavam pelo arado, indiferentes aos berros do meu avô. E o avô, curvo, teimava em abrir a terra para lhe enfiar dentro a semente. Lá para o meio da tarde é que se comia a merenda: pão, isco e vinho. Chegada a noite, homens, mulheres e bois recolhiam ao casebre e à corte, cheios de fome e canseiras. Toda a aldeia cheirava a terra e a esterco. Quando se ficava doente, matava-se uma pita e fazia-se um caldo suculento. Se o mal era de morrer, paciência. A avó andava sempre ela e a burra de um lado para o outro. Cheia de trabalho e canseiras. Escondia a sensibilidade. Os sentimentos tinham dificuldade em vir-lhe à superfície. O frio costumava ser mortal para os mais debilitados. Rezava-se entre paredes. Eu fixava-me no terço que corria pelo meio dos dedos magros da avó. No meio da escuridão, apenas reluzia a luz da candeia e o borralho da lareira. E ela sempre a dar-lhe na ave-maria. Por vezes mandava a minha mãe remexer o caldo, porque a avó tinha as mãos ocupadas. Ela nunca deixava cair nada das mãos. Muito menos o terço. Lá fora geava, ou chovia, ou nevava. Depois íamos dormir. Logo pela manhã, a avó acendia a fogueira e punha-se a cantar baixinho. O vento zunia nos beirais dos casas. Quando um aguaceiro passava, logo outro vinha. O pão sabia a dor. E a entrega. E a primavera. E a verão. Tudo corria bem quando as tulhas estavam cheias de centeio e as pipas cheias de vinho. Essa gente queria corresponder ao passado e erguer o futuro dos seus. Esse era o seu conceito de eternidade. O pão que se colhia tinha de chegar para todo o ano. Nós não queríamos encher a barriga. O que temíamos era que o bendito pão não desse para o ano todo. Havia mães que comiam a côdea para dar o miolo aos filhos. E os homens enterravam a mágoa em vinho. Agora o homem tornou-se quase inútil no seu egoísmo. Até simula necessidades que não tem. A terra foi, em tempos, uma coisa muito séria. Hoje é uma inutilidade. Vou acabar citando Raul Brandão: “Eu nunca pude pôr de acordo as minhas ideias com as minhas ações. Se pudesse, já há muito que estava na cadeia.”

Mais sobre mim

foto do autor

Sigam-me

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Pesquisar

blog-logo

Arquivo

    1. 2024
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2023
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2022
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2021
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2020
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2019
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2018
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2017
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2016
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2015
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2014
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2013
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2012
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2011
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2010
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2009
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2008
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2007
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2006
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2005
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D

A Li(n)gar