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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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09
Ago21

552 - Pérolas e Diamantes: Ausências

João Madureira

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É cansativo ouvir os governantes dizer imbecilidades com um ar sorridente. E penso, contraditoriamente, que agora é fácil sonhar com Hieronymus Bosch. Faz sentido. Depois lembro-me dos jardins zoológicos e dos pássaros coloridos e dos jogos da cabra-cega e de um quadro popular com um anjo da guarda a proteger um menino com os olhos vendados, como se ambos brincassem. Vivemos entre paisagens de palavras oníricas e praias repletas de ondas de dúvidas. E os governantes a surfarem as ondas. E nós a precisarmos de tomar a medicação. Depois da sugestão, surge o trauma. E a mão da realidade agarra-nos sem nos darmos conta. Mas de pouco nos serve. Vamos ver se podemos aguentá-la um pouco mais. E a felicidade também. A felicidade é agora uma velha desdentada que me faz chorar. E não acontece nada. Depois sentimo-nos intimidados. A verdade é que agora somos muito mais condescendentes com os malucos. E, seguidamente, um pouco mais dali a pouco, vemos os líderes merdosos a intimidarem a diferença e a declamarem a sua poesia política num estilo dramático e declamatório. A mim dá-me vontade de rir. Coisas. A verdade é que o mito de James Dean já lá vai ao longe e também perdemos o vício de contar estrelas. A beleza desaparecida é como uma cólica renal e o tempo um incêndio doméstico. Hoje, até as princesas procuram um apartamento. E os livros dos clássicos deixaram de ser resilientes. A verdade é que tenho saudades de passar a noite a falar com pessoas interessantes. Ou a jogar bilhar. A retórica é cada vez mais inútil. Continuo sem perceber a razão por que os intelectuais marxistas se repugnam com a felicidade do povo e não gostam de limpar a cozinha. Mas continuo a gostar de morangos com chantilly. Antigamente faziam-se muitos churrascos, agora comem-se saladas vegan como se fôssemos todos pecadores. Mas todos continuam a ter a mesma maneira de ouvir, pensar e até agir. As dietas macrobióticas provocam depressão, por isso a carne passou a ser substituída pelos medicamentos antidepressivos. Não nos podemos rir das festas onde as pessoas tentam ser felizes, apesar de os empregados estarem a servir as carnes frias. Existe sempre a necessidade de combater as pequenas catástrofes. Até porque a tristeza verdadeira é incurável. É bom desconfiar de quem invoca o poder das coisas sombrias. O problema é quando carregamos no play e a vida fica a tremer. Eu gosto das imagens nítidas. Defeito de quem é pitosga. A frequência diária dos déjà-vu é preocupante. Neste caso, recordar é morrer. O esgotamento do sexo pode levar à infelicidade. E, nestes casos, nem a esquerda caviar tem um discurso ideologicamente apropriado. Já a direita opus dei prefere deitar-se na relva e apreciar o delírio carnal do cilício. Eu, confesso, sou mais de beber finos e comer tremoços na Ilha do Cavaleiro. E nunca me queixo da música, apesar de não a apreciar. Ler ainda me entusiasma. É isso e os médiuns das sociedades secretas. E também as liturgias psicadélicas. E a vida eterna dos rituais. É frustrante, mas tenho de confessar que não sei de cor os nomes das constelações. É verdade que quero ir a Moscovo ver a múmia do Lenine. E também a Graceland visitar a casa de Elvis Presley. Ou então à datcha de férias do Estaline ou ao Nerverland do Michel Jackson. Isto está tudo errado. Ainda me lembro quando a minha mãe punha os seus lábios de desaprovação e me abria a palma da mão para corrigir os meus gestos de tensão. E eu esticava os dedos pensando que tudo estava controlado. E também me lembro de andar às voltas pela cidade, atravessando as pontes. A maior parte das vezes sozinho. A solidão também é uma forma de se ser egoísta. Gostamos de viver nas montanhas e também de ir para a praia. E de passear à beira-mar e de sentir o vento na cara. E da alegria. E de não fazer nada. Há canções de embalar para acalmar o sofrimento. Temos de encontrar alguém que consiga abrir a escuridão. Velha receita para adormecer: um apelido de um poeta com A. Não me lembro de nenhum. Apenas de um rosto a emitir luz. Ou então uma estrela em forma de mão. Sonho. Voltei a pôr azeite nos lábios do pai, em vez do batom do cieiro. Secam-lhe imenso. Fim do sonho. Já não me lembro da sua voz. Essa é a primeira coisa que perdemos dos ausentes.

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