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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

09
Set21

Poema Infinito (577): Ao que isto chegou!

João Madureira

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As esperanças eram então velozes, as mãos revoltas e os túneis enormes. Agora o inferno regressa nos dias santos, trémulo como a chama dos fósforos, vacilando entre a glória e a carne. Os outonos são agora muito mais complicados. E os invernos estão muito mais próximos da boca. Escutamos os meses e os seus nervos e as feridas expostas pelo silêncio. O silêncio da coragem foi transformado num novelo, num emaranhado de lugares. As crianças vão com o vento, andam nas ruas como se fossem sítios, defendendo-se dos olhares das pessoas crescidas, determinadas a reduzirem as tempestades, a projetarem a sua sombra sobre as pedras. Ainda não sabem que a sua alegria vai um dia desaparecer. Sinto com mais intensidade a aspereza dos outros, o degredo do amor, a injustiça do tempo. A escuridão tornou-se oca. As razões são mais difíceis, os sinais mais poderosos e os festins mais tristes. Os monstros são mais velhos e torpes. As flores que medem o tempo transformaram-se em metal. Esqueço os sorrisos. Quero-os esquecer. A escuridão é transparente. As cidades começaram a arder por dentro e as bibliotecas, em nome da liberdade, foram transformadas em gaiolas para pássaros. Lá fora as tempestades espantam as crianças que se agarram às mães e às sombras dos avós. Os filósofos teimam em enroscar-se na sua razão. Afago a penugem dos pêssegos antes de os trincar. Passam cavalos, amantes e outros delírios de outono. E corpos esquecidos e várias versões da minha fúria. Deciframos arco-íris no meio das sombras das efemérides. É preciso saber esperar. Até as flores do bosque se transformaram em desilusão. Nascem em mim algumas palavras como se fossem frutos fora de tempo. Escrever continua a ser um ato de subordinação. A calma do mar pode ser um outro cume da esperança. Caminho sobre a areia da praia como se estivesse num enterro. Sempre fui a ruga mais vincada do rosto da minha mãe. O vento verga os choupos e os ramos das azinheiras. Reparo na fadiga das suas folhas, no silêncio dos cedros e no sorriso manso das searas de centeio. O outono demora a partir. Escuto a demolição do sossego, o ranger dos ossos de inverno, as metamorfoses da tristeza, a luz vagarosa da destruição. Doem-me as cicatrizes da memória, como se fossem catástrofes controladas. Algumas palavras parecem-me estrangeiras, encostadas ao tempo, dentro da sua minuciosa inutilidade. Os rouxinóis cantam as suas frágeis canções fazendo com que o frio seja ainda mais cruel. Estendo as mãos à procura do teu rosto. O outono demorou pouco. Escuto o movimento lento das ramadas. Uma cortina de chuva fende longitudinalmente a manhã. Onde está a minha mãe? Vejo ângulos onde antes via arestas. O bosque de Birnam continua a mexer-se em volta da terra. Cresce a impiedade dos homens. Cristo bem pode morrer mais mil vezes que ninguém mexerá um dedo para o salvar. As andorinhas desertaram do céu e voam agora sobre o mar. Chegaram as geadas e o seu abandono. Sente-se no ar um cheiro denso a absinto e a carvalhos velhos. A força das coisas leva à morte. Foram-se os milagres, ficaram as batatas, as favas, as cebolas, os grelos, o centeio. A aldeia parece um barco encalhado no deserto. Este frio é dos antigos. Já não há caminhos de regresso. As máquinas destruíram-nos. Até as árvores deixaram de compreender os pássaros. Ao que isto chegou!

06
Set21

556 - Pérolas e Diamantes: Carlos e Fernando

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 2.jpg

 

O inestimável Expresso foi capaz de num único artigo de duas páginas conseguir esclarecer-nos sobre as origens das principais e notórias diferenças entre os dois candidatos à CM de Lisboa. Um deles, o Carlos Moedas, é filho de José Moedas, um jornalista de esquerda “verrinoso” e “acutilante”, culto e boémio, de língua afiada pelas discussões nos cafés da sua cidade de Beja, onde era correspondente, antes do 25 de Abril, de jornais de Lisboa, tendo mesmo publicado a sua prosa no semanário de Pinto Balsemão. Pertenceu ao MDP/CDE e ao PCP. Um dia foi de visita a Moscovo, o farol do proletariado, e trouxe de lá uma balalaica para o filho. Parece que não deu lá muito resultado na conversão do filho aos ideais revolucionários. O pai Moedas tinha então como controleiro um homem “afável”, mas “duro”, um “ortodoxo”, mais conhecido nos seus meandros pelo pseudónimo revolucionário de “António”, mas cujo nome era Edgar Correia. Esse tal “António”, entre 1973 e 1975, foi um dirigente comunista na clandestinidade. Mesmo depois do 25 de Abril, muitos funcionários do Partido continuaram onde era a sua casa, porque as regras conspirativas se mantiveram mesmo durante o processo revolucionário, pois a situação, durante a tentativa de implementação da reforma agrária, continuava a ferro e fogo. Dizem que andava armado, devido a ser o responsável por Beja, o Alentejo comunista contra os latifundiários. Sabemos agora que “António”/Edgar Correia é o pai de Fernando Medina. Um dos seus “controlados” era precisamente José Moedas. E disso foi informado o edil lisboeta pelo Expresso, que de imediato telefonou a sua mãe, Helena Medina, uma ex-dirigente comunista, pois custava-lhe a acreditar na coincidência. Sim, era verdade. As voltas que a vida dá. Uma coisa sabemos: nenhum dos dois filhos de comunistas teve a tentação de abraçar o bolchevismo, sendo agora ambos os principais candidatos à Câmara Municipal de Lisboa, protagonizando projetos muito sociais. Essa é a principal característica dos dois, o serem profundamente sociais. Carlos é um “social-liberal” e ainda “social-democrata”. Fernando é “social-democrata” e socialista moderado. Tanto um como o outro nunca andaram na catequese dos Pioneiros – organização comunista para crianças –, por causa da oposição dos respetivos avós. Nenhum é de Lisboa, apesar de terem corrido para lá atraídos pelo seu cosmopolitismo serôdio. Fernando nasceu no Porto e Carlos em Beja. O pai Edgar, clandestino em Beja, soube do nascimento e de que a criança era do sexo masculino, através de um anúncio de jornal em código. Fernando apenas tomou conhecimento dessa história quando fez 18 anos, quando recebeu dos seus pais uma reprodução do jornal “O Século” com um classificado assinalado onde se lia: “Perdeu-se álbum de fotografias no comboio Lisboa-Porto.” Se fosse “Porto-Lisboa” era uma menina. Fernando, já crescido, diz que ainda leu parte substancial de “O Capital” de Karl Marx, para saber tudo na tentativa de debater ideias com os pais e os avós, que discutiam muito por causa da política, mas, confessa, que dentro da sua cabeça o materialismo dialético nunca bateu certo com a realidade. Já o jovem Carlos começou a duvidar do comunismo do pai quando pediu que lhe explicasse o conflito entre israelitas e palestinianos. Ele foi direto ao assunto, pois, segundo as suas palavras, era tudo de muito fácil compreensão. Como os americanos estavam do lado dos israelitas, eles só podiam estar do outro. Dizem que a explicação não o satisfez. Carlos revelou-se um excelente aluno, apesar de a sua família ter poucos recursos, a sua mãe era uma costureira com a 4ª classe e também exerceu como auxiliar numa creche. O pai, apesar de escrever crónicas verrinosas, nunca terminou o ensino secundário. Já o Fernando, também aluno excelente, pertence a uma família da burguesia portuense com pergaminhos na luta antissalazarista. Os avós paternos estiveram envolvidos nas campanhas de Norton de Matos e Humberto Delgado. Com as voltas da vida, o Carlos chegou a secretário de Estado de um Governo PSD e o Fernando a secretário de Estado do PS. Carlos ascendeu mesmo a comissário Europeu e Fernando atingiu o prestigiante cargo de presidente da Câmara de Lisboa. Os seus gostos e costumes, são muito semelhantes, mas há uma coisa que os distingue profundamente, o desporto. Medina joga ténis com a mulher. Já Moedas corre seis quilómetros uma vez por semana e faz pilates.

02
Set21

Poema Infinito (576): Gramáticas

João Madureira

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Cada terra tem a sua gramática. As suas sombras. A sua juventude e a sua velhice. O tempo é o responsável pelas suas fraturas. O tempo e o fulgor. E também o acesso ao inverno. Nesse caminho é onde tudo se torna vulnerável. Já não me interessa amar o conhecido. O amor é como uma rosa doente, deformada pelo presente. Eu gosto de pouca luz. Da arte da ilusão. E também da injusta arte da desilusão. Dos limites e dos erros. Da ressonância dos nossos erros. Sempre temi as terras estranhas, a agrimensura das saudades, a tristeza das perguntas. E também o vento dos desertos, o gosto amargo da felicidade e as folhas pontiagudas dos loureiros. Chegaram de repente as noites desmedidas de novembro, consolidando o outono sobre a terra. E a limpidez intranquila da água e os inúmeros cantos dos galos nas manhãs. Alguém abriu as janelas às estrelas. Não sei para onde foram as cigarras. Este outono pode ser punitivo. Dúzias de Camões passeiam na noite, junto ao rio, tentando escrever sonetos, maus sonetos, como sói dizer-se. Por vezes a escrita transforma-se num labirinto intransponível. Os caminhos da memória expõem agora vestígios de várias feridas e conduzem-nos ao casario sombrio e húmido. No palheiro, descansa o feno. Muita gente adoece. A ascensão aos céus nunca é saudável. O espaço abafa a luz e o brilho fulvo dos metais e as distintas anamorfoses que nos rodeiam. O meu corpo estremece tentando evitar a densidade do teu. A uma frase longa responde uma frase curta. Este é o pálido país de mais marés que marinheiros, de pinheiros bravos e regiões anémicas e árvores sem dono e de domingos tristes e de Páscoas inexoráveis e ressurreições bêbadas e de tardes tardias acima da média e de praias anónimas e de palavras ressequidas e de olhares que nunca desaguam e onde todos os poetas são mansos e dizem morrer de desassombro. Todos gostamos de andar atrás das palavras ou na perseguição de vaginas desabridas. Temos o desejo de arrancar as nuvens ao inverno e de lavar os pés dos peregrinos que tomam o caminho da Fátima. Também apreciamos montar as tendas pelos montes e de tocar os clarins em volta das torres de menagem. O tempo da poesia já passou e os Fernandos Pessoas já deixaram de fazer moda. A juventude parece descomposta, ávida do efémero, desconhecendo o crepitar do fogo outonal e a solidão noturna. E o perfume da flor do castanheiro. São príncipes de nada e princesas de coisa nenhuma. Tão pouco conhecem os duendes e os ninhos de cuco. São apenas fãs das praias cheias de gente e dos bronzeadores perfumados e da reflexão das dunas que lhes parecem o deserto estampadas nas fotografias das revistas de viagens. Eu sou do tempo em que os gatos atravessavam as ruas, a chuva molhava os pobres e os jovens se sentavam nos bancos dos jardins para namorar. E as mães não tinham emprego. E os pais embriagavam-se para poderem suportar a puta da vida. Já os anjos andavam de boca em boca como se fossem comida. Ainda me lembro do teu sorriso e dos regaços líricos repletos de lírios e de o vento limpar os caminhos por onde passeávamos. Deus ainda não era dor nem esta imensa ausência. Éramos vítimas da condição da terra e do amor doméstico. Molhávamos os pés na água dos rios e escrevíamos poemas parvos, deliciosamente parvos. Apesar disso tudo, o nosso amor ainda não se transformou numa  palavra de circunstância.

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