561 - Pérolas e Diamantes: A nostalgia mentirosa
Anda a espalhar-se por aí uma onda de nostalgia preocupante. Difundindo a mentira dos bons velhos tempos.
Segundo Svetlana Boym existem dois tipos de nostálgicos: os reflexivos e os restauradores.
Os reflexivos são estetas, colecionadores de documentos amarelos e fotografias em tom sépia e admiradores de igrejas antigas, mesmo não indo à missa. Estes nostálgicos sentem falta do passado e até sonham com ele. Alguns estudam-no e chegam mesmo a afligir-se com o seu próprio passado. Mas não querem o passado de volta, por muitas ordens de razão, muitas delas relacionadas com o facto da velha propriedade da família estar em ruínas ou porque foi sujeita a uma descaraterização que a aburguesou ao ponto de a tornar irreconhecível. E também porque sabem que não iam gostar muito dele. No passado a vida poderá ter sido mais doce ou mais simples, mas também era mais perigosa, mais chata e muito mais injusta.
Os nostálgicos restauradores são radicais. Muitos nem sequer são nostálgicos e muito menos gostam das fotografias antigas. São, sobretudo, produtores de mitos e engenheiros construtores de monumentos e fundadores de projetos políticos nacionalistas. Não se querem ficar pela simples contemplação do passado. E muito menos aprender com ele.
Segundo Boym, os nostálgicos restauradores pretendem “reconstruir a casa perdida e preencher as lacunas da memória”.
Muitos são tão ambliopes que não identificam o passado, mas as ficções sobre ele. Acreditam que o seu projeto é sobre a verdade. Não acreditam que o passado teve nuances e que os seus líderes eram homens com muitos defeitos e que as famosas vitórias militares da História tiveram efeitos colaterais enormemente mortíferos. Só lhe reconhecem as virtudes e apagam da sua memória os terríveis defeitos.
Acreditam na versão caricatural do passado. Querem viver nessa mitificação de imediato. E não o fazem para se divertir. Pretendem comportar-se como acham que os seus antepassados se comportaram, sem a necessária ironia.
Esta nostalgia restauradora quase sempre anda de mãos dadas com as famosas teorias da conspiração ou as mentiras de média dimensão. Muitas delas são tão simples que se limitam a invocar bodes expiatórios em vez da mais elaborada realidade alternativa.
A explicação é sempre a mesma: a nação enfraqueceu porque alguém nos atacou e anda a minar os pilares da nossa identidade e a esgotar-nos as forças e os recursos. E quem é o inimigo? Os imigrantes, os estrangeiros, as elites e a União Europeia. Enfim, a Democracia. Todos eles contribuíram para perverter o curso da nossa gloriosa história e reduzir a pátria a uma caricatura do que já foi. A nossa identidade foi-nos roubada pelos invasores, com o auxílio e a tolerância dos traidores que se fazem passar por patriotas, e substituída por algo reles, abjeto e artificial.
A nostalgia restauradora desemboca sempre nestas teorias da conspiração, baseadas em histórias alternativas sem qualquer base de factualidade.
Para eles, os democratas são homens vulgares, sem ideais sublimes, sonhos redentores ou sequer talento. Por princípio, antipatizam com a ciência, a tecnologia e a modernidade. Não gostam de estrangeiros, sobretudo pretos, ciganos e muçulmanos. E de homossexuais. E de lésbicas. E de intelectuais.
São adeptos da religião interpretada de forma literal, da raça e da vida caseira.
A esquerda gosta de os ridicularizar. Mas eles não perdem a fé.
São adeptos das cruzadas morais e das reformas económicas assentes nos retrocessos dos direitos laborais. E lamentam o facto de a modernidade ter deixado de gerar grandes líderes.
Portugal, pensam eles, está a morrer. E também a cultura lusitana, a religião católica, as leis e o caráter genuinamente português. Os imigrantes estão a ameaçar a nossa identidade nacional.
Estes nostálgicos restauradores, com as suas propostas de revisão das leis pretendem criar o caos constitucional e político.
Os seus ideólogos consideram que vivemos “numa disfunção sistémica das nossas instituições e sob a influência de políticos incompetentes e grotescos”.
Mas uma coisa todos sabemos: a retórica radicalizada e irada apenas gera ódio, guerra e morte.
Definitivamente, há gente que não aprende nada com a história.