576 - Pérolas e Diamantes: O manto diáfano da estupidez
Incomoda-me este frenesim politicamente correto, esta moda autárquica e governativa de derrubar estátuas, mudar os nomes a ruas e praças, universidades, pontes e aeroportos. Vivemos numa era de anacronismo e de revisionismo histórico. Os líderes supostamente democráticos parecem agora os diáconos da correção política. A liberdade anda vigiada, vemo-la pelo canudo destes novos doutores da mula ruça. Incomoda-me esta horda de indignados da treta. São defensores da liberdade de cada um fazer o que eles fazem, de comer o que eles comem, de falar como eles falam e de idolatrar os seus ídolos. Afinal, tudo é tabu, menos o tabu. Coitada da Harper Lee, coitada da cotovia. E não é que a obra-prima da literatura antirracista (Não Matem a Cotovia) foi banida dos programas em escolas do estado da Virgínia, nos EUA, por ter sido denunciada por uma encarregada de educação ofendida com a utilização do termo “nigger” (preto), expressão coloquial conotada com a segregação racial em diversos trechos deste romance delicioso!? Coitado do Mark Twain, também este escritor viu o seu clássico “As Aventuras de Huckleberry Finn” ser vítima de uma nova edição censurada, onde o substantivo “preto”, utilizado 219 vezes, foi substituído por “escravo”. Como se fossem sinónimos, argumentando, o seu mentor, que assim fica mais adequado às salas de aula e pode “exprimir melhor as ideias de Twain no século XXI”, omitindo a realidade e o contexto histórico, pois o escritor viveu entre 1835 e 1910, e o seu livro foi editado em 1884, refletindo a realidade daquela época. Tom Sawyer, do mesmo autor, foi banido de várias bibliotecas norte-americanas, por conter “calão racista”. Várias escolas públicas de Barcelona anunciaram em 2019 que iriam excluir das suas bibliotecas livros alegadamente sexistas, incluindo neste seu índex histórias como o “Capuchinho Vermelho”, “A Gata Borralheira”, e a “Branca de Neve e os Sete Anões”, pois na opinião destes doutores da estupidez, estes contos são “tóxicos”. Estes são três no meio de duzentos. Duas feministas norte-americanas foram notícia porque contestaram o beijo do Príncipe à Branca de Neve, no final no filme homónimo, produzido em 1937, alegando que o beijo “não foi consentido” pois a Branca de Neve estava adormecida naquele momento, exigindo que essa alusão fosse proibida nos parques temáticos da Disney nos EUA. Em Inglaterra, em nome da igualdade das raças, “Tintim no Congo”, de 1931, foi retirado de circulação por “conter desígnios racistas”. Em Portugal, a mera hipótese de inaugurar um Museu das Descobertas, motivou logo uma forte indignação por parte da comunidade académica, argumentando que para os não europeus, a ideia de que foram descobertos é problemática. E por isso escreveram uma carta aberta ao presidente da câmara de Lisboa. Também nos EUA derrubaram várias estátuas, nomeadamente a de Cristóvão Colombo. E na libertária Barcelona, cidade dominada pelo monumento que celebra o navegador genovês, surgiram movimentos que apelam à sua remoção, com base em acusações de genocídio. Em Londres, a estátua de Winston Churchill foi vandalizada, o que levou a que a câmara da cidade a tivesse ocultado dos olhares públicos, tapando-a. Em Paris, a estátua de Voltaire foi atacada, sob a alegação de que o filósofo iluminista do século XVIII esteve associado à Companhia das Índias francesa, que promovia o tráfico de escravos. Em 2016 foi o ano da perseguição e do derrube das estátuas de Ghandi, que de símbolo máximo do pacifismo passou a ser um homem que contemporizou com o colonialismo. Em Portugal, um grupo de iluminados resolveu vandalizar a estátua do Padre António Vieira. E a estupidez vai-se estendendo. No Instagram foram banidas as imagens de um cozido galego, que é muito idêntico ao nosso, com a alegação de que as imagens de enchidos misturados com vegetais “ infringem as normas comunitárias”, pois contêm uma suposta “violência gráfica e linguagem visual que estimulam o assédio ou a nudez e a atividade sexual”. Ou seja, a “violência gráfica” dos enchidos e da couve troncha escandalizam os devotos das religiões fundamentalistas vegetariana e vegana.