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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

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28
Fev22

Como se escreve um haiku

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 8.jpg 

Tenho uma vida tão ocupada, mas gosto tanto de poesia, que a leio em voz alta enfiado no carro enquanto as escovas cilíndricas da lavagem automática fazem o seu serviço. Leio Herberto Helder, Al Berto, António Ramos Rosa, Fernando Echevarría, Fernando Pessoa, etc., tendo como música de fundo os sons mecânicos da estrutura metálica que vai e vem fazendo chuva e depois insiste novamente soprando forte ventania na chapa metálica do meu bólide. Pode não parecer logo à primeira vista, mas um carro a brilhar também tem a sua poesia. Mas não é de lavagens automáticas que vos quero falar hoje. A bem dizer hoje não sei bem do que vos quero falar. E seguramente também não é do meu carro. Podia falar-vos de política, mas não tenho vontade. O que por aí abunda mais são comentaristas políticos, chorões e aldrabões. As televisões estão cheias deles. Há muito quem comente e pouco quem faça. E nas lavagens automáticas também se comenta muita coisa, mas faz-se pouco. São as máquinas quem faz o trabalho árduo. E essas possuem a rara virtude de nada comentarem. Limitam-se a fazer o seu serviço com qualidade. Nas estações de serviço comenta-se o futebol, o preço da gasolina e o tempo. Podemos mesmo dizer que Portugal é um país de comentaristas e pessoas que lavam os seus carros nas lavagens automáticas. As pessoas que vão às estações de serviço gostam muito de comer bolos e beber café. Gostam especialmente de natas, mas também se deleitam com queijadas, croissants, madalenas ou bolas de berlim. As pessoas quando comem, sobretudo bolos, ou bolachas, ou torradas sem manteiga, também têm muita poesia. Especialmente as que comem muito e não engordam. Essas são pessoas afortunadas. Por isso podem ler poesia à vontade pois não lhes provoca efeitos secundários. Não sei se sabem, mas a poesia provoca muitos efeitos secundários. Sobretudo a boa. A outra dá ressaca ou provoca azia. Quando vou a uma lavagem automática, por vezes ponho a música alto para experimentar o som da aparelhagem do meu bólide. E ela tem um som que inebria. Eu comprei o meu bólide, que é um carro sport cheio de genica, por causa, sobretudo, da aparelhagem. Aquela aparelhagem tem muita poesia, é a modos como um poema do Al Berto repleto de vitalidade e sublimação. Depois também gosto de contemplar as gotas de água a deslizar pelo vidro traseiro do meu bólide. Muitas vezes pego na minha Nikon de bolso e fotografo o vidro pejado de linhas sinuosas desenhadas pelas gotas de água sopradas pela maquineta. A minha Nikon de bolso também tem muita poesia. Comparo-a aos poemas haiku. E aqui vos deixo um de minha autoria: No carro sujo / a água / escreve. E é disto que hoje vos vou falar, da poesia haiku e da nobre arte de a escrever. À primeira vista o poema de apenas três versos parece pequeno. E é pequeno. Todos os poemas haiku são pequenos. Têm todos apenas três versos. Mas isso não quer dizer que não dêem muito trabalho a escrever. A poesia é um trabalho árduo. O seu resultado pode parecer singelo, mas não é. Chamo no entanto a vossa atenção para o facto de que o que a seguir se dá conta pode ser o resultado (e foi) de muito mais trabalho do que aquilo que parece. Posso dizer-vos, sem comprometer a minha discrição, que fiz dezasseis cortes, dois acrescentos e cinco revisões. Agora, se estão dispostos à explicação, façam o favor de me seguir. Para escrever o meu haiku comecei por: O meu carro preto e sujo / quando está na lavagem automática a apanhar com a água / fica como se tivesse sido escrito. Convenhamos que assim não fica lá grande coisa. É muito extenso. Há palavras a mais em todos os versos. Então temos de o trabalhar. Desfazemo-nos logo no primeiro verso do pronome possessivo e do primeiro adjetivo, pois os dados relativos ao proprietário da viatura e à sua cor (não a cor do proprietário, bien sur, mas sim a do bólide) não interessam ao leitor, nem importam à qualidade do poema, nem aproveitam à excelência da linguagem poética, por isso vão fora. O primeiro verso fica então: O carro sujo… No segundo verso decido-me por um corte radical (ou melhor será dizer, uma barrela) e fica apenas o nome final que é o elemento fundamental. Então ficamos apenas, e só, com o artigo definido e o nome: a água… Mais um pouco e era harakiri (腹切り) puro, ou Seppuku (切腹). Mas a arte está em saber o que cortar e quando parar. Relativamente ao terceiro verso decido-me mesmo pelo Seppuku (切腹), ou harakiri (腹切り), por isso vai todo à vida e substituo-o pela forma verbal escreve. Sendo assim temos: O carro sujo / a água / escreve. Ficando deste modo, o artigo definido “o” do primeiro verso tem de ser combinado com a preposição “em” para dar lugar ao locativo “no”. Sendo assim, a versão final fica desta forma: No carro sujo / a água / escreve.  Podem os amigos leitores comentar que o único adjectivo também podia ir à vida. E até podia, sim senhor. Mas para a água escrever algo que se veja, o carro, na minha perspectiva, tem de estar sujo. E essa foi a razão porque deixei na terceira posição o adjectivo a adjectivar o que tinha de ser devidamente adjetivado. E por hoje é tudo. 

24
Fev22

Poema Infinito (601): O bater das asas

João Madureira

IMG_4383 - cópia.jpeg 

 

Sempre o mesmo, sempre tão diferente, o mesmo, tão diferente e sempre tão igual. O mesmo. Sempre. O mesmo tão diferente. A noite. A luz. As nuvens. As lavandiscas no meio da erva a debicar as pequenas coisas que só elas identificam. A planificação do desespero. E do resto que nos toca viver. A esperança. A transmissão do musgo. A cor de tudo. A dimensão dos olhares. Os óculos da inteligência. O drama das mães. A mãe gostava muito de pôr lírios roxos aos pés da Virgem de Guadalupe. Sorria-se sempre para ela como se fosse sua filha. A mãe costumava pôr pó de arroz na cara. A mim parecia-me uma japonesa. Bonita. Com os lábios pintados. A mãe pensava que a santa lhe dava sorte. Eu sempre desconfiei, tanto da sorte como da santa. E a vida veio a confirmar esta minha desconfiança. Apesar dos lírios roxos e da santa, o vento teimava sempre em despentear o bonito cabelo da mãe. Nessa altura, o seu rosto era só alegria e covinhas. A mãe costumava vir do lado solar, como se fosse uma deusa pagã. Foi a sua época prodigiosa. Gostava de cantar em surdina, como se fosse uma brisa primaveril. Depois começou a fechar-se no ciclo violento dos meses e as primaveras começaram a ser breves. Eu brincava nos jardins oblíquos, contemplando as árvores e os medos que estavam a nascer. Os canteiros apareciam e desapareciam. Depois veio a catequese e até os Santos começaram a gemer com as bofetadas e os ensinamentos da catequista. Ela gostava de sofrer e de ver sofrer os outros. Provavelmente sentia-se nua perante Deus. Os pequenos anjos davam uivos intermitentes, como se estivessem a sufocar. Havia fogo e geadas imperturbáveis. Janeiro entrou em silêncio. Em volta da casa, as coisas começaram a perder os seus nomes. As vinhas estão por podar e as urzes definem ainda mais a solidão. Esta solidão que parece um vento seco e frio, um vento estrangeiro. Este é o fim da alegria da terra. Crepúsculos lentos prenunciam suicídios. O bater das asas dos velhos pássaros provocam ventos de nostalgia. É preciso aprender tudo de novo: os olhares, a beleza, os epílogos. Sobretudo os epílogos. Sofremos a beleza dos outros, quando a nossa já se foi. Abrimos então os braços de infelicidade. Nadamos a custo no rio da saudade, nesse rio já sem margens. Talvez valha a pena procurar outros espaços e encontrar nova saída. Sinto-me como o pastor Jacob, a servir o Labão do tempo. Tanta labuta para o Pai nos dar sempre Raquel em vez de Lia. Nesse caminho só há raízes e folhas e os odores que alguém trouxe dos bosques bravios. Ouvem-se os pássaros ocultos e enlaçados na folhagem das árvores, enquanto o sol se ergue. Voltaram as geadas. Gado jovem vagueia pelos campos. O inverno está a acabar. Continuas a trazer-me o calor do sol. E paisagens. E piqueniques, passeios, presentes, pequenos nadas. Abro a porta e oiço o som da roda do moinho. E da água a correr pelo córrego. Foi aqui que adquiri a intuição dos pássaros. Demasiado esforço torna-nos indefesos. Agora decanto o vinho e o tempo. A confiar nos meus olhos, a beleza ainda existe. E os pormenores da luz ensinam-nos a transparência. Desvio então o olhar e tudo desaparece. Guardados do medo, encontramos a velha casa. Tudo se foi desfazendo com pequenos gestos. Passaram mil anos, mil pássaros, mil mortes. As pedras não mentem. Nem morrem. Agora é só silêncio.

21
Fev22

579 - Pérolas e Diamantes: Marcelos há muitos...

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 7.jpg 

Marcelos há muitos. Marcelo Caetano, Marcelo Rebelo de Sousa e outros com menos visibilidade, mas, não tão próximos e, ao mesmo tempo, tão distantes de nós. Ambos gostaram (gostam) de falar connosco como se fizessem parte da família. Mas, estou em crer, foi (é) tudo artificial. Ou quase. Desta vez não vou falar do Caetano, até porque me parece mais digno de respeito do que este tal de Rebelo, que é muito vou ali e já venho, ou não torno a descer das palavras para me intrometer nas promessas, ou vou mergulhar nas águas do mar da minha praia, alinhadinho e cinzento. Tudo isto resulta da leitura, um pouco banal, de um livro banal, de um ex-primeiro-ministro banal, intitulado “Memórias”, de Francisco Pinto Balsemão. Um livro grande, muito grande mesmo, que não um grande livro. Mas ninguém pode esperar que um diospireiro dê pavias saborosas e perfumadas. Gente desta estirpe apenas desabrocha em rosas garridas, mas com total ausência de cheiro. Cada povo tem o “Expresso” que merece, no nosso caso, enorme e soporífero.

 

Foi a 9 de dezembro de 1982, a três dias das eleições autárquicas, que Pinto Balsemão, então Primeiro-Ministro do VII Governo Constitucional, recebeu um balde de água fria de Marcelo Rebelo de Sousa. Ou melhor, foi nesse dia que sofreu “a maior traição”, de todas as que lhe fizeram desde que, em dezembro de 1980, foi indigitado como chefe do governo AD. Marcelo Rebelo de Sousa, seu ministro para os Assuntos Parlamentares, pediu-lhe para ser recebido com muita urgência. Balsemão diz que pensava tratar-se de algo importante relacionado com as eleições, por isso marcou a reunião para a tarde desse mesmo dia. Foi então quando, para seu espanto, depois de uma titubeante introdução, Marcelo Rebelo de Sousa lhe revelou o verdadeiro objetivo da audiência: apresentar-lhe o seu pedido de imediata demissão do Governo. Pinto Balsemão tenta saber o porquê de tal intenção, mas MRS fica-se por “explicações vagas e pouco convincentes: cansaço e necessidade de se dedicar à carreira académica”. Pinto Balsemão tenta perceber qual a verdadeira razão de o pedido ter sido feito a três dias das eleições. MRS justifica-se com argumentos de mau pagador. Pinto Balsemão pede-lhe então que o teor daquela conversa fique apenas entre eles e que, apenas após as eleições, se tornasse pública a notícia da sua saída do Governo. MRS respondeu “que isso era óbvio e foi-se embora um pouco às arrecuas”, porque FPB nem “sequer se levantou para o acompanhar”. Na carta manuscrita que deixou na posse do PM, afirma, entre outras coisas, “solidariedade pessoal e funcional” com FPB. Explica também que, “para que não se especule indevidamente sobre qualquer eventual ligação entre esta solicitação – há muito decidida e divulgada – e os resultados das eleições autárquicas, esta missiva é dirigida a V.ª Ex.ª num instante em que é desconhecido o veredicto eleitoral, que espero venha a traduzir-se numa vitória das listas da Aliança Democrática e num reforço da posição do Partido Social-Democrata.”

 

No dia seguinte, 10 de dezembro, a notícia da saída de Marcelo Rebelo de Sousa foi amplamente difundida pela comunicação social. No sábado, dia de reflexão e vésperas das eleições, aparecem as primeiras especulações sobre os motivos da demissão do Ministro dos Assuntos Parlamentares. Aproveitando os ventos de feição, Jaime Gama, do PS, escreveu: “A desagregação da AD é tão grande que o Governo  começa a cair antes de saber os resultados  eleitorais.”

 

Alguns jornais, em manobras de diversão, tentavam atribuir a demissão a um desentendimento entre Alfaia e Marcelo, porque este partira para Inglaterra no dia da interpelação parlamentar ao Governo e Pinto Balsemão o criticara por ter deixado o Secretário de Estado sozinho na Assembleia da República. Outros referiam leituras diferentes da situação política. Outros, ainda, levantavam o velho fantasma de uma remodelação ministerial. Mas todos referiam que a demissão só teria efeito a partir de terça-feira seguinte, o que demonstrava os “inaceitáveis propósitos do demissionário, ao divulgar a sua saída dois dias antes de umas eleições que ele, melhor do que ninguém, sabia serem fundamentais” para Pinto Balsemão.

 

E assim, com mais uma preciosa ajuda de um militante do seu partido, e relevante membro do seu Governo (já sem falar do caminho que MRS tinha percorrido com Pinto Balsemão, “desde que, em 1972, o convidara para trabalhar no Expresso”), chegou FPB às eleições autárquicas de 12 de dezembro de 1982.

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