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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

17
Fev22

Poema Infinito (600): Os sítios de perigo

João Madureira

IMG_4383 - cópia 5.jpeg 

Quantos dias sem importância. Tantos, que nem a saudade mata. Uma forte chuvada trespassou o velho telhado da casa, caindo no chão da cozinha e nos quartos. Tivemos que guardar as camas na adega. Tudo tem um aspeto violáceo. No lameiro, junto ao rio, um touro muge no meio das vacas com a intenção de marrar. As panelas e os potes estão cheias de teias de aranha. Por aqui podemos encontrar repouso e tranquilidade, mas sobretudo desespero. Contra o tempo, não há nada a fazer. A solidão dos campos é desesperante. Há pessoas que têm a beleza que querem ter. Essa é gente abençoada. À tarde fomos apanhar cogumelos. Também os cogumelos estavam tristes. Olho para as montanhas e sinto que o ar ficou mais fino, como o fio de uma gadanha. Quando recordo o pai, lembro-me das muitas perguntas que me ficaram na boca aquando da sua morte. A sua recordação está a ficar invisível, a transformar-se em luz. Há momentos de muito vazio. O vazio também dói. E os caninos da noite a provocarem-nos desassossego. A carne e as batatas que saem do pote já só revelam tristeza e falta de convicção. O arame farpado que demarca a propriedade enredou as penas dos pássaros. As pessoas cheiram a caminho. A bonita figura da felicidade está cheia de palavras. Os meus olhos começam a chorar como se tivessem a sua própria tristeza. É estranha a sensação de se estar a cair no nada. Com a madrugada, chega a sensação de que apareceu algo a que nos agarrarmos, apesar do amanhecer gelado, que deixou geada nas janelas e nos vai entorpecer as mãos. Mudamos de mundo a andar. Um pássaro morre em pleno voo e cai no chão descuidado, no meio das ervas daninhas. Eu, graças a Deus, tenho a fé dos fotógrafos, não acredito nele, mas acredito na luz. Quem domina a luz domina tudo o que olhar alcança.  Lanço o fumo através de uma máquina para ver melhor a direção da luz. Então os seus raios tornam-se visíveis, retos e aparentemente sólidos, tão definidos que parece que os podemos acariciar com as mãos. As figuras estão agora alongadas e sombrias, quietas e tristes. Estranhos estalidos sobem pelas colinas. Uma brisa traz o odor da agulheta dos pinheiros. As bagatelas de uma vida estão todas metidas nos baús. As rendas, os veludos, os laços. E algum ouro antigo. Antigamente havia demasiada gente. Agora há demasiado silêncio e abandono. Até os animais parecem estar em ruínas. Sinto que algo está errado no curso normal das coisas. Um gato abúlico procura o sol dourado da varanda. O ar está cheio de gritos mudos e as coisas parecem asfixiadas, doridas, carregadas de tristeza. Lembro-me de os avós tentarem negar a tristeza e o desespero. Tentavam negar o nada. Por vezes conseguiam-no, através da criação de ondas de alegria ingénua. De uma alegria fina como o gelo da manhã. Tudo por aqui tem o cheiro eterno da terra transmontana. Passam os dias que lembram outros cheios da utilidade inútil de tudo isto. Dias cheios de histórias. Histórias incompletas. Histórias inchadas como troncos velhos no meio da tempestade. Histórias com cheiro a cansaço. E os meus olhos ali, em segundo plano, a tentar perceber a realidade. A tentar perceber o cheiro dos dias ou a sua utilidade. Escuto a barulho da chuva enquanto reparo nos fios de água que vão limpando o pó dos vidros das janelas. O melhor, mesmo, é não nos aproximarmos dos sítios de perigo.

14
Fev22

578 - Pérolas e Diamantes: De Raça

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 4.jpg 

 

Rachel Khan, uma artista francesa, ex-atleta olímpica e jurista, escreveu um livro polémico onde defende que as minorias só separam a sociedade. Nele também critica as quotas contra a discriminação que diz darem força à extrema-direita, pois tornam as pessoas prisioneiras da sua cor.

 

O seu pai é um muçulmano negro, natural da Gâmbia, e a sua mãe uma judia francesa, por isso recusa o rótulo de afrodescendente, argumentando: “Eu não sou. Sou africana e europeia. Quando vou a África vou ver a minha família. Dizer que sou afrodescendente faz crer que vim do tráfico negreiro. Isso é uma espécie de revisionismo.”

 

O seu livro recebeu várias críticas, por ser, segundo os críticos favoráveis, uma pedrada no charco da cultura do cancelamento. Já os negros disseram que uma negra não pode falar assim.

 

De Raça” venceu o prémio de Livro Político da Assembleia Nacional Francesa e foi editado em Portugal pela Guerra e Paz.

 

Em entrevista à Sábado, afirmou ter decidido escrever o livro porque começou a sentir que havia um regresso à crispação identitária, no qual não se reconhece nem um bocadinho. “Já existia o discurso da extrema-direita, mas o que agora surgiu vem de outro lado.”

 

“A humanidade é uma junção de todos: brancos, mestiços, negros, judeus. Essa é a realidade do mundo. É chegado o momento da humanidade evoluir para novo estádio, evitando retroceder para o tempo da segregação racial.”

 

Ao que rezam as crónicas, o livro foi bem acolhido por pessoas de diferentes áreas: artistas, desportistas, pessoas de todas as cores, ricos e pobres. Mas foi execrado pelos racistas, tanto da extrema-direita como da extrema-esquerda.

 

Ao que parece, é impopular afirmar que há racismo de esquerda. Mas foi precisamente por isso que Rachel Khan escreveu o livro, para dizer stop à instrumentalização da cor.

 

Segundo a autora, a extrema-esquerda acredita que ela nega o racismo. Mas o que Rachel faz é o inverso. Por isso acusa a extrema-esquerda de racista por, apesar de ser contra a colonização, praticar a colonização mental.

 

Apesar de se dizerem contra a dominação, esses novos tartufos instalam o medo de nos exprimirmos, exercendo uma nova forma de dominação.

 

E não é um novo tipo de racismo. É o mesmo, mas agora vindo do outro lado do espectro político. A escritora considera que a partir do momento em que classificamos as pessoas com base na raça, o problema subsiste, pois o ser humano é muito mais complexo e mais rico do que apenas a sua raça. De facto, o racismo branco ou negro é a mesma coisa.  Não podemos olhar para alguém a partir da sua cor de pele ou da sua religião.

 

O discurso simplista sobre a identidade é muito imaturo.

 

Rachel Archer considera que “existem comerciantes de raça, que se vendem por isso e utilizam o discurso da vítima. Chegam ao extremo de proibir, como aconteceu nos EUA, um professor branco, especialista em colonialismo, de dar aulas sobre o tema, apenas por causa da sua cor de pele”.

 

E, por incrível que pareça, as pessoas que agiram dessa forma não foram vítimas de racismo, nem de discriminação.

 

Archer esclarece: “As verdadeiras vítimas não são ouvidas. Quando estamos num estado de sofrimento não fazemos selfies para as redes sociais. Essas pessoas vêm dos EUA, das universidades norte- americanas, com um desejo de vingança contra a raça branca. Estão cheios de cólera, têm uma personalidade egocêntrica, só querem fazer ouvir a sua voz. Resumem a riqueza humana ao ódio. É um militantismo descartável.”

 

A verdade é que para as crianças não interessa a cor dos heróis. O seu imaginário não depende disso. “Tanto podem ser heróis brancos, negros ou verdes, como o Shrek. Temos é de cultivar a diversidade.”

 

A artista francesa refere que as minorias rompem a nossa sociedade em milhares de pedaços, pois todos podemos encaixar numa minoria qualquer. Ela, por exemplo, é negra, pertence aos negros, mas também é mulher, encaixa nessa categoria. “Na verdade, usa-se o facto de se pertencer a uma minoria para se construir um clã que se vai opor a um determinado emissário, para reivindicar coisas e para se opor e para se vingar de algo do passado. Para mim, a melhor vingança, em relação ao passado, é reconstruirmo-nos. Só que temos uma sociedade egoísta. A ideia é dominar os outros, antes que nos dominem a nós.”

 

Não vamos negar, há racismo, mas reagir contra extremos através da mesma atitude extremada é uma estupidez e um absurdo.

10
Fev22

Poema Infinito (599): O limiar das coisas

João Madureira

IMG_4383 - cópia 4.jpeg

Ouve-se um toque de silêncio. A alvorada está para acontecer. Os noitibós e as corujas fazem voos descendentes. Diferentes árvores estão encostadas e carregadas de orvalho. Há um cheiro estranho a flores húmidas. O avô, quando entrava no rio com o carro de bois, provocava uma grande agitação na água. E eu ficava pequenino e enrolado no meio dos cestos da vindima. Apetecia-me morder o dia, mas apenas me fixava na luz rósea sob as árvores verdejantes. Entretinha-me a ouvir as rãs. Os meninos e as meninas da aldeia corriam pelos fundos arenosos sem terem de olhar para o chão e conseguiam agarrar-se aos carreiros irregulares utilizando apenas os pés, subindo e descendo as encostas dos pinhais. E bebiam água pela palma das mãos, com as caras debaixo das nascentes. Eu ouvia nitidamente os seus gorgolejos. Vendo certas pessoas é difícil acreditar na evolução. Alguns bebiam água como se fossem galinhas. E mordiam-se uns aos outros como cães. Eu apenas conseguia ver estrelas frias a refletirem-se na água. No chão, formigas vivas e apressadas, andam por toda a parte. Vistas de perto, parecem póneis pretos a cavalgar pela caruma. Na outra margem do rio, um pássaro voa lançando gritos repetidos. As crianças olham para e ele e atiram-lhe pedras. Dizem que é uma alma penada, mas a avó dizia que elas não voam durante o dia. Mesmo não sendo de cá, a mim não me metem medo. O pássaro desce num mergulho fundo, precipitando-se pelo meio das árvores, e volta a subir aos gritos. Muitas das pessoas da aldeia parecem surdas-mudas. Nos domingos, enquanto tocava a chamada para as matinas, eu lia poesia. E o mundo começou a ficar virado de pernas para o ar. A terra fica sempre inscrita na alma. Quando ficava com febre confundia o meu pai com o Mandrake. Também as leituras da tarde me começavam a fazer mal. Lá mais para o fim do dia, fechava os olhos virados para o sol e via a luz a resplandecer e a erguer-se com tal intensidade que atravessava as pálpebras. Lá fora tudo era luz. A avó, a mãe e as minhas irmãs. Tudo parecia mover-se lentamente através da luz. O pai detinha-se no limiar das coisas. Ele e a sua sombra. Eu olhava para o cego da aldeia e não o conseguia compreender. As palavras juntavam-se na minha cabeça, três a três, por causa das trindades. Outras palavras surgem nascidas nos lábios da mãe. A avó escuta. E diz que sim com a cabeça. A mãe sorri. Seguem-se vários momentos de silêncio. A Julinha canta uma canção hilariante e dá pulinhos. Nas têmporas, a sua pele é tão delicada que se veem algumas veiazinhas a palpitar. O mundo parece parar por breves instantes. Depois os pontos luminosos começaram a desaparecer até ficar noite. Os pirilampos começaram a voar por todo o lado, enchendo tudo de rastos de luz. As nuvens e as florestas começaram a esvoaçar pelo espaço. Eu tentava impedir que os meus olhos se fechassem. Lembro-me que o pai observava o céu prelado de nuvens. Olhava pensativamente e fumava. Dizem que a noite ama mais uns que outros. Fazia parte do pai o mover-se constantemente pelos limites do enquadramento da paisagem. Ou pela sua ilusão. Entretinha-se a bater com a vara de salgueiro nas polainas do fardamento, enquanto fumava o seu cigarro sem filtro. Comemos na mesa debaixo da árvore. Era a festa do Senhor da Piedade. A mãe parecia uma begónia cheia de flores.

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