Poema Infinito (606): O sorriso da matrioska
Vou para o campo ver as árvores e a sua alegria desalinhada e a transparência do céu e sentir os gostos de quem gosto. Há uma misteriosa emoção nos rebentos ainda fechados. Jorros de luz atravessam as mimosas. O pai, quando montava no cavalo, parecia o São Jorge. Tinham a mesma melancolia fina na cara. Foi com ele que aprendi a identificar o discreto odor da indulgência. Quando penso no meu pai correm-me sombras pela cara. Ao caminhar, marco cicatrizes na terra que vou deixando para trás. Pareço um cowboy emerso em desespero. Não vale a pena sorrir. Os peixes parecem trespassados pelo fogo. Os monstros correm desvairadamente sobre as paredes. Está na hora de se salvarem. Leves quantidades de egoísmo ainda nos podem defender. Antigamente, as sombras eram quentes. Agora a sua fria abundância assombra-nos. Somos vítimas de vários transes de fascinação. O padeiro já morreu. E parte da vizinhança também. E mesmo o sargento baixinho que trouxe um macaquito de Angola. Os vizinhos que restam têm os olhos cheios de raiva e os ossos carregados de artroses e reumatismo. Fecharam tudo à chave: o heroísmo, a alegria, os biscoitos, a saudade, a solidão, o prazer, as férias e o amor. E as fotografias dos filhos junto com os fios de ouro. Ninguém ocupa o espaço disponível. Andam todos de penumbra às costas, amparados por bengalas ou por andarilhos. O mundo parece querer movimentar-se para trás, à procura da forma primitiva. À procura da criação. À procura da origem. À procura do caos, sem nos apercebermos que tudo isso está mesmo aqui ao nosso lado. Olho lá para fora. Nem uma folha mexe. Só a luz do céu parece tremer ligeiramente. Fixo-me no musgo e na água limpa que corre da fonte natural. A infância renasce aos pedaços. Metemo-nos em casa com medo de tanta luz. O infinito a engolir o finito. O meu pai é agora uma fotografia. A minha mãe é agora uma fotografia. E os meus avós nem isso já são. Bardamerda o shakespeare on the beach acompanhado pelos pinguim café orquestra ou pelos beach boys e o murakami mais o seu kafka à beira-mar. Quando chegamos tarde andamos atrás do eco. Echo and the bunnymen. Bunnymen on the shakespeare hotel. Beach boys e o seu eco. Todos os dias praticamos o absurdo. Sobretudo nos dias santos. Eu pecador me confesso. O meu rosebaud é um carrinho de linhas com que eu fiz um móbil mecânico, com elástico, um guiço de carvalho e uma rodela de sabão. Depois foi só dar-lhe corda. São melhores de aguentar as grandes contrariedades do que as pequenas maçadas do dia a dia. Nunca sei bem aquilo que quero mas estou sempre a querer alguma coisa. Há olhares que estragam todo o entusiasmo. As conversas interessantes deixam-se sempre para mais tarde. Há algo no coração das coisas que não bate certo. O aspeto da permanência envelheceu muito depressa. Tudo parece ter sido pedido de empréstimo. O meus antepassados são agora apenas pequenas manchas na distância. Ouvem-se sons escuros. Com o passar dos anos vai-se perdendo o talento para dizer a verdade. A confissão não resolve tudo. E as penitências apenas aligeiram o fardo. O tempo começa a perder a sua dimensão formal. O tédio e a petulância corrompem as memórias. Enquanto o sol desce no horizonte, ouvem-se ecos dentro de casa. A realidade parece uma boneca russa, com outras realidades mais pequenas dentro. O rio leva hoje a antiga realidade para longe. A matrioska sorri enquanto flutua.