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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

31
Mar22

Poema Infinito (606): O sorriso da matrioska

João Madureira

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Vou para o campo ver as árvores e a sua alegria desalinhada e a transparência do céu e sentir os gostos de quem gosto. Há uma misteriosa emoção nos rebentos ainda fechados. Jorros de luz atravessam as mimosas. O pai, quando montava no cavalo, parecia o São Jorge. Tinham a mesma melancolia fina na cara. Foi com ele que aprendi a identificar o discreto odor da indulgência. Quando penso no meu pai correm-me sombras pela cara. Ao caminhar, marco cicatrizes na terra que vou deixando para trás. Pareço um cowboy emerso em desespero. Não vale a pena sorrir. Os peixes parecem trespassados pelo fogo. Os monstros correm desvairadamente sobre as paredes. Está na hora de se salvarem. Leves quantidades de egoísmo ainda nos podem defender. Antigamente, as sombras eram quentes. Agora a sua fria abundância assombra-nos. Somos vítimas de vários transes de fascinação. O padeiro já morreu. E parte da vizinhança também. E mesmo o sargento baixinho que trouxe um macaquito de Angola. Os vizinhos que restam têm os olhos cheios de raiva e os ossos carregados de artroses e reumatismo. Fecharam tudo à chave: o heroísmo, a alegria, os biscoitos, a saudade, a solidão, o prazer, as férias e o amor. E as fotografias dos filhos junto com os fios de ouro. Ninguém ocupa o espaço disponível. Andam todos de penumbra às costas, amparados por bengalas ou por andarilhos. O mundo parece querer movimentar-se para trás, à procura da forma primitiva. À procura da criação. À procura da origem. À procura do caos, sem nos apercebermos que tudo isso está mesmo aqui ao nosso lado. Olho lá para fora. Nem uma folha mexe. Só a luz do céu parece tremer ligeiramente. Fixo-me no musgo e na água limpa que corre da fonte natural. A infância renasce aos pedaços. Metemo-nos em casa com medo de tanta luz. O infinito a engolir o finito. O meu pai é agora uma fotografia. A minha mãe é agora uma fotografia. E os meus avós nem isso já são. Bardamerda o shakespeare on the beach acompanhado pelos pinguim café orquestra ou pelos beach boys e o murakami mais o seu kafka à beira-mar. Quando chegamos tarde andamos atrás do eco. Echo and the bunnymen. Bunnymen on the shakespeare hotel. Beach boys e o seu eco. Todos os dias praticamos o absurdo. Sobretudo nos dias santos. Eu pecador me confesso. O meu rosebaud é um carrinho de linhas com que eu fiz um móbil mecânico, com elástico, um guiço de carvalho e uma rodela de sabão. Depois foi só dar-lhe corda. São melhores de aguentar as grandes contrariedades do que as pequenas maçadas do dia a dia. Nunca sei bem aquilo que quero mas estou sempre a querer alguma coisa. Há olhares que estragam todo o entusiasmo. As conversas interessantes deixam-se sempre para mais tarde. Há algo no coração das coisas que não bate certo. O aspeto da permanência envelheceu muito depressa. Tudo parece ter sido pedido de empréstimo. O meus antepassados são agora apenas pequenas manchas na distância. Ouvem-se sons escuros. Com o passar dos anos vai-se perdendo o talento para dizer a verdade. A confissão não resolve tudo. E as penitências apenas aligeiram o fardo. O tempo começa a perder a sua dimensão formal. O tédio e a petulância corrompem as memórias. Enquanto o sol desce no horizonte, ouvem-se ecos dentro de casa. A realidade parece uma boneca russa, com outras realidades mais pequenas dentro. O rio leva hoje a antiga realidade para longe. A matrioska sorri enquanto flutua.

28
Mar22

583 - Pérolas e Diamantes: Mais cinco de uma...

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 4.jpg 

Alegre, ou nem por isso, aqui estou, por vezes confinado, outras vezes nem por isso, acompanho-me sorridente sempre no princípio do fim. Ou ainda nem por isso. Eu sou do tempo em que as pessoas se riam, já não nos momentos dos enforcamentos, ou das decapitações, mas quando os anões eram disparados de um canhão, nos circos. Agora a morte decorre em vida, quando nos começamos a sentir como um eletrodoméstico avariado, um empecilho, algo que estorva e é necessário arredar do caminho. Há pessoas que estão condenadas a ir para onde as mandam. Todos tentamos ser úteis, pois necessário não é ninguém. Depois de se ser alguém é difícil voltar a ser um ilustre desconhecido. É difícil resistir ao abulismo das massas mundiais. A maioria apenas está interessada em que tudo esteja no sítio a cada manhã e a cada entardecer. Não sentem excitação, nem falta dela. A acumulação de mediocridade produz um efeito anestesiante. É uma espécie de droga leve. A sua reincidência é que devia ser desnecessária. Mas não é. A capacidade da mediocridade é ilimitada. E não causa angústia. Nem problemas de consciência. O mundo divide-se entre amigos e inimigos. E as desgraças dos inimigos não têm importância, são sempre relativas. O mundo já não é o que era. Ninguém se leva a sério. O problema é que andamos um pouco desorientados, não existe uma sensação plausível de ameaça. Não existe um verdadeiro adversário. O mundo aborrece-se de tudo. Até da paz. Mas há sempre quem nos queira mal. O problema já não é não haver Este e Oeste, mas não existir Norte e Sul. Em vez de autoritarismo, agora temos o ceticismo. Para castigo, é modesto. Mas não é desdenhável. Temos de nos agarrar a qualquer coisa. Mas já andam por aí os de sempre a meter medo, a praticar as más ações e a reativar as piores ideias. Dizem que não vale a pena discutir porque não se consegue convencer ninguém. Acontece que, a maioria das vezes, se discute porque não conseguimos compreender o que o nosso interlocutor pretende demonstrar. Todos receamos ser postos em dúvida. Longe de mim negar o óbvio aos óbvios. Negar a sede de poder é negar a natureza humana e a necessidade da política. Há cumprimentos que têm o condão de nos desagradar. As palavras vulgares indignam os bons sentimentos. Por vezes, sinto-me dominado por um excesso de timidez. A amabilidade de alguns sabe-me a fel. Raios partam este meu mau feitio. Nada substitui a mitologia dos sentimentos conservadores. Nem a perfeita bondade das almas caridosas. Nem os efeitos melífluos da correta amenidade. Escuto com a mais adequada das bondades o discurso judaico-cristão da amenidade. Se todos estão contentes, eu também os quero acompanhar. E admiro a doçura. E a delicadeza. E a amabilidade. E a alegria. E a discrição. E tento evitar falar. E dali me vou, bocejando, até aos territórios da solidão e da impaciência. Até  a estupidez está cheia de sentimento. Quem serve bons amos está sempre contente com eles. E eles com os seus excelentes servidores. Depois deixamos errar o olhar pela cruz, pelas estrelas e pelas fantasias da memória. As lágrimas de piedade sempre me comoveram até… às lágrimas. Por vezes a dignidade quadra mal com a situação em que somos colocados. Daí os sorrisos contidos, irónicos ou mesmo maldosos. Toleramos mal as mudanças impostas. É aí onde entram os políticos que mais não são do que contadores de mentiras a tentarem convencer os eleitores de que estão a dizer a verdade. Por isso criam convenções e iluminam processos e criam uma espécie de realidade paralela. Uma coisa é uma visão da realidade, outra, bem distinta, é a mentira. A vida é feita de diferentes desenvolvimentos, de recuos, recomeços, ecos e repetições. De ímpetos. Os fluxos contínuos resultam apenas das hipnoses. Depois somos empurrados pela memória, pelas circunstâncias. E nós sempre à espera de Godot, tentando cinzelar o destino. Mas ninguém escapa ao seu passado. Também eu gosto de tangos e de boleros e de passodobles, mas não sei dançar. Agora até se dança o fado e sem se sair do lugar. O mundo é um susto. Matamos um passado sem criar um presente. A verdade é que já devíamos estar para além da saudade. Ficamo-nos pela intensificação da mediocridade. Realidade analógica ou digital, vai tudo dar ao mesmo. E venham mais cinco de uma assentada que eu pago já.

24
Mar22

Poema Infinito (605): Mona Lisa

João Madureira

IMG_4383 - cópia 4.jpeg 

 

Na nova Anunciação, Leonardo da Vinci torna a androginia mais evidente do que nunca. O anjo tem pequenos seios e o rosto é ainda mais efeminado. Mas existe um outro desenho do anjo, controverso, mas espantoso. Foi feito no ano de 1513, quando o divino Mestre estava em Roma, e exibe uma versão transgénero lasciva e indecente de O Anjo da Anunciação, com seios femininos e um grande pénis ereto, justapondo os seios de mamilos femininos e o rosto efeminado do anjo com a sua grande ereção e os testículos pendentes, fazendo da pintura um cruzamento entre a caricatura jocosa e a pornografia hermafrodita. É conhecida como Anjo Encarnado ou Anjo em Carne e Osso, constituindo um exemplo extremo da inquietação de Leonardo em torno da fronteira ambígua entre a carne e o espírito, bem assim como entre o feminino e o masculino. Dizem que a obra foi feita por Salai e retocada pelo seu amante e amado Mestre. Tal como nos desenhos de São João, o desenho combina o angélico com o diabólico e relaciona o anseio espiritual com a excitação sexual. A obra evidencia a intenção de alguém ter querido apagar o pénis, mas apenas conseguindo eliminar o tom azul do papel e deixar algumas marcas de rasura. Tudo culminou com Mona Lisa, que é uma obra que retrata as complexidades das emoções humanas, memorável pelos mistérios que encerra o seu sorriso, ligando a nossa natureza com o Universo. Mona Lisa foi pintada numa fina prancha cortada do centro de um álamo, onde foi aplicado um primário de alvaiade, pois o Mestre sabia que esse primário refletiria melhor a luz que atravessava as finas camadas de velatura translúcida, aumentando a impressão de profundidade, luminosidade e volume. A paisagem por detrás da mulher, revela o corpo da Terra como se fosse vivo: os rios como veias, as estradas como tendões e as rochas como ossos. A terra não se limita a ser cenário, flui para ela, faz parte dela. Quando olhamos para o rosto, deparamo-nos com o “efeito Mona Lisa”,  pois a figura olha diretamente na nossa direção. E se nos movermos de um lado para o outro, o seu olhar mantém-se direto. Há um certo mistério no sorriso de Mona Lisa. Quando nos fixamos nele, parece que estremece. E nós com ele. Vasari conta que Leonardo, para evitar a melancolia que os pintores transmitem habitualmente nos retratos, manteve a verdadeira Lisa a sorrir durante as sessões de retrato, através de pessoas especialmente contratadas para tocarem e cantarem para ela. E bobos, para a manterem alegre. Ao olhar diretamente para a boca, a nossa retina capta pequenos pormenores e delineações, fazendo com que pareça que não está a sorrir. Mas se desviarmos um pouco o olhar, e nos fixarmos nos olhos ou nas faces, ou em qualquer outra parte da pintura, apenas veremos perifericamente a boca. As sombras e o sfumato nos seus cantos fazem com que os lábios pareçam curvar-se para cima no sorriso mais subtil de sempre, que cintila ainda mais luminoso quanto menos o buscamos. Quem observa Mona Lisa sente-se envolvido com ela emocionalmente, pois o seu sorriso provoca em nós reações psicológicas complexas. Parece um milagre. Aparenta estar viva e ciente tanto do nosso olhar, como do dela. Não foi em vão que Leonardo da Vinci trabalhou na obra durante a maior parte dos últimos dezasseis anos da sua vida.

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