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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

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28
Abr22

Poema Infinito (610): O brilho estável

João Madureira

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O tempo passa por nós de formas diferentes. Umas vezes acelera como os carros na autoestrada, outras vezes demora-se como uma sombra a avançar lenta pelo chão. Passada a vertigem, o meu rosto mudou. Já nem pareço eu. Os reflexos são exteriores. Certas formas de cegueira, mesmo em quem vê, são reveladoras. É estranha a sensação de estarmos em lados opostos. O deslumbramento faz com que as pessoas que se nos atravessam à frente pareçam menos humanas. Quase sempre estamos fechados no diálogo ou no silêncio. No meio da noite, o silêncio começa a espalhar-se. Alguma roupa interior agita-se na corda e dança ao sabor da brisa. Os fantasmas divertem-se antes de nascer o dia. Vai ser preciso combinar nova revolução. Vamo-nos enredar um no outro de forma conspirativa. Era bom podermos corrigir alguns erros históricos. A primeira vez que vi um padre paramentado pensei que era o equivalente humano de um pavão. Foi estranho ver um homem metido no meio daqueles mantos e vestes, como se fosse uma mulher. Lembro que me encolhi no momento em que o padre espargiu a água benta fria por cima de nós. Sempre pensei que por ser benta era tépida, aquecida naquele pequeno balde de metal. A religião poética passou a ser injusta. Os bárbaros já estão dentro de muralhas. É muito fácil culpar Caim. Nem sequer levanta problemas morais. Mas o verdadeiro culpado é o Senhor que torceu a cara aos frutos que Caim lhe ofereceu e agradeceu com todo o entusiasmo as primícias e a gordura do rebanho de Abel. Deus é doido por ovinos. Especialmente, por cordeiros. O problema não reside na determinação para fazer aquilo que achamos que deve ser feito, mas na forma de fazê-lo com uma certa leveza. Há uma certo júbilo na efervescência dos dias. Na sua espuma. O corpo de algumas pessoas emana um brilho estável, uma espécie de suave fogo azul. Está na altura de dar um murro dramático na mesa. O rio corre turvo, carregado de sementes de árvores e de imagens dos pomares floridos. Daqui a dois meses vai encher-se de sombras verdes que tremem entre os braços de quem nada. Quando chega o crepúsculo, fico com os olhos ainda mais abertos. De verão, a aldeia é envolvida por uma beleza sufocante. Um pouco triste. Por vezes apetece-nos chorar ao entardecer, olhando para o dourado das açoteias, para os vapores que envolvem os telhados. A velha igreja parece navegar pelo ar. O azul liso do céu sem nuvens, passa a vermelho-sangue, depois a ouro e ametista. Entretanto chega a noite. Em vésperas de S. João, acendem-se as fogueiras. Começam então as festas da bruxaria e dos milagres. Deus e o Diabo em Trás-os-Montes. Tudo parece arder em gritos. Os rapazes saltam sobre as fogueiras, provocando as faíscas e a clara magia do fogo enquanto gritam os nomes das suas amadas. Sobem os foguetes no ar ferindo o céu com desenhos luminosos. As raparigas vão recolher o trevo mágico nos campos incendiados de luz enquanto cantam canções camponesas.  A noite ficou claríssima, o céu parece inundado de luz. Os lírios roxos continuam a crescer no castelo. Os olhos dos gatos miam intimidades tristes. Vivemos entre sombras e paixões. As mulheres parecem irradiar luz. A alegria está para além da bondade ou da maldade. E isso dá que pensar. Manhã. Um raio de sol atravessa a janela e pousa delicadamente sobre o pão que leveda na masseira.

25
Abr22

587 - Pérolas e Diamantes: Es ist ein ganz einfaches ding

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia.jpg 

Há sempre entusiasmo no fanatismo, daí o ser tão perigoso e epidémico. A sua simplicidade atrai multidões. A temperança e a moderação não cativam. Aborrecem. Hitler possuía excelentes dotes oratórios, embora da sua boca apenas saíssem imbecilidades, vacuidades e beligerâncias. E era com isso que convencia os seus ouvintes. As pessoas, por muito que nos custe, são sempre manipuláveis. E até apalermadas. É difícil compreender a imoralidade e a crueldade. Tudo é mais ou menos como se quer. Tudo muito amável, muito simples. Ou como dizem os franceses: Est très gentil, très naif… Mas o contrário também pode ser verdadeiro. A deferência pode também ligar-se à indignidade. Os abusos de poder são frequentes. Mas o que não é visto não é lembrado. N’est pas? Na verdade, é tudo muito simples. Ou, como dizem os alemães: Es ist ein ganz einfaches ding. Pelo menos na aparência. Quando a verdade está para chegar a algum lado, acaba por volatizar-se. Há arquiteturas do conhecimento verdadeiramente surpreendentes, de aspeto encantador e das quais poucos são os que se apercebem. Mas são ainda menos os que sabem com que materiais se constroem tão elaboradas estruturas. O tempo aprova e depois reprova tudo. Ou quase tudo. Mas a verdade é que somos todos um pouco maníacos. Ou como dizem (diziam?) os franceses: Ils sont un petit toqué. Ou como afirmam os conservadores, ligeiramente liberais e envergonhadamente progressistas: “Recusamos compreender que os direitos de que gozamos implicam certos deveres.” E o plural é puro gozo, pois a inclusão é apenas feita para os outros. Aqui chegados, só nos resta deitar água frígida no copo. Ou gelo no whisky. Ou. Ou… A verdade é que os deveres públicos parecem multiplicar-se com algum exagero. E, da maneira como isto caminha, ou como dizem os franceses, la façon dont il marche, ninguém vai ter um minuto de seu. Forma ou conteúdo? As dúvidas dependem dos cargos que cada um ocupa. Quando tentamos experimentar o jogo não conseguimos compreender as regras. E, quando, por fim, as entendemos, estamos já sem forças para prosseguir no jogo. Os jogadores sérios são sempre os outros. Aqueles que vigiam atentamente a bola que lhes é enviada e que depois a devolvem com um golpe de raqueta seguro. Mas adultos interessados em jogos de crianças tornam-se ridículos. Todos fingimos divertir-nos. N’est-ce pas imoral? A possibilidade de ser ainda um camarada é até gracioso. As convicções ficam para amanhã. É acertado tentar expulsar o enxame de paradoxos que nos rodeiam. Pode parecer mal, mas, que diabo, não podemos ser submergidos pelas diferenças e, sobretudo, pelas indiferenças. Há abismos que separam a razão até das pessoas mais razoáveis. Há também simpatias que podem ser dolorosas. Quando a ternura se torna ciosa surge a necessidade de afirmarmos a nossa independência. O sancta simplicitas. O bem público, dizem os conservadores, exige sempre lógica e espírito de continuidade. E nós, sinceros provincianos, continuamos ligados à nossa terrinha como as vestais ao fogo sagrado. Ninguém nos tira esta mania. Faz parte da ordem natural das nossas coisas. Só nos resta mostrar boa cara à má fortuna. E divertirmo-nos um pouco. Mas nada é perfeito. A perfeição é uma utopia. Todo o excesso é defeito. A alegria, a tristeza, o desespero, a ternura e o triunfo sucedem-se como uma loucura. Proliferam por cá os cantores e os contadores de banalidades. E são tão entusiastas que conseguiram transformar essas ações em arte. Todas as combinações foram experimentadas. Transformámos a paciência numa obra prima. Isso mostra o nosso caráter. Nós, por cá, habituamo-nos a tudo, principalmente porque vemos os outros fazerem o mesmo. O desgosto dá lugar à alegria. Tratamos então das coisas indiferentes: a cozinha e a política. O princípio dirigente, dizem eles, é definitivamente a liberdade, pois estão absorvidos pelos seus interesses pessoais e pelas frases feitas. Eu é mais ovos com presunto. Eles é, sobretudo, o interesse da nação. A quem aproveitam os sacrifícios do povo? Après avoir offert la robe, devons-nous aussi donner le vêtement? Afinal, não conhecemos todos o vidente Marcelo? Talvez soe melhor em francês, língua que ele tanto preza: Le fameux Marcelo Rebelo de Sousa, le clairvoyant.

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