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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

21
Abr22

Poema Infinito (609): As partículas invisíveis

João Madureira

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Os mais profundos mistérios da natureza estão cheios de poesia. As luzes, as estrelas violetas, as partículas invisíveis, o voo das libelinhas, os cometas, as caudas nebulosas do vapor condensado, os diabos microscópicos, a louca velocidade da alegria, os núcleos atómicos, a faceta lisa dos cristais, o olfato, a divina utilidade dos objetos manufaturados, as palavras mais pálidas, a ênfase das equações matemáticas, a potência do raciocínio, o tempo, a energia dos quanta, a fabulosa complexidade da rudeza e da delicadeza, o princípio da vulgaridade, a insatisfação da alma. Carrego as emoções como um fardo, pois não sei lá muito bem o que elas trazem dentro de si. Uma planta seca floriu de repente, abrindo as suas asas azuis. Os olhos da avó eram azuis. As suas palavras eram azuis. Acreditar nessa realidade é como um susto que nos pregam com a intenção de dizer que gostam de nós. As crianças dormiam o primeiro sono no escano protegidas pela avó e o avô fazia que mastigava uma côdea para beber o último copo de vinho, enquanto olhava alternadamente para os netos e para a sua amada mulher. Como era o rosto dos avós? É estranho, mas é mais difícil imaginar os rostos dos nossos mais próximos do que os dos estranhos. Os ramos da velha pavieira continuam a crescer. O ar está mais fresco, ainda cheira a uma espécie de tristeza outonal. A alma anda agora a comer os sentimentos. Parece um lobo faminto e contraditório. A água ferve. As batatas cozem. As horas derretem-se como os relógios de Dali. Tudo está preenchido por um encanto triste. As sombras dos pinheiros parecem inquietas. Nos bancos de jardim, junto das tílias em flor, um casal de namorados beija-se com o rosto molhado pela chuvinha tépida que acabou de cair. Já não é o silêncio que escuto, mas a tristeza. Ali está a fotografia amarelada da avó com o seu lenço preto na cabeça, atado à moda aldeã. Ela é os seus impressionantes olhos azuis, embaraçada a olhar a máquina fotográfica e a tentar atrever-se a esboçar um sorriso. Uma das mãos tenta apertar o peito. As estrelas cintilantes geram dentro dos cérebros despertos explosões de protões e desmultiplicam as fases e os ciclos da evolução. A avó gostava de as apontar dirigindo o seu dedo indicador às que mais brilhavam. Depois olhava para mim e apontava as que estavam dentro dos meus olhos. Quando me via assustado, sorria e afagava-me a cabeça. A energia é eterna. Os pirilampos dão saltos, como se fossem estrelas cadentes. Sempre tive dificuldade em adaptar-me à imensidão. As plantas costumavam espiar-nos. Por vezes parecia que sorriam. Agora nem mudam de posição. Parecem de plástico, sempre com a mesma cor, a mesma forma e o mesmo pó. Os lábios da mãe, que eram duplicados dos lábios da avó, pareciam-se com os gomos das videiras onde as folhas iam crescer. Tudo era solar, especialmente os olhos que se assemelhavam às janelas lá de casa. Depois veio o Birtelo e pôs-me pendurado na porta para finalizar a reza de levantar a espinhela. Ele a untar os pulsos com azeite do bom. Ele a esfregar os pulsos com o polegar delicado. Ele a rezar como se fosse um anjo barbudo e doce. Já não há anjos como o Birtelo para dizerem à mãe que já comeram e beberam e não cheiram a vinho. O seu caldo de couves rasgadas ainda pousa suavemente na minha língua quando o lembro. Dele. E da mãe. E do pai. E do Larouco cheio de neve.

18
Abr22

586 - Pérolas e Diamantes: E lá vamos andando...

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 8.jpg 

E lá vamos andando, eles e nós, adotando um ar indiferente, dando-nos reciprocamente as honras de entrar. E todos sorriem, evidenciando a imensa categoria das fisionomias destituídas de caráter, apesar do falso ar de originalidade. Os mais tolos, dão-se ares de pintores pré-rafaelitas, mas não sabem sequer esboçar um candeeiro de rua. São descendentes dos mesmíssimos judeus que pediram aos berros a condenação de Cristo perante Pilatos. Os mesmíssimos. Claro que as suas opiniões possuem méritos incontestáveis. Foram eles que se riram com a face carrancuda de Pilatos e com a face serena de Cristo. Nessa cena também lá estavam os soldados do procônsul e, à escuta, o rosto e os ouvidos de João. E, para dar andamento às possibilidades do argumento, aparece Salomé a declamar poesia. Alguém faz troça. Os mais afoitos falam então de Pilatos, das suas qualidades humanas, da sua alma de funcionário e da ignorância do alcance dos seus atos. Aos mais ingénuos, brilham-lhes os olhos. Mas de pouco lhes serve. Os mais sensíveis simulam comoção, lágrimas e ataques de tosse. Fazem conversas avulsas com expressões admiráveis. Louvar os principais dá prazer. Todos sentem piedade por Pilatos. Os espíritos livres libertam os factos dos véus diáfanos que os dissimulam. E meditam. E observam. Os prudentes exibem sorrisos contrafeitos. Estamos a falar ao certo de quê? A arte não suporta a discussão, pois não é uma coisa democrática. Esse é o seu caminho das pedras. Os crédulos e os incrédulos nunca verão as suas dúvidas esclarecidas. Os verdadeiros líderes, nos raros momentos de lazer, dedicam-se ao grave trabalho da pesca, lançando com toda a mestria a linha à água, soltando a boia. Já os seus assessores deitam-se na erva e olham a água com os seus pensativos olhos. E meditam. O ponto de vista dos outros, nestas ocasiões, costuma perder toda a significação. Não se pode trabalhar bem debaixo de processos emotivos. É preciso encontrar o meio caminho entre a frieza e a exaltação. Depois é tempo do líder regressar a casa, fatigado, mas feliz. É avisado não perder a bela arte da pesca à linha. E também a necessária troca de amabilidades. E evitar qualquer intimidade com pessoas a quem no fundo não se estima. Nunca se deve ceder à inveja, pois apenas as pessoas de inferior condição o fazem. Certos encantamentos imprevistos compensam as numerosas desilusões. Há uma enorme distância entre a contemplação e a ação. A paciência é a única receita para o sucesso. Há que escrever e refletir. Refletir e escrever. E saborear a presença de quem nos ama. É necessário atenuar as asserções demasiado categóricas. É preciso preencher lacunas. Plantar cravos, cortar cravos. É preciso cuidar do jardim democrático. É bom lembrar Mateus, XI, 25, “Ele revelou aos pequenos o que escondeu aos sábios e aos prudentes.” Falar de coisas indiferentes pode ser ofensivo. Há pessoas que não foram feitas para este mundo. Nos abraços ainda se misturam suor, sofrimento e desodorizante Chanel. De que é que estamos a falar ao certo? A tarde caminha para o seu final dourado. A maneira como sobe e desce a maçã-de-adão, à semelhança do flutuador de uma linha de pesca, é sempre sinónimo de que algo ficou por dizer. Ouvem-se pequenos ruídos no escritório. Existe sempre a possibilidade da existência  de um roedor, apesar dos raticidas. Dá gosto vê-los eficientes, tecnocratas, enfatuados, sábios, discretos, sumamente importantes e triviais, conciliadores e autossuficientes. Não pretendem somente influenciar o poder, aspiram a ele. Afinal, de que é que estamos a falar? Os verdadeiros problemas de identidade começam quando já não se consegue estabelecer uma relação lógica entre o passado e o presente. Na dúvida, o comportamento aconselhado é a abstenção. Enquanto as experiências se vão prolongando, tudo se enrola e se mostra mais trabalhoso do que nos disseram. Os planos das pessoas de responsabilidade nunca saem lisos como foram pensados e delineados, mas rugosos por causa do atrito humano. Todos envelhecemos, até os planos. Dizem que o tempo anula ou atenua as coisas. O que de certeza sabemos é que as torna indiferentes. Depois de tanto trabalho e de tanta dedicação, é frustrante. O melhor é fingir que o que já não existe, nunca existiu. O que tem de ser tem muita força. Afinal, estamos a falar de quê?

14
Abr22

Poema Infinito (608): O princípio da luz

João Madureira

IMG_4383 - cópia 7.jpeg 

A minha avó foi sempre o princípio da luz, do calor, dos tomates salgados, dos pimentos do vinagre e do presunto perfeitamente curado. E do pão bem amassado e lêvedo. Ao pão sagrado nunca lhe faltou o fermento, o sal, a cruz e a bênção. O avô ocupava-se da lenha que dava para todo o inverno. Mesmo de inverno ficávamos com as bochechas coradas por causa do calor da fogueira. E do pão com toucinho grelhado. E da pinga do vinho. Por vezes caía o silêncio à mesa quando o avô, já um pouco bebido, dizia que o mal é mais forte do que o bem. O avô acreditava que uma alma endurecida suportava melhor as adversidades. Coisa que aprendeu no seu degredo em Angola por ser pai divorciado da primeira mulher. A aldeia costumava sentir a respiração do rio, a trajetória das ruas e dos caminhos, a inclinação dos declives e a mansidão e a calma dos montes. Oiço nitidamente o rangido da neve sob os meus pés. E vejo a luz longínqua de tudo aquilo que já passou. Daqui a pouco contemplarei a chegada dos primeiros raios de sol que darão o tom rosado da vida a tudo o que mexe. Tudo parece renascer sob a luz oblíqua. A avó espantava todos os que a rodeavam com o seu zelo e com a sua capacidade de preencher o dia inteiro com o trabalho. Sobretudo depois da morte prematura do avô. Apesar de analfabeta, a sua avaliação de amigos e conhecidos era certeira. Foi com ela que aprendi a credulidade e a timidez, mas também o ceticismo, a bondade e o feitio explosivo. O seu amor pelo neto era irrefletido, inconsciente, por isso verdadeiro. Este silêncio alarma-nos a todos. O que a avó sabia dava para construir outro mundo. Ter caráter de pesada frontalidade não ajuda nada na poesia da vida. Quem semeia frontalidade colhe muros difíceis de transpor. Quem semeia sorrisos, frivolidades e enganos, tem sempre uma carpete vermelha a florir no seu campo. A verdade é que as pessoas imaginam-se de um modo que não corresponde à realidade. Do pai guardo os sorrisos momentâneos, alguns gestos ocasionais, um suspiro e uma que outra palavra. As duas abas do portão estão abertas de par em par, mas ninguém entra ou sai. O caminho de saibro já começou a desaparecer entre o vermelho das vinhas. Apesar do abandono, o outono continua a aparecer todos os anos. A voz da mãe tomava um acento desesperado quando chamava por mim. E a da avó por ela. E a do avô pelos três. Parecia que alguém ia morrer em breve. E assim foi. Havia no olhar de todos, até de mim, pobre criança, um certo abandono da realidade. Caem pingos grossos de chuva, espaçados, anunciando aguaceiros lentos. O vento dobra a ponta dos ciprestes. Existia por aqui, um cheiro forte a naftalina e a centeio. Agora as arcas e os gavetões estão vazios. E os gansos sobem e descem as escadas a grasnar como se fossem cães de guarda. É antes da alvorada quando o sono é mais doce. As pessoas falam por sussurros, parecem todas emocionadas. Este vento causa dor. A mãe, quando me sentiu crescer, ria significativa e tristemente. Rezava para que Deus lhe revelasse o destino do seu filho. Nunca precisei de um aquário. A avó sempre me disse para ir ver os peixinhos a brincarem na água do ribeiro que passava junto à parede lateral da casa. Essa era sempre uma boa altura para colocar a mim próprio as mais difíceis questões filosóficas. Aprendi a controlar as palavras ou a fazê-las explodir. Ainda hoje, quando aqui venho no verão, vou tomar banho no rio e falar com os peixes. Agora impludo dentro delas.  

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