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“Este é o Marcelo, catano…” “Não pai, este não é o Marcelo Caetano é o Marcelo Rebelo…” “Não, este é o Marcelo, catano… é ele, o troca-tintas… é ele a… é ele a…”
O pior é dizer a verdade. Mais vale que acreditemos numa fábula qualquer. O homem, este em particular, vê tudo a uma luz especial, que é aquela que o favorece, o justifica e a que mais lhe convém.
A mim parece-me sempre um daqueles comediantes antiquados que não fazem rir ninguém. A sua exagerada simpatia é, por vezes, compensada pelo comedimento em alguns pormenores. A sua bonomia tende a eternizar-se, daí a sua quase inutilidade.
De feições finas, sente-se, desde criança, como um principezinho, mas à medida que nos aproximamos apercebemo-nos que não passa de um homem banal. A importância do berço dilui-se com o passar do tempo.
Quando fala parece uma criança imaginativa a emular os filmes que viu e os romances que leu, beijando e acariciando as pessoas como se lhe fossem próximas. Por vezes também exibe alguns laivos de ironia. A sua personalidade tornou-se insuportavelmente volúvel. Ler depressa faz com que se interprete mal a mensagem.
Homens assim apenas são vencidos pela revelação negativa do negativo. São escorregadios e sem lealdades. E rápidos de conversa. Gostam de falar muito e ouvir pouco. Homens assim tratam até por você as crianças. Os novos queques populam à sua volta. Gente meio amaneirada e meia católica. Tudo boa gente.
A verdade é que se está um pouco nas tintas para tudo.
Por vezes, somos vítimas de nós mesmos, dos nossos estupores, dos nossos vazios, hábitos e lembranças.
A sobrevivência não é instrutiva, é apenas humilhante. No poder, a dignidade é a primeira coisa a desaparecer. Vai-se ficando um pouco mais fraco e perdendo as convicções. Capitular é fácil. A fraqueza não tem sabor. A idade faz amolecer e produz inibições momentâneas.
Não é forçoso ver o bem em toda a parte, quando o mal anda por aí espalhado como um vírus que não se vê a olho desarmado.
Mentiria se não admitisse que a felicidade de certas pessoas me dá prazer. Há gente que peca por otimismo nas suas apreciações. Esse é o meu caso. As mentiras fazem parte da ficção.
Os ogres costumam ser lascivos, pontapear cães e serem amigos dos burros que falam.
Ele é o vigilante do país, o homem a quem nada escapa, a não ser as armas roubadas em Tancos. Cala certas corrupções e vigarices para não causar males maiores.
É difícil contrariar as correntes de simpatia popular e a sua sugestão geral. Tudo o que não mata, engorda. Até eu engraço um bocadinho com o senhor. Tem jeito para pôr as pessoas do seu lado. É bom na pantomima protocolar. Passou a vida a exercitar-se em cair nas boas graças dos desconhecidos eleitores cuja confiança teve de conquistar. Aprendeu a contar piadas simpáticas e inofensivas sem se armar em engraçado, a expressar sorrisos acolhedores e abertos, a mostrar o olhar mais inocente possível e a prestar muita atenção, fingindo que lhe suscita um enorme interesse tudo aquilo que lhe dizem ou contam.
A verdade é que o outro do burro e do Ferrari também é simpático quanto baste.
Mas todos sabemos que ninguém é apenas aquilo que se vê. Há uns a quem isso ajuda. Há os outros que se queixam de que lhes faltam pergaminhos.
Vincam-se então as intrigas. Cruzam-se. E até aumenta temporariamente a fé. Deus serve a alguns para muita coisa, seja nas matinas, nas vésperas ou nas laudes.
O homem, este de que falamos, é comedido, não se incomoda, não se inquieta, não se acanha. É um lugar-comum humano, nesta nossa era da desumanização. Tem um olfato bem apurado para sentir o espírito dos tempos. É o sósia perfeito de Zelig, com o seu talento pessoal para o mimetismo, tentando agradar às pessoas de todos os setores da sociedade.
E o povo continua À Espera de Godot, na sua tragicomédia em dois atos, entre o voto e a expectativa, neste país do solidó.
O homem de quem se fala possui também uma aparência diáfana, o que o faz parecer um mecanismo simples. Provavelmente, tudo isso é premeditado. E estudado. Cada um é para o que nasce.
Quem engana e disfarça melhor é quem tem mais probabilidades de conseguir aquilo que quer e de se livrar dos escolhos.
Ninguém sabe ao certo quando alguém está a ser sincero ou a mentir. Há pessoas que acabam por se transformar nas suas máscaras e estas tornam-se o seu verdadeiro rosto.
A planície voltou a tingir-se das cores quentes do ocaso. Há horas e dias hipnóticos e amargos. As terras ficam em silêncio, à espera. Os caminhos estão sempre abertos para quem os quer percorrer. O vento cobre de poeira o rasto dos que partiram. As ruas desertas e silenciosas respiram calma e tristeza. O céu alumiou-se com um incêndio longínquo. A angústia é grande. A ansiedade é grande. O peso do tempo é enorme. Esta alegria não é alegre. Como Betsabé, somos vítimas vingadoras. Quando a mãe compunha a echarpe parece que lhe nasciam asas. E sorria. O pai também sorria por a ver sorrir. Só depois acendia o cigarro sem filtro como se fosse um ator de cinema francês e talvez dissesse jet’aimemoinonplus. Eu acreditava no pai, a beleza não é erótica, é teológica. Faz sofrer toda a gente. É a principal viabilidade do pecado. Do sofrimento. Depois botaram as horas todas em cima de mim. E o tempo começou a correr lento como água sobre azeite. Foi também o meu pai que me disse para desconfiar das pessoas que tinham o sorriso tão fino quanto as hóstias que o padre oferecia na igreja e que se limitavam a ler um único livro vezes sem parar. Depois o pai ficou com a pele parecida com a terra seca depois do verão. As almas costumavam curvar-se no trabalho do campo. Todos aprendíamos com o galo e as galinhas do quintal e quando o pai segurava as éguas para os garanhões ou as vacas para o boi do povo. Afasto esses pensamentos. Nem tudo é pecado. Olho para o passado e parece que está vazio. Olho para o vazio. Fixo-me nele. Os mestres andavam pelos povoados a mostrar as maravilhas do mundo que eram monstros disformes ou anões marrecos. Nós fazíamos caretas. Depois o mestre dava um pontapé num anão e ele dava uma cambalhota, fazendo os guizos e as moedas costuradas na jaqueta tilintarem alegremente. Mas as sereias barbudas ainda eram uma desilusão mais profunda. E o comedor de fogo era o vivo Diabo. E o barbeiro-cirurgião arrancava dentes por entre os gorgolejos horrorizados dos doentes. Havia na aldeia dois ou três atrasados que se babavam muito porque, dizia o povo, tinham mamado nas tetas de uma cadela quando eram pequenos, pois as suas progenitoras ou tinham morrido depois do parto ou tinham ficado secas de leite. Agora sei a razão porque os olhos da mãe por vezes ficavam imperscrutáveis, cheios de luzes estranhas e reflexos que queriam significar qualquer coisa. Todos nos movemos para diante e nunca voltamos para trás. O filme tanto anda para a frente como para trás. Pestanejo. Fecho os olhos. Estendo as mãos. Nunca ficamos completamente curados da tendência para as catástrofes. Ping, Ping, Ping, nem sequer me dou conta de que estou a chorar. Ping, Ping, Ping. Onde andam os pássaros brancos da verdade? Espalhados pelo chão da casa estão os fragmentos de luz. Quilómetros e quilómetros de silêncio à nossa volta. Passou um instante. Passou outro instante. Ao terceiro adormeci. Com o tempo, vamos afiando as nossas arestas, por vezes cortamo-nos nelas. E sangramos. Ao contrário das perguntas, muitas das respostas não precisam de ser dadas através de palavras. O tempo está sempre a esgotar-se. Mais do que a própria perícia, o que me seduz é a sua ideia. As trevas estão dentro de cubos de luz. Esferas dentro de buracos negros. Os olhos da mãe e os olhos do pai a desaparecerem.
Há pessoas assim: riem quando lhes cumpre rir, afligem-se quando se devem afligir e choram quando veem um filme concebido para isso mesmo. Quando lhes contam uma piada ou lhes pregam uma partida riem-se a bandeiras despregadas, mesmo que a piada seja de duvidoso bom gosto e a partida mal intencionada. Compadecem-se abertamente com o sofrimento dos outros e até dão alento aos afetados. E revoltam-se, sem espalhafate, quando se apercebem de tratamentos injustos. São leitoras ideais, pois conseguem reagir obedientemente aos intentos e estímulos dos artistas. Por causa delas, o mundo é um pouco mais suportável. São cândidas e sem duplicidade, propensas ao regozijo e à piedade, sempre prontas a ajudar e a agradar. Quase sempre evidenciam um olhar despistado que a todos cai bem. Os franceses apelidam-nas de coeur simple. São tão inverosímeis que provocam alguma desconfiança, nos mais céticos. Ou cínicos. Vivem sempre no rigoroso presente, sempre apegadas ao seu dia a dia, atarefadas no seu trabalho, entretidas com a família, com os colegas e com os amigos. E ainda com as suas atividades citadinas e com os seus diversos compromissos sociais. Ocupam-se com as coisas necessárias e também com as supérfluas. Não gostam de perder tempo com reflexões, meditações ou contemplações. Nem de olhar para a frente e muito menos para trás. O que já foi passou e o futuro a Deus pertence. Por não serem nem elegantes, nem bonitas e muito menos gozarem de uma impertinente inteligência, tudo se lhes perdoa. Conseguem transformar defeitos em virtudes. Por haver gente assim é que continua a ser bom viver nesta mui nobre e mui leal cidade, que continua a ser um pouco austera e grave e também orgulhosa do seu passado remoto, onde tiveram lugar episódios heroicos – intencionalmente exagerados – de grande importância, o que só enaltece a sua fraca altivez… fraca não, franca, o que eu quero dizer é franca altivez. É costume, nas conversas em família, desprezarem-se levemente as outras cidades da região, por as considerarem arrivistas, de gente com mentalidade de mercadores ou merceeiros, quando não egoísta e lamuriosa, ou foliona, ou complexada, ou presunçosa, ou todas as coisas juntas, pois tais características acintosas, costumam andar de mão dada. Mas, é de crer, que são capazes de ver defeitos nos outros por serem comuns a ambos. Todos possuem um amor-próprio ferido. A fama, para o bem e para o mal, é encarada com sobriedade e dissimulação. É normal deixarem-se cativar pelo que desdenham e dizem detestar. O decoro também provoca cansaço. E a prudência. E as virtudes. E a cultura. Sobretudo a cultura costuma provocar muito cansaço. Por vezes até se elege quem representa a negação de todas essas características.
Primeiro queremos ficar na nossa cidade. Depois, quando pensamos que a queremos abandonar, dá-nos a preguiça. Descobrimos que a única coisa que faz sentido é ver passar os anos e as pessoas a atravessar a ponte sobre o rio. Entretanto deixamos de reparar nas suas mudanças. Habituamo-nos a tudo. Avançamos sempre, sem nunca sairmos do lugar ou chegarmos a uma conclusão. E lá vamos convivendo com vigaristas habilidosos disfarçados de pobres diabos. É o hábito dos sítios pequenos ou de média dimensão, onde habitam contabilistas, comerciantes, trolhas-empreiteiros, professores, enfermeiros, médicos, doutores da mula ruça, advogados, burocratas do estado, bancários, farmacêuticos e taberneiros. Toda a gente se encontra nas compras ou nas festas organizadas pelo município. E cá nos vamos habituando ao som dos sinos, aos nevoeiros e ao monótono correr do rio debaixo das pontes. Já não acreditamos na defesa da cidade ou do país, no asseio e na superioridade moral da democracia, nem na igualdade de oportunidades e de direitos. Qualquer excesso de saber e de independência suscita sempre dúvidas e perplexidade. Tudo se gastou, nada se obteve. Está na hora de nos rendermos. Ah!Ah!Ah! Isso é que era bom.
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