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Alguém deitou um balde de luz no rego que leva a água ao jericó. Até o burro se fartou de dar pinotes e zurrar. A avó pôs-se a chorar. Diz que o avô, que já morreu vai para uns anos, anda a dar murros na porta da entrada da corte dos animais. A mãe canta. O pai foi aos figos ao Selado. A avó desenvolveu o seu analfabetismo até à omnisciência. A verdade é que o avô agora já não a pode proteger com os seus olhos lampejantes, com o seu sorriso lento e ainda ser a sua luzinha na noite. A avó, quando lhe digo que mal me lembro dele, logo me recorda o seu rosto tingido pelo sol, pela chuva e pelo vento, e escuro como o pão cozido no forno. O avô, diz a avó, costumava garantir que havia flores que brotavam mesmo debaixo da neve. Ainda tenho pedaços deles dentro da minha cabeça. A luz da fogueira aflorou a forma das lágrimas ao longo do fundo das pálpebras da avó. Apesar do esforço da contenção, deixou cair duas. Emocionamo-nos, ainda, com os ciclos da natureza. Com o acariciar dos rostos enrugados. Com a recordação das cores. E dos aromas. E dos sons da infância a reverberarem nas paredes da velha Torre. O passado também pode ser presente. Aiô Silver avante. Ei boi ei. Arre. Xó. Chua, chua. Pita, pita. Arreda. Ainda encontro alguns dos velhos olhares nas ruas da aldeia que revelam os rostos sorridentes de quem foi operado ao coração. É tudo uma questão de identidade. Olhos interrogativos, desconfiados, cheios de angústia por causa da pandemia e da guerra. Olhos por cima das máscaras. A crueldade do quotidiano. Temos de combater a pobreza do egoísmo. Sim, era aqui que o avô se sentava no seu banco, debaixo da árvore a comer nozes que partia com o punho. Em vez de se queixar com a dor, sorria. A aguardente dava uma boa ajuda. Eu deitava o pião e ele continuava a rir-se e a dar punhadas nas nozes. Depois os sorrisos foram-se quebrando como se fossem ondas a bater nas rochas. O avô não era uma pessoa qualquer, pois quem faz um carro de bois a golpes de machado é um homem decidido. Naquele tempo as coisas eram bonitas ou feias, sem atenuantes. Cheguei a acreditar que as pessoas podiam ser felizes à força. Bastava bater-lhes. Nos olhos felinos reluz o fogo. É o reflexo da desconfiança. Rumamos ao extremo da vida. Os eixos dos carros que transportam os sacos de centeio chiam em cada curva do caminho. O lado selvagem continua lá, indómito. Quando um instinto falha deve ser substituído por outro. Algumas vezes vencemos o caos, por momentos. Só as nuvens parecem não mudar neste céu sempre em mudança. É inevitável, quando nos cruzamos com o escuro, sermos tocados pela sensação do fim do tempo. É de uma proximidade arrepiante. Ai esta saudade de haver outro mundo, de Ulisses perdido dominando os mares, alimentando-se de claridade, procurando tesouros e amando as suas amadas em abordagens decisivas, em cópulas inadiáveis. Ver cavalgar os cavalos de fogo em direção a nós causa vertigens. Nos templos cobrem de fumo as flores brancas e azuis. É tudo tão melancólico, o afastamento das chuvas, a alegria perpétua das estrelas, a arte excessiva da adoração. Aproxima-se o silêncio do lago grande. A fogueira ilumina o perfil dos avós. Os seus gestos vieram de longe, do lado das montanhas. Os seus lábios trémulos mal sabiam rezar. O seu destino estava cheio de imprecisões. A lentidão também pode ser um delírio.
Aí está o brilho do demónio e as chispas de beleza que entram pelo bairro sem nos darmos conta. A tempestade é inevitável. Os homens afogam-se em vinho. Quero ter a liberdade de não participar. A verdade da dúvida. As obrigações matam-me. Tudo o que é natural desaparece nas convenções. Agora leio as placas colocadas pelo município para tentar entender a cidade e cada vez a percebo menos. Dá-me raiva aparecer como ignorante diante desta gente erudita. Mas a verdade é que o desequilíbrio é irresolúvel. Esta gente possui outro domínio das línguas, das dicções e dos sotaques. Nem parecem de cá. Por vezes, também não parecem de lá. Apesar das linhagens e linguagens diferentes, somos todos patriotas. Mas… bem, agora deu-me para me armar em pedante. É da velhice, caros amigos. É da velhice. A verdade é que não sou bem português. Sou sobretudo transmontano, com ascendência galega. É isso que julgo ser. Esquecemo-nos muito mais do mal que causamos do que daquele que nos é aplicado. Não saímos das armadilhas que impomos sem mácula. Quando se sente frio é quando se está melhor ao sol. Agora anda toda a gente armada em gastrónoma. E não existe nada de mais entediante do que falar de comida. Ou de política. Todo o bom político é um mestre pasteleiro. Estamos todos um pouco fartos de ouvir paleio avulso sobre tretas alimentares, ou políticas, ou sobre qualquer outra amena e deslumbrante imbecilidade. Agora armamo-nos todos em mundanos simpáticos, sem nos esquecermos do tal sorriso prévio. Mas o passado é um intruso do qual dificilmente nos mantemos à distância. E isso tanto é válido para nós como para os outros. Eu, como muitos outros, fui educado à antiga. E, como todos sabemos, ficam sempre em nós os vícios da educação original: as dúvidas, as reservas, as objeções e os remorsos antecipados. E também um forte sentido de lealdade. E convicções verdadeiras. Ensinaram-nos que é necessário saber de tudo um pouco, o máximo possível, no nosso trabalho. Que é preciso estudar História pois é aí que estão os ensinamentos, as instruções e os modelos de comportamento. Afinal, por muito que nos custe, nós apenas nos deparamos com as variantes do que já aconteceu. A crueldade é contagiosa. O ódio é contagioso. A fé é contagiosa. O fanatismo é contagioso. A mentira é contagiosa. A loucura é contagiosa. É contagiosa também a estupidez. A responsabilidade é sempre alheia, por isso é que a irresponsabilidade se espalha por aí como erva daninha. À estupidez, a razão não lhe faz mossa. Mas até Cervantes participou na batalha de Lepanto e ficou com uma mão inutilizada. Intitulava-se “o maneta são”. Dizem-me que as ostras são frescas. O problema é que eu não gosto de ostras. Dizem que sabem bem com umas gotas de limão e que não é necessário trincá-las. O problema é que eu não gosto de ostras. Com limão, sem limão, trincadas ou engolidas. Não gosto de ostras. Nem de beija-mãos. Criticar é mais fácil do que compreender, mas, como já disse, eu não gosto de ostras. Duvidei e ainda duvido de tudo, ou de quase tudo. Claro que não duvido das ostras nem da sua frescura, quando estão frescas, claro está, pois de outro modo não se podem comer. O problema é que não gosto de ostras, ao contrário destas novas gerações aceleradas, pragmáticas e sem problemas morais. Agora cumprem-se as obrigações sem questionar o estilo do mundo. O que não levanta problemas e dúvidas também não deixa recordações. E por aqui anda a província, na sua grande tacanhez e pequena violência, na sua pequena intriga, no trabalho surdo da manipulação. Por aqui todos são aprazíveis cães do dono, fiéis e incultos. A curiosidade provinciana é maligna. A chuva que por aqui cai é sempre monótona e fria. Nas reuniões e na missa aprendemos a reprimir os bocejos, sobretudo quando a elas assistem os notáveis da treta. Pequenos industriais, pequenos comerciantes e pequenos políticos sentam-se à mesma mesa para distribuírem equitativamente as migalhas que sobram do manjar do poder central. E os que resistem são amavelmente colocados num plano inclinado onde não param de escorregar.
O alpendre está cheio de raízes e folhas. E o caminho cheio de tojos e urzes e giestas. Uma fraca luz de um cinza-azulado, que entra pelo janeluco, ilumina o espaço. O ar interior é insípido. Há água da chuva sobre terra e alguns guiços espalhados pelo chão. E também teias de aranha e bolor. Encostados à parede estão o velho arado, a grade, as molhelhas, o engaço, a sachola. Tudo tão morto que dá raiva. O rosto do Mafarrico é formado por linhas verticais. Os seus gestos são cortantes como facas da matança. As palmas das mãos estão viradas para baixo para não se ver aquilo que não têm: as linhas da morte. Avança depressa para sair do alcance do círculo de luz que entra pelo buraco redondo. Mas uma rapariga supera-o em poucos passos. Apenas antevejo instantâneos da sua imagem. A velocidade fá-la esvoaçar. Tudo se despedaça em silêncio. Agora sou eu que corro, mas em câmara lenta. Oiço um sibilar de partículas atómicas e de memes. Cada passo espera pelo outro. O tempo dilacera o espaço. Viajo através da penumbra até à luz do dia. Tudo parece conceptual ao nível do chão. Tudo vem até mim a um ritmo constante, ideias, fragmentos, pedaços de histórias e memórias. A natureza do tempo mudou. Os enigmas continuam enormes e silenciosos. O verde em redor é acutilante. Porquê tudo isto? Porquê? Regressar é como sofrer uma morte silenciosa. Os fantasmas são-me familiares. O seu rosto honesto, a sua confusão. A sua vulnerabilidade. Tão depressa como surgiu, algo que não consegui identificar, desapareceu. Tudo o que nos era familiar pode tornar-se desconhecido. O velho gato continua a chorar as ausências. E a olhar distraidamente para a porta da cozinha. Pequenas explosões de orações impressas espalham letras por todo o lado. Parece um desfile de carnaval. Depois do crepúsculo, o azul fica cada vez mais escuro. O gato deixou de chorar. Apesar de não haver guerra, existem muitos tipos diferentes de batalhas. Ando a lixar a tinta das portas da velha casa até à madeira. Sem objetivo. Concentro-me só em lixar. A cidade parece-me, por vezes, uma tranquila insónia de nevoeiro que toma conta dos arrabaldes até os deixar submersos. Tenho sempre uma sensação de urgência dentro da cabeça. O vento não tem destino. A paciência é lenta. E desinteressada. O que faço eu com ela? E com as surpresas previsíveis? Algumas mulheres parecem lençóis de mar. Agora adormeço entre vagares. Fixado nos seus olhos negros, na sua boca enorme. A escutar murmúrio de vozes. Ainda lembro o recorte dos movimentos da avó em frente da luz da candeia. A casa parece diferente, mais pequena, fechada, envolta na incerteza do futuro. A verdade é que os espaços costumam tornar-se um pouco sagrados quando ficam desertos durante algum tempo. Tem tudo a ver com a tranquilidade. A minha voz ecoa com aspereza no espaço vazio. As extensões do tempo são agora mais coloridas. Os olhos do velho gato continuam a brilhar no escuro. A minha ingenuidade infantil comove-me com uma espécie de tristeza perplexa. Os malmequeres continuam a crescer no meio das ervas no antigo recinto das crias. A chuva ainda acende o verde das árvores. A água cintila em cada flor silvestre. O velho gato agitou-se e deu um salto em direção à rua onde se engalfinhou com outros que por ali andavam à caça. Nem tudo está perdido.
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