Poema Infinito (619): Incandescências
A lua fica por vezes incandescente. Pequenas, pequeníssimas, imperfeições podem construir uma grande perfeição. Por isso te beijo. Por isso te amo. Cinco sereiazinhas nos levarão. Alfonsina já pode ir, vestida de mar, mas nós ficaremos para sempre, mais um pouco, juntos na aurora, a ouvir o contrabaixo de Avishai Cohen. Eu e tu e os nossos cavalos marinhos e a sereiazinha que sorri e canta ah, olá, bá e tataratatataratá. Todos juntos a chorar de tanto rir. E a rir de tanto chorar. Arrefeceram as sombras dos ciprestes ao crepúsculo. Um vento forte chicoteia o cimo da colina, dobrando as árvores. É difícil resistir à erosão. Somos pássaros no meio da tempestade. O domínio da fé necessita de muita má-fé. Os verdadeiros crentes são alucinados. Os sinais inamovíveis confrontam a tolerância, os desastres e as aventuras. Temos de continuar a procurar a história cultural do amor. O livro está cheio de vozes e do perfume das flores noctívagas e de reminiscências e de coisas extraordinárias. E de profecias. E de mitologias. E de abalos. E de tensões. De pessoas invisíveis. De histórias esquecidas. E de amores em forma de antibióticos injetáveis. Rodopio os olhos, assimilando o calor, as pessoas, os animais, as flores, as árvores. Os movimentos e a energia. Começam então os jogos mentais. O ar crepita. Fixo-me no sítio onde as maçãs caem. Frutos caídos são sempre comoventes. Parece que perdem o seu fascínio. As grandes aventuras prodigiosas acabam sempre em tragédia. Ironias são pérolas do desalento. Todos os corpos possuem o seu próprio atlas antes da posse ou da possessão. Antes do toque ou da dor. Antes daquilo que é preciso. Antes das vozes serem engolidas pela espuma. Os colibris também morrem cansados da velocidade com que batem as asas. Provavelmente Deus fala através de ironias incomuns. O tempo é agora um círculo infinito e ardente. Arcos de luz giram à nossa frente. Subo à montanha para me aliviar da dor. Olho para a terra abandonada e agarro-me às memórias. Deixo a porta aberta para que o luar entre. Deixo a porta aberta para que o sol entre. As fotografias dessa altura são todas mentais: os cabelos curtos dos rapazes, as longas tranças das raparigas, os corpos magros, os sorrisos malandros, os olhos fogosos. O ar da montanha entardece. A pele vibra. A minha aldeia é o centro do mundo, cheia de ângulos tensos e de uma energia brutal. Muito sangue antigo corre por este lugar. A guerra entre deuses rivais atenuou-se. Sussurramos os nomes dos antepassados enquanto marchamos montanha acima. Raios de luz desfocam o cume. Ajoelhamo-nos no topo do nosso mundo. Agora já podemos descer a montanha. Tataratatataratá olá ah bá canta e sorri que a sereiazinha e os nossos cavalos marinhos e tu e eu vamos escutar o contrabaixo do Avishai Gohen a navegar e depois vamos juntar a aurora um pouco mais e ficar para sempre vestidos de mar e verde e Alfonsina a levar no colo as cinco sereiazinhas por isso te amo por isso te beijo as perfeições que são tão imperfeitas e tão pequenas pequeníssimas como pó de estrelas. São estas as novas reminiscências das coisas extraordinárias. O cume da luz. Histórias invisíveis. Pessoas esquecidas. Pessoas lembradas. Pessoas amadas. Colibris a eclodir. Olá Rute. A tua luz vem lá de cima. Muito lá de cima.