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Saímos para a luz plana do dia. Escutamos o bulício da manhã. Tudo isto parece um logro, uma raiva dissimulada do tempo. Este tempo que parece flutuar levemente e que nos mata devagarinho. Nos degraus da escada pousaram raios de sol leves e lisos. Seguimos com o olhar o ponteiro-sombra no relógio de sol. Todas as coisas são mais bonitas vistas de longe. Todas, menos os teus olhos. Lá vem mais uma velha a descer o monte. Parece que calcorreiam estas colinas a vida inteira, de bengala. As suas casas olham para poente, com indiferença. A neblina parece brilhar. Perto do cemitério abatem várias árvores centenárias que ameaçavam desabar. Dois papagaios de papel voam em despique no céu, agitados por dois homens adultos, enquanto algumas crianças observam e gritam alto, como se os quisessem apanhar. Caminhamos para uma zona de silêncio. A excitação aumenta. Oiço o sussurro das tuas asas, o vibrar da tua língua. Tento entender a origem do movimento. Tudo tem princípio e fim. Até o vazio. Sinto o mundo a tremer ao ritmo do meu coração. Começo a confundir as vozes que ouvia na minha meninice. A avó ordenhava as vacas e dizia sempre para quem assistia: “É impossível ordenhar o tempo.” E sorria como se fosse uma fada madrinha. De manhã comíamos uvas moscatel, amoras e framboesas. Oiço as cigarras que me fazem lembrar a Terra a girar no seu eixo inclinado. As pequenas flores frágeis que rodeiam a velha casa são mais bonitas à luz do crepúsculo. As trepadeiras apoderaram-se das suas paredes e dos muros do quintal. A memória está salpicada de frémitos, de perceções evanescentes, de minúsculos apelos. A planície surpreende pela sua beleza momentânea, pelo seu corpo extenso, pela sua ilusão de mar. As sebes difratam o término da luz. Vários sons propagam-se sem espessura. A humidade possui a sua própria acústica. Guardo no bolso a chave do quarto da luz. Lá repousa Dante e Fra Angélico e os olhos exaustos de Santa Luzia. Ao centro está uma jarra com flores silvestres. Ouve-se o lamento das montanhas mais antigas. Há de chegar o momento em que os buracos negros engolirão todas as palavras. Esse, sim, é o fim do mundo. Nem Deus vai conseguir sobreviver. Quando adormecemos, a noite corta-nos os sonhos ao meio. Tudo parece agora feito de vidro: o mar, a palidez das tuas mãos, os barcos, os cenários, a própria sede. Os pássaros, chegada a noite, ficam fosforescentes. Somos então atacados por desejos visionários, por narrativas densas, por sonhos que pulam trampolins imaginários. Portas e portas até ao infinito. E calendários. E gritos. E cavaleiros à desfilada. Junto ao castelo começam a chegar figuras biblicamente lentas e descalças, vindas de muito longe. Atravessaram rios e montanhas e pontos cardeais. Algumas ficaram translúcidas. Outras dizem que as palavras mais amadas lhes ardem na boca. E deitam-se no chão como se fossem folhas mortas. A maioria dos beijos que transportavam nos bornais acabaram por secar. Cantam canções amargas, cheias de analogias perversas. Os mais fortes assobiam tempestades. Dizem que querem erguer templos ao Tempo. E soletrar de novo a adolescência. E gritam contra Roma. Dizem que ganharam o direito de gritar contra Roma. E de mandar embora a cadela que amamentou Rómulo e Remo. As suas gargalhadas são ensurdecedoras. Desesperadas.
A primeira vez que ouvi falar em papagaios foi quando me chamaram a atenção para um senhor que costumava inclinar a cabeça para um lado e de rodar em espiral, como é timbre dessas aves. Ou seja, vi primeiro a imitação feita por um humano de um papagaio do que a mesmíssima ave. Por essa altura também avistei pela primeira vez um macaco que um ex-combatente tinha trazido do ultramar, um verdadeiro terror para as galinhas que costumavam debicar os grãos junto às medas de palha na eira do castelo de Montalegre e no largo do Açougue. Naquela altura éramos todos crianças pálidas e franzinas que gostávamos de brincar em liberdade. Claro que também as havia coradas e rechonchudas. Essas eram poucas e pertenciam a outra categoria, mantidas a bifes da vazia e nós a caldo, pão, carne entremeada e óleo de fígado de bacalhau. Existiam os remediados, os pobres e os desesperadamente pobres. As casas eram lúgubres, as ruas empedradas. Tudo fazia parte de um refrigério feito de rituais e devoção. O frio era constante, por isso o lume estava sempre aceso em cada casa. Regalávamo-nos a ouvir o canto dos potes a ferver. Já na casa dos que comiam bifes da vazia o que se ouvia com mais frequência era a chaleira a cantar na sua voz aflautada. Estava proibido dar aos desesperadamente pobres aquilo de que não necessitavam para não criarem maus hábitos. O sistema físico das pessoas esgotava-se muito antes do sistema moral. Nós por causa das dúvidas, e do frio, pegávamos no fole e tentávamos dar ao fogo da lareira uma chama mais intensa. Havia gente capaz de dar ao fole e mergulhar em profunda meditação enquanto o fazia. Nos aparadores repousavam os retratos dos falecidos antepassados. Já nas cozinhas, os rojões hibernavam na sua própria banha, em potes de barro, escondidos nos louceiros decorados com lindas simetrias de recortes feitos em papel de jornal colados com grude de farinha de trigo. E lá íamos cantando e rindo, levados, levados sim. Nos dias de neve deslizávamos desde o Pelourinho até à Portela, fazendo quase sempre a curva acentuada da casa do Jorge sem nos despistarmos. A verdade é que não nos dávamos conta do tédio, da monotonia, da tacanhez e do moralismo daquela época. Era tudo linear. Agora passamos a vida a pensar nisso, sem proveito nenhum. Cada um é para o que nasce, e nós nascemos para a irrelevância. A vida doméstica decorria absolutamente convencional e cordata, tal como a pobreza. Ensinavam-se os pobres a respeitar os seus privilégios. Daí o céu estar à sua espera. Os pais constituíam bons exemplos e as crianças e os jovens nunca levantavam a voz em família, tinham bons modos e raramente diziam obscenidades. Muitas mães pareciam autoritárias e dominadoras, porque lá em casa mandavam elas. Eram ainda raparigas novas, vivendo entre a necessidade e a tensão. As poucas falhas das mães deviam ser analisadas no contexto da compaixão. A verdade é que os filhos também não eram as crianças ideais, apesar de obedientes, eram teimosos e obsessivos. Por vezes, tinham ataques de fúria e gritavam. Uns acabavam inevitavelmente por ser castigados, outros não. Dependia das circunstâncias. Claro que tudo isto podia ter uma explicação freudiana, mas essas subtilezas estavam destinadas apenas às tais crianças que comiam os bifes da vazia. Para nós, as justificações eram empíricas. O pão, o caldo, a carne entremeada e o óleo de fígado de bacalhau sempre se deram bem com o empirismo. Tudo o que não mata, engorda. Aos domingos, além da missa, muitos de nós ficavam encantados, na hora do almoço, com a utilização da palavra “guardanapo”, que consistia num pano branco quase igual ao que o senhor abade punha, dobrado em três, por cima do cálice da eucaristia, onde ele limpava ao de leve os lábios depois de beber o vinho e comer a hóstia, com sacrifício e bonomia. A seguir limpava também os bordos do cálice, que depois guardava no sacrário. Todos tínhamos um sentimento de apreensão quando observávamos a tristeza, a beleza, e também a riqueza de uns poucos e a pobreza que se espalhava como erva ruim. Apenas existia a necessidade. Duvidar do que nos ensinavam era proibido. E só nos lembrávamos de Santa Bárbara quando trovejava. Aquilo dava cabo dos nervos a muito boa gente que, quando estava no campo, preferia refrescar-se à chuva do que proteger-se das bátegas debaixo de um bom carvalho, não fosse o Diabo tecê-las. Brrummm… Santa Bárbara bendita que no céu estais escrita….
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