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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

29
Set22

Poema Infinito (632): A desmancha dos símbolos

João Madureira

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Os símbolos começaram a desmanchar-se: Deus, os Santos. E as histórias de guerra que o avô contava. Apenas o gosto do tomate, da cebola e do pimento continuam estáveis. A telefonia é agora um objeto de estimação, bonito por fora e mudo por dentro. Lembro-me da mãe passar os dedos pelo rebordo da chávena do café enquanto cantava. Os seus dedos ainda eram macios. Já os da avó tinham gretas e estavam escurecidos pela terra. Pareciam os cortes de faca na toalha de oleado. Costumava limpar da superfície da mesa as migalhas do pão, do sal e do açúcar. A avó tinha sempre as costas direitas e os ombros levantados, mesmo quando rezava. Ou chorava. E quando tremia de raiva, fazia-o em segredo para que ninguém reparasse. A capacidade para a avó ter medo foi coisa que ficou no passado. Desde que ele ficou nu, escondia-o no seu íntimo. Como se não existisse. Costumava afastar o medo para um canto com os seus braços cansados. Voltava-lhe depois as costas e adormecia no seu colchão de folhelho. A avó, com a morte do avô, ganhou lucidez mas perdeu a esperança. Sucederam-se as noites em branco, os dias cansados e o corpo tenso. O silêncio espalha-se obscuramente pelas redondezas. O tempo ficou mais espesso. Os grilos estridulam e os cães da vizinhança ladram. Cheira a outono. Os troncos das árvores brilham no meio da penumbra. As cancelas e os portões estão fechados. Os campos descansam numa paz tranquila. Daqui observo a Ursa Maior sentado na mesma pedra do pátio em que a avó se sentava a fazer o mesmo. O vento movimenta-se pelo meio das macieiras. Os passos da avó pisaram a terra deste pátio e era a partir daqui que ela ia à igreja e aos estábulos, acomodar as crias. Apenas se arreliava quando as vacas marravam contra as traves. O vento nas macieiras parece o sussurro da avó. Lá fora, a humidade adensa-se sobre o musgo dos muros e dos telhados. O tempo desliza até adormecer. A manhã nasceu branca como a roupa que a mãe e a avó lavavam nas margens do rio, batendo-a depois nas pedras. É difícil habituar-me à casa com o estábulo vazio. A terra dos nossos antepassados é sagrada, mas agora para que serve? Por aqui, o tempo range como a dobradiça das portas. Nero, o cão da casa, morreu num dia em que começou a ladrar com muita antecedência. Depois correu para a estrada, por ter confundido alguém com o avô. Mas os pés desse homem eram fracos, não fortes e pesados como os do avô. E tinha o olhar encovado. E os lábios finos. E as mãos sujas. Provavelmente era o medo. Mas não o medo da avó. O medo da avó era outro. Não vale a pena vasculhar inutilidades. Sinto na boca o estranho sabor da saudade. Quando ultrapassamos o futuro, voltamos ao passado. Lembro-me dos cheiros e da maneira de andar de cada um. Junto da casa dos outros avós, existia uma framboeseira cujos frutos apenas eram comidos pelas lagartas. Eu não gostava de ir lá. Lembro-me de esmagar as framboesas com os pés depois da mãe me obrigar a ir pedir a bênção a essa outra avó e a dar-lhe um pacote de bolachas, que fazia parte da minha vergonha. Das minhas lágrimas. Vinha de lá a correr para comer o caldo de ossos de assuã que a avó me preparava no pote. No seu pote. E beber limonada adoçada com açúcar de beterraba açucareira. O fogo ardia, racha a racha e a sopa desaparecia na malga. Os olhos da avó, desta avó, brilhavam tanto ou mais do que os meus.

26
Set22

606 - Pérolas e Diamantes: O burro nas couves

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 7.jpg 

Neste mundo, os que se aventuram nas areias movediças da política, treinam-se sempre para ganhar. Não para competir. A sua genialidade é medíocre. Afeiçoam-se a isso, treinam a pose e o hábito da felicidade. Treinam a alma para as mentiras. Tentam evitar a euforia e o impulso vingativo, face aos rivais. Desviam a agressão para ganhar tempo. Quando fazem o juramento dizem sentir um impulso profundo para viver na virtude e no bem. As suas rebeliões de juventude esconderam sempre as incertezas. A estrada cansa. E os reflexos vão enfraquecendo. O amor pela verdade, quando se mastiga, tem sempre um travo azedo. A coerência não come com eles à mesa. Estas estrelas têm fraca intensidade. Quando querem proteger os milhais, levantam poeira e atiram pedras para longe. Normalmente, os pardais fogem por causa das sombras e do barulho. Depressa envelhecem expiando as suas cobardias. A confiança já não é o que era. A cintilação destes novos timoneiros é breve. Os militantes e simpatizantes, depois das campanhas eleitorais, só estorvam. Há sempre modos de fazer as coisas. A política está cheia de profissionais cínicos que não sabem fazer outra coisa. É tão bonito observar os gestos elegantes do nosso chanceler, o seu ar de George Clooney, e a sua condescendência estudada com que acompanha a mais simples das afirmações. Ele não sabe tudo, mas parece. Ele não diz tudo, mas parece. Que lindo o seu excesso de eficiência, a sua postura. É pena viver no interior, na periferia dos centros de poder e de decisão, senão outro galo cantaria. É tão difícil encontrar nos dias de hoje homens que entendam realmente os problemas mais técnicos da política! Os políticos persistentes discutem coisas sérias. E quando nos aborrecem não o fazem de propósito. A política, sobretudo a autárquica, é feita na base da rotina. E todo o homem, ou mulher, rotineiro desaprova os empreendimentos arrojados. Mas uma coisa confesso, dá gosto vê-los de óculos estilosos, traje à maneira, gravatas e outros acessórios dispensáveis, sorrisos engomados, modos compostos, iphones requintados e ar de padres a rezar a missa pascal. Alguns até esboçam um certo ar de arrependimento, mas é sol de pouca dura. A necessidade dos votos abre sempre a brecha por onde entra o fingimento. Mas nós tudo perdoamos. Faz parte da nossa maneira de ser. E de estar. Eles, que são mais novos do que nós, tratam-nos como se fôssemos seus filhos. E nós a fingir que não vemos os seus gestos nem ouvimos as suas palavras para não sermos indelicados. É melhor assim. Se estes se vão embora vêm outros ainda piores. E o respeitinho é sempre bonito. Vamos ter de os levar a sério. Também a estes porque os que vierem a seguir ainda vão ser piores. Então, mais respeitinho, pela bandeira nacional, pela bandeira do município, pelo presidente da República, pelo presidente da Câmara, pelos senhores ministros, pelos senhores vereadores e por tudo o que de bom acontece à nossa volta. Mesmo o que é mau e nos afeta a vida foi feito com a melhor das intenções. E por isso mesmo vamos fingir consideração, acatamento e deferência. Mas a verdade é que o respeitinho que nos exigem, e recomendam, também se vai esgotando. O certo é que pelo meio desta banalidade democrática feita de meias-verdades e meias-mentiras, cresce o tédio. Eles dizem o óbvio e nós temos paciência. Eles armam-se em heróis e nós temos paciência. Ter paciência é uma virtude. Os da nossa terra bem queriam ver a tão apregoada audácia, a tal determinação pessoal, o tal sentido de risco e o gosto de realizar, mas só nos sai inércia, distribuição seletiva de panelas de pressão e protecionismo. E ainda mais inércia. Nós, os ingénuos, até acreditámos que o relacionamento entre o poder político e económico, tinha abandonado a mancebia. Mas parece que nos enganámos, de novo. Claro que esta perspetiva também pode ser fruto da distorção provocada pela minha miopia que desfoca tudo o que está por perto. Eu até vejo bem ao longe, mas isso de pouco me serve. A verdade é que os homens e as mulheres até podem ser excelentes, mas os destinos são medíocres. E daí não saímos. Só agora compreendi o que um velho amigo meu me disse vai para uns dias: “Temos de novo o burro nas couves.”

22
Set22

Poema Infinito (631): Vibrações

João Madureira

IMG_4383 - cópia 5.jpeg 

Lembro-me especialmente de um Natal agreste e frio, de um Natal redundante, fustigado pelo vento que vinha do norte. Antes de acontecer, o Natal, ficou submerso pelas trevas da noite. A luz da candeia e dos tições da lareira teimava em apagar-se. O vento uivava lá fora, tal e qual como a raiva uivava dentro de mim. A minha irmã tinha um boneco muito parecido com o menino Jesus que presidia ao presépio da Igreja Matriz. Eram ambos feios. As palhas estavam pisadas, a Nossa Senhora e o São José pareciam tristes e abúlicos, apenas a vaca e o burro pareciam fazer algum sentido no meio de toda aquela bonecada. Tudo muito velho, o musgo murcho e o azevinho como se fosse feito de plástico. Tudo cheio de adeuses, de terrores, de passos ansiosos, de palavras de despedida. Tudo limitado. Tudo interminável. O brilho vinha apenas das lágrimas da avó. Pela sua fixação heroica no amor do avô, que tinha morrido há poucos meses. Até nós não chegou nem o mais mísero raio celeste. Nem sobre nós desceu a mais ínfima réstia de esperança ou amor divino. Tudo era escuro. Desde esse dia deixei de levar a sério o sorriso e a mensagem do Menino Jesus. Quem não ajuda na dor, para o resto é dispensável. A avó ainda rezou três tristes orações. Eu fiquei mudo e quedo como um penedo. Por vezes o tempo passa muito devagar, outras passa muito depressa. Depende da velocidade, da agitação e da rapidez da confusão. A tempestade empurra a porta. A incredulidade pode ser pavorosa. Está uma noite religiosa. Orvalha com fé sobre a esperança, sobre o milho, sobre a virtude, sobre o centeio e sobre a devoção. Orvalha com equilíbrio. O deus das pequenas coisas tem destas virtudes. O avô dizia que a vida é como um moinho, que não se detém nunca. Mas a verdade é que tanto o moinho lá da aldeia como ele acabaram por morrer. Ele, para consolo da sua filosofia, fez da roda do moinho a base da lareira onde a avó cozinhava para a família e também para os recos, que não chegavam a durar um ano. O tio mudo matava-os com um golpe de faca direto ao coração. A mãe tinha de ir para o monte chorar, senão o reco tinha dificuldade em sangrar e morrer, com ela ali ao pé. Fechem as portas que quero dormir um pouco. Também há estrelas no chão. Estrelas densas, entre o claro e o escuro. Entre a dor e o deslumbramento. Nesta anunciação, os anjos não são os habituais. O resplendor é frágil. Tem a iluminação dos frutos, o tempo da massa a levedar, a ilusão dos milagres anunciados. Quem quer diluir a verdade? A ironia torna as coisas fugidias. É o sol que cola as sombras ao chão. Quando se confia nos milagres tropeça-se sempre no Messias. Ou será o contrário? Quando se confia no Messias tropeça-se sempre nos milagres. Mistérios e coisas. Coisas e mistérios. Recordações. Milagres como silvas. Chuva e vento. Primeiro devoramos livros. Depois são eles que nos devoram. As palavras começam a cair-nos ao chão. E tropeçamos nelas. Tudo se começa a desmoronar. O corpo. A alma. Os sonhos. A vigília das catástrofes. O tempo devora-nos, mas também nos comove. Cada silhueta projeta no chão da eira quatro sombras. As plantas crescem subitamente do outro lado do horizonte. Quando não resta outra alternativa, temos mesmo de beber a nossa própria sede, devorar as noites e os dias mais consistentes. Uma vibração luminosa atravessa-nos o corpo.

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