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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

19
Set22

605 - Pérolas e Diamantes: Desabafo emocionado

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 6.jpg  

Isto é uma terra de carnaval, cheia de gente instruída, obstruída e também de personagens pindéricas roídas de admiração invejosa, lutando contra as lágrimas e chupando no polegar. Uma terra de gente melancólica disfarçada de mosqueteiros, brancas de neve, anões e refilões, de zorros de mascarilha e florete, imperadores romanos vesgos e regedores vestidos de fato e gravata, disfarçados de doutores e engenheiros. E também de reis mouros montados em cavalos de pau. E de gente simpática. Terra turística. De águas. De águas vertidas e por verter. O bom era fazermos umas corridas de jericos. Burros ajaezados à transmontana para turista ver. E pôr toda essa gente boa a beber das nossas águas termais. Águas termais doutor Mário Carneiro. Também somos terra de gente sorridente. Até podíamos enlatar sorrisos, tal como os galegos fazem ao melocotón. E exportá-los para a Rússia que é terra de gente que não sabe rir. E também a água termal que, dizem os entendidos, faz bom cocktail com vodka e as laranjas de Freixo. Nós por cá, como qualquer outra cidade, vivemos de equívocos ancestrais, baseados em falsas histórias, glórias inventadas e lendas retorcidas. É cada vez mais difícil definir as fronteiras entre a fantasia e a realidade. E a cidade cada vez mais na mesma. Apesar de levantarem pedra e colocarem laje ou piche, a nossa terra definha. Tanto presidente para nada. Tanta eleição para coisa nenhuma. Estava a brincar. Claro que esperar e rezar tem dado os seus frutos. Nos dias festivos todos dançamos e cantamos de alegria. E não o fazemos em vão. A emoção faz-nos chorar. Especialmente quando vemos estrelejar o fogo de artifício, quer seja solto ou preso. Há mesmo dias em que o céu se enche de chuva e luminosos arcos-íris. A verdade é que nem as promessas foram vazias nem as frases tontas. A lição está aprendida, é preciso cuidar dos inimigos tanto quanto dos amigos. Alguns queixam-se de aborrecimento. Mas quem é que se aborrece nesta nossa cidade? A oposição é que anda aborrecida por não saber o que fazer. Afinal, todos gostamos de falar sobre liberdade. Afinal, não é esse o nosso sonho coletivo? Por vezes, abrimos os olhos e a luz entra dolorosamente. As tempestades de verão abrem as janelas para deixarem passar a água da chuva que também se acumula no chão, encharcando os tapetes, as sedas e as bandeiras dos triunfos passados. Com o vento rápido, até as cadeiras do poder tombam fazendo desabar quem nelas se senta, com estrépito. O som da verdade pode magoar. E a vaidade também. E nós a vê-los passar, ouvindo a música e vendo as luzes, enquanto tentamos resolver um sudoku no jornal. Anda no ar o cheiro a frango de churrasco e a batatas frias. Muitas palmas e pouca glória. Há sempre um fundo de sofrimento nas mentes iluminadas. As cicatrizes, por vezes, provocam-nos comichão. Vamos ter de substituir a arrogância do falar e a humildade de ouvir, pela arrogância do escutar e a humildade do dizer. Custa, eu sei que custa, mas este mundo está cheio de putins e trumps, zelenskis e patos donaldes, homens-aranhas, capitães-américas, tintins, bolsonaros e lulas, cavacos e sócrates. Tudo vinho da mesma pipa. Tudo batata grelada. Tudo presunto rançoso. Tudo mais do mesmo. Todos sabemos que os alemães e os russos, os transmontanos e o alentejanos são do tipo bruto. Mas o melhor mesmo é ir a Israel e desabafar junto ao muro das lamentações, ou a Fátima romper os joelhos nas lajes do recinto. Viajar dá-nos outra perceção do mundo. Mas nem isso nos liberta desta realidade, destes bonifrates de província armados em gente instruída que escreve cartas ao governador. Escrevem mal e desdenham dos escritores. Dizem-se progressistas e desdenham do progresso. Querem-nos fazer crer que a nossa felicidade depende dos nossos autarcas. Oxalá assim fosse. O sussurro também provoca ruído. Esta nova gente que diz que nos governa, e que até o faz com gosto, já não é como o tal rei que vai nu. Os novos príncipes democráticos vestem fatos domingueiros todos os dias e exibem sorrisos sofridos. Essa é a sua nudez. Estou em crer que os seus fatos são como os espartilhos das donzelas de outrora. E até escutam o hino nacional com a mão exposta sobre o lado do coração. São estes modelos que acham poder permanecer no poder pela evidência da mise en scène.

15
Set22

Poema Infinito (630): Febre

João Madureira

IMG_4383 - cópia 4.jpeg  

Sinto o vidrado do gelo a estalar debaixo das minhas botas. Isso provoca-me um entusiasmo denso. Sinto a languidez da febre. O vento adorna os ramos que também gemem de frio. A sensualidade é uma coisa cutânea. O frio também pode ser sensual, quando não é outra coisa. A mãe toca-me com as costas da mão a verificar se tenho febre. O musgo e as ervas daninhas começaram já há algum tempo a corroer as pedras. O resto dos muros estão gastos e arredondados pela erosão. Regresso a casa com as maçãs do rosto vermelhas. Isso também faz parte da poesia, a felicidade que se reparte por instantes admiráveis. O frio, as boas memórias, a saudade, os sorrisos. Os patos deslizam sobre a água, ao pôr do sol. O passado parece engolir-nos. Estou no limite da submersão. Bancos de neblina flutuam sobre a folhagem. Segue-me atento o olhar tranquilo destas vacas imperturbáveis. Estou imerso numa imensa extensão cinzenta. Há pormenores que nos libertam e existem outros que nos matam. O problema é que não somos nós quem os escolhemos. No meio do silêncio surge um rumor feito de suspiros. Penso se a beleza serve para alguma coisa. Se me dedicasse ao tiro, estou certo de que escolheria o de precisão. A verdade é que nem ornitólogo consigo ser e é muito mais simples. Oiço os pássaros, mas não os vejo. Assim não os vou poder caçar. Também se pode matar a beleza. Por vingança. Acordei e estou rodeado de borboletas. Todas a preto e branco. Os meus primeiros poemas pareciam teatrinhos, caixas de chocolates, pequenos novelos de lã dobada com os braços, com os meus pequenos braços. E a mãe a dizer que devia movimentar as mãos para ser menos custoso. E a mãe a tentar ouvir as abelhas. E a mãe a tentar ouvir o pai. E a mãe a tentar ouvir a Julinha, que mal sabia mamar. E o leite da mãe a pingar das mamas e a endurecer o sutiã. E o pai a fumar. E a mãe a tentar ouvir o pai a fumar. Eu seguro com a mão esquerda aquilo que não consigo aguentar com a mão direita. Dizem que Deus é ambidestro. O frio é. O medo antecipa a força e a cobardia. As fogueiras de Natal tornam glorioso este nevoeiro. Esta terra milenar. Triliões de triliões de triliões de átomos ajudam ao calor e ao frio. Os animais dormem como se fizessem parte da fantasia. As vacas bafejam as palhas, mas os meninos Jesus já não nascem por estas terras. Por aqui, agora, batizam-se as pedras. O infinito está sempre em queda livre, mas nós não saímos do lugar. Sempre dentro dele, sempre a tentar fazer algo que nos satisfaça. Sempre inquietos. Sempre o José Mário Branco a abençoar-nos com a sua inquietação. Este silêncio está morto. É como um mortalha a cobrir a aldeia, os caminhos, as terras, o castelo. Blimunda dá-nos sempre que pensar. Abençoada seja. Santa Bárbara queimou os cabelos com os relâmpagos. Os trovões não os ouve Deus porque desligou o seu aparelho auditivo. Ao sair do túnel, encontrámos o fim do mundo. E o gigante Adamastor estava tão velho que ninguém o reconheceu. Os átomos reagrupam-se e nascem células por todo o lado. Todo o poder da luz cai em lâminas sobre nós. A geada da noite foi imensa. Sinto o vidrado do gelo a estalar debaixo da pele. Bebemos chá quente misturado com um pouco de tempo. Estamos sós. Então o sexo apanha-nos em flagrante e faz-nos penetrar na sua agilidade. O amor é tolerante. Quando pode.

12
Set22

604 - Pérolas e Diamantes: O anjinho depenado

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 4.jpg 

Na feira do nosso contentamento é raro existir um espaço para estacionar o carro. As pessoas andam para cima e para baixo gesticulando, ouvindo música e pregões, vendo o fumo a subir no ar, sentindo o cheiro a frango de churrasco. Em Portugal, os frangos são de geração espontânea. E na zona dos divertimentos o barulho é ensurdecedor. O rodopio é constante: carrosséis e castelos fantasmas, cangurus e montanhas-russas, cadeiras que põem as pessoas de cabeça para baixo e aos gritos. A felicidade é tão intensa que dá medo. As crianças pedem aos adultos algodão doce com sabor a morango. Umas famílias comovem-se observando outras famílias que se comovem em reflexo condicionado. E sorriem. E acenam. Avançam aos empurrões, de aperto em aperto. Na praça, os vários elementos dos grupos de música pimba agarram-se aos microfones tentando fazer pular os jovens que já estão extasiados ainda antes dos primeiros acordes. As colunas de som berram tão alto que provocam tonturas na gente de mais idade. As jovens contorcionistas, que fazem de meninas do coro, entram no palco aos pulos vestidas com soutiens e cuecas minimalistas. E suam e sorriem como se estivessem a tentar conter a vontade de urinar. Pulam minutos e minutos, tentando seguir o ritmo frenético da música. Eu, que sou hipertenso e sofro de claustrofobia, digo à Luzia que, por causa das tonturas e das bolinhas de sabão que vejo a borbulhar na minha frente, vou para casa, não vá o Diabo tecê-las. Vou para casa ler. É o que sempre soube fazer melhor, ler. Até porque é um ato individualista. Desde os meus dez anos comecei a ler tudo o que me vinha às mãos. Um pouco antes, a minha mãe tinha resolvido fazer-me participar em todas as procissões vestido de anjo. Ela, mal me via com as aquelas asas depenadas e com o meu orgulho ferido, punha-se a chorar como uma Madalena. Eu também chorava, mas de vergonha. Era um anjo com sexo. Claro que pequenino, mas lá haveria de crescer. Era preciso dar-lhe tempo e motivos. A verdade é que tudo na religião me dava medo. Aterrava-me a igreja fria e cheia de sussurros e ecos, com as imagens dos Santos em sofrimento, com o esquife de Cristo ensanguentado encafuado debaixo do altar lateral da igreja, com o luto da quaresma, com os jejuns. Apesar dos meus medos, a minha mãe ainda teve coragem para pedir ao senhor abade para me deixar ajudar à missa. E lá fui eu fazer de menino obediente. Também tinha receio de que as mulheres mais velhas, por causa dos malabarismos que faziam com a hóstia na boca, se engasgassem e começassem a sufocar com o pão ázimo a tapar-lhes o gorgomilo. Na quaresma a mãe proibia-me de fazer barulho, brincar com os meus amigos, riscar no chão. Tudo parecia ainda mais triste. Não se podia ir ver televisão para o café, nem ouvir a telefonia em casa. Só rezar. A mãe enchia os quartos com lamparinas acesas, ao pé dos Santos. No seu, era a Nossa Senhora de Fátima que brilhava com tanta luz, de cara tão branca como a farinha triga, com os olhos tão doces como o mel e com as mãozinhas tão bem postas como as da Maria José no dia da primeira comunhão. Ainda não satisfeita com todo aquele sofrimento infantil, a mãe obrigava-me a ler alto para um grupo de devotos o jornalinho Ave Maria, que a Dona Justina distribuía aos assinantes do bairro. Depois da leitura, a mãe dizia para quem estava a ouvir: “Este meu filho há de ir para padre”. O pai fazia que não ouvia. E então, para terminar a sessão, a mãe punha-se a rezar ave-marias e pais-nossos pela conversão da Rússia, que sofria horrores debaixo da pata opressora dos comunistas. E não é que tinha razão! O Diabo tece-as. Era um tempo de penúria, simplicidade e escassez. Os pobres eram pobres, os remediados eram pobres, muitos ricos eram pobres, os anjos eram pobres, os Santos eram pobres, Nossa Senhora era pobre, apesar de vestir bem, ter a pele ainda mais branca do que os lençóis lavados com Omo e ter as mãos tão bem postas como a minha amada no dia da comunhão solene, Cristo era pobre e até o senhor Salazar era pobre. Não admira, pois, que este vosso amigo seja fraco no controle das emoções e escasso em risos e sorrisos. Confesso que me custa esconder o que sinto. Mas cada um é para o que nasce.

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