O candeeiro, o sapato, o santo e o risotto
Porque os meus olhos já necessitam de ajuda para poder ler a LER comprei um candeeiro novo com lente de aumento. Tenho-o junto ao sofá. Possui uma lente que aumenta três vezes e, graças ao ponto bifocal, chega a ampliar 5 vezes. Vem equipado com 12 luzes led (tecnologia de baixo consumo energético) e com um braço flexível para podê-lo inclinar como me der jeito. É leve e por isso posso deslocá-lo para onde quero. Funciona a pilhas ou a electricidade.
Foi com a sua ajuda que consegui ler o discurso alternativo de Manuel Villaverde Cabral, onde o sociólogo, historiador e político afirma que “se não há revolta é porque os papás estão a aguentar”. Li uma bonita história de Rogério Casanova intitulada “O Coelhinho Tomé e a Crise na Floresta Mágica”, onde “todos os animais estavam muito contentes com a situação pois as agências de notação de risco Libelinha & Noitibó tinham examinado demoradamente a probabilidade de incumprimento dos empréstimos subjacentes aos produtos e não encontraram problema nenhum; o rating dos produtos era tão bom como o rating do pôr-do-sol”. Inteirei-me ainda que os cães aparecem, sobretudo, nos livros que não são sobre cães. Pois eles saltam nos romances de Jack London, nos de John Steinbeck, nos de Charles Dickens, onde por vezes os homens são mais cães que os próprios cães, nos de Thomas Pynchon, onde um cão chega mesmo a ler Henry James. Já para não falar do Garryowen, um cachorro que só aparece num capítulo do Ulisses, de James Joyce, passado num bar, e que se limita a rosnar.
Tudo isto e mais alguma coisa anotei com letra bem desenhada no meu caderno de notas para discutir com o meu amigo T., que, agora reformado, decidiu dedicar-se à literatura.
Curiosamente, por alguma razão ditada pelo subconsciente, quando cheguei junto dele, em vez de lhe ler estes meus apontamentos, li-lhe um outro relacionado com São Tomás de Aquino. Mas antes de escrever o pensamento do senhor Santo, informo os estimados leitores que estudou teologia em Colónia e em Paris, onde foi discípulo de Santo Alberto Magno que o "descobriu" e se impressionou com a sua inteligência. Era na altura conhecido como o "boi mudo". Dele disse Santo Alberto Magno: "Quando este boi mugir, o mundo inteiro ouvirá o seu mugido."
Vamos agora dar lugar a um mugido seu: “As acções intensas fortalecem um hábito. Não a mera repetição. A intensidade favorece o aperfeiçoamento moral. Uma força de vontade intensa e perseverante. Eis um elemento da seriedade. A constância. Eis um dos elementos. Uma intencionalidade bem vincada. Um fito por nós escolhido.”
O T. olhou para mim e encolheu os ombros. Li-lhe então as minhas anotações retiradas da revista dirigida pelo Francisco José Viegas. Ele encolheu de novo os ombros. Eu perguntei-lhe se não tinha compreendido as citações ou se simplesmente não lhe interessava a mensagem. Ele tornou a encolher os ombros. Decidi pedir um café. Foi então quando ele puxou do seu bloco de notas e, dirigindo-se a mim, replicou: “Ora diz-me lá como se chamam as partes do teu sapato?” “Da minha bota, quererás tu dizer”, corrigi eu. “Ou isso”, persistiu ele. “E para que raio deveria eu conhecer o nome das partes do meu calçado?, questionei-o para podermos avançar na direcção certa. Ele disse: “Que nos interessam os mugidos do Santo boi se não dominarmos a nomenclatura básica dos ofícios que nos vão permitir sobreviver à Crise. Temos que regressar ao básico. Temos de tornar a aprender a trabalhar a terra, a tratar da floresta, a plantar o jericó, a podar as árvores, a rachar a lenha, a criar o porco, a fazer as chouriças, a cozer o pão, a tratar das galinhas e dos coelhos, a remendar as calças, a cerzir as meias e as camisas, a fazer os sapatos e a consertá-los.”
Depois do T. falar ficámos um bom pedaço a meditar. Ele meditou olhando para a praça e eu meditei olhando para a chávena vazia. Finalizada a meditação, veio a insistência: “Ora diz-me lá como se chamam as partes do teu sapato?” “Da minha bota, quererás tu dizer”, corrigi novamente eu. “Ou isso”, insistiu ele. “E para que raio deveria eu conhecer o nome das partes do meu calçado?, argumentei para podermos adiantar conversa.
Então, com a sua voz de papagaio, respondeu “porque sim” e começou a lição: “Parte inferior plana, sola e tacão; parte interior, pala e atacador; tira de cabedal que bordeja a orla superior do sapato (“bota, T., bota e não sapato”) abaixo do atacador, cano; parte rija sobre o calcanhar, contraforte; peça em forma de meia-nau, entre o cano e a tira acima da sola, enfranque; tira acima da sola, vira; parte frontal que cobre o peito do pé, gáspea; perfurações de ambos os lados, acima da pala onde se enfiam os atacadores, ilhós; protecção metálica em cada ponta do atacador, agulheta. E é tudo.”
“É tudo e não é pouco! E, já agora, espera aqui por mim que vou ali ao sapateiro do beco a ver se me empresta, ou vende, um par de sovelas e um rolo de fio. Não posso deixar esmorecer o entusiasmo que em mim criaste. Já me imagino carregado de inspiração a coser as solas das botas junto ao meu candeeiro com lente de aumento. Eu de um lado do sofá a enfiar o fio pelo buraco feito pela sovela e a minha mulher do outro a fazer croché enquanto o senhor presidente da república reeleito nos comove com mais uma das suas passeatas para português ver. O mundo pode ser um sítio encantador. E a vida um evento curioso.”
PS – Receitas para ajudar a combater a crise.
Risotto de lagosta: ingredientes (para 2 pessoas de apetite médio, ou médio-baixo) – 1 lagosta com 475 gramas previamente cozida; 1 colher de sopa de azeite; 56,23 gramas de manteiga; ½ cebola de Loivos finamente picada; 1 dente de alho, também finamente picado; 1 colher de chá de folhas de tomilho, picadas; 182,5 gramas de arroz arbório; 160 ml de vinho branco gaseificado, de preferência Murganheira Reserva; 637 gramas de caldo de peixe a ferver; 1 colher de chá de grãos de pimenta verdes ou rosas em salmoura, escorridos e toscamente picados; 1 colher de sopa de salsa fresca, picada.
Confecção: Prepare a lagosta (torça-lhe as patas e rache-as; corte o corpo ao meio; remova as entranhas do animal e deite-as fora; retire a carne da cauda e pique-a. Reserve-a com as patas. Num tacho, aqueça o azeite e a manteiga, junte a cebola e refogue, junte o alho e refogue mais 29 segundos. Adicione agora o tomilho. Baixe o lume, junte o arroz e envolva no azeite e na manteiga. Frite e mexa durante 3 minutos até os grãos ficarem translúcidos. Adicione o vinho e deixe cozer durante 1 minuto. Mexa. Junte o caldo a ferver. Continue a mexer. Junte mais líquido de cada vez que o arroz necessite. Coza até o arroz ficar cremoso. 5 minutos antes do final da cozedura, junte as patas e a lagosta. Retire o tacho do lume e, continuando a mexer, junte os grãos de pimenta, o resto da manteiga e a salsa. Transfira para pratos individuais aquecidos e sirva de imediato.