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Nós já perdemos – eu pelo menos já perdi – o nosso ponto de vista. O dos outros é sempre o melhor. E olhem que a nossa tristeza não é livresca. É mesmo real. A vida burguesa provoca mal-estar existencial, mas sempre é melhor do que a dos proletários. Dos pobres proletários. Dos proletários pobres. A gaiola até pode ter a porta aberta, mas o pássaro já não quer libertar-se, tão habituado que está ao painço e à aguinha no bebedouro, onde até costuma dar pequenos banhos, submergindo a cabeça e espanando as asas. A liberdade, ou a falta dela, é problema dos seus donos que para alguma coisa foram para a universidade estudar Kierkegaard. Viver fora da gaiola provoca muita confusão. A verdade é que Proust também pouco saía de casa. Preferia ficar na gaiola e escrever livros enormes e enfadonhos. A propensão metafórica devia aconselhar-nos a ir cavar batatas. Mas não, elas agora nascem de geração espontânea e os bifes das aves e dos bovinos são produzidos nas fábricas dos supermercados. Os burgueses, ou os filhos deles, gostam de ir para Varadero, ouvir Ry Cooder e Buena Vista Social Clube nas suas colunas Marshall ou nos auscultadores e jogar raquetes na praia ou padel em recintos desportivos transparentes. Gostam de chegar e partir dos aeroportos, usam mochilas de marca, calças no fundo do cu e profusamente esburacadas. A vida para eles parece fazer sentido. E não há pressa. Take it easy, bró… Eu agora é mais brócolos e metformina, combinando horas e problemas e comida macrobiótica. O egoísmo maça, mas até tem graça. E isto a dar para a rima, coisa que não aprecio. Eu é mais tostadinhas de supermercado com pedaços de salmão fumado da Escócia. A vontade de controlar ainda é grande. Tanto as conversas de circunstância como os sorrisos. Eu tento, e por vezes consigo, estar dois ou três minutos caladinho, como a Luzia me ensinou, mas depois lá vai inconveniência. Há por aí tanto fauno a querer fazer-se passar por fradinho capucho. Oh, maldita política. Tanta mise en scène para nada. E eu sempre a chegar adiantado ou atrasado ao espetáculo. A verdade é que as pessoas de bom senso ainda acham que conseguem fazer-me entrar nos eixos. Isso é como tentar ler Clarice Lispector e perceber o texto antes do subtexto e as inferências antes das referências. É necessária muita paciência para aquilo começar a fazer sentido. Apesar de falar muito por metáforas, faço-o com elevada seriedade. Mas parece que até elas me comprometem. Isso também faz parte do subtexto. Há coisas difíceis de dizer. Há coisas ainda mais difíceis de compreender. Mas até isso nos compromete. Pelo menos a mim. A vida é um sarilho. A saudade e a verdade e a palavra dada, que também era honrada, foi chão que já deu uvas. E escrever com pontuação incerta em lugar apropriado parece que dá dinheiro. Muitos fazedores de leis ganham fortunas com a distribuição precisa de vírgulas que põem um texto a ser aquilo que parece e precisamente o seu contrário. Por vezes pensamos que uma coisa é igual à outra e por isso tanto faz. Mas às vezes enganamo-nos. A verdade é que eu nada entendo de plantas, nem de mezinhas, nem de chás, nem de aves e das suas migrações. Julguei perceber até alguns dons, sobretudo nos outros, mas até nisso me enganei. Apenas entendo de caminhos que não vão dar a lado nenhum. E lá sigo pelo carreiro até à próxima bifurcação. Vou da banda do nascente a caminho do poente. Este dá sempre certo. Tanto para mim como para a restante gente. E lá vem outra vez a rima indesejada. Entendo ainda alguns gestos, meia dúzia de palavras e a água e o vento. O que já não é pouco. Para mim comer ainda é uma coisa mais agradável e bonita que a fotossíntese, mas pelo caminho que isto leva qualquer dia vamos ter de nos alimentar diretamente da luz do sol e de alguma água que nos caia do céu. Enfim, depois da educação estética, apareceu agora a educação ambiental. E os exorcismos ateus. Coitados de nós, tanta educação tradicional para nada. Continuo a ter paixão pela singularidade e aversão à generalidade. Mas isso sou eu, que sou casmurro. Antigamente, o que unia as pessoas era um conjunto de valores, aspirações e crenças. Atualmente o que se espalha por esse país fora é uma forte descrença. E todos aqueles que passaram por muitas guerras têm dificuldade em fazer as pazes. Muitas vezes consigo próprios.
Olho para a fotografia e reparo que a ingenuidade das nossas bochechas, do nosso sorriso e do nosso olhar é uma espécie de expressão anterior ao conhecimento do mundo. Da realidade. Expressão de um tempo em que o futuro existia à nossa frente e onde tudo era possível. O presente, aquele presente, era incerto, inseguro e cheio de escuridão e buracos. Andamos sempre entre o caminho das urtigas e o dos girassóis. As cascas do tempo são agora mais visíveis nas fotografias. Algumas manhãs são agora particularmente leves. E os lilases, inebriantes. Daqui veem-se os salgueiros, o musgo nos muros de pedra, o sol, a sua luz fulgurante. Faltam os risos de quem aqui viveu. Tudo agora parece vazio, fora do tempo e do espaço. Os salgueiros murmuram. A mãe ajudava a avó a mungir a vaca e o leite por vezes espumava para fora do balde. Elas riam. Os cereais semeados pelas mãos da avó cresciam mais do que os de qualquer pessoa. E sorriam. A mãe costumava apanhar trevos de quatro folhas e dar-mos para meter entre as folhas do missal, junto com os santinhos da sua devoção, que julgava ser igual à minha. E sorríamos. E o pai fumava os seus cigarros sem filtro, com os dedos longos da sua mão ligeiramente fletidos e as veias salientes. A deixar o fumo subir no ar e depois a deixar cair a ponta incandescente para o vaso das sardinheiras. E a mãe a repreendê-lo. E a sorrir. A beijá-lo como se eu não estivesse ali a desenvolver o ciúme. A simplicidade também pode ser um caos. E o ciúme uma explosão incontrolável. E os sentimentos a serem enterrados debaixo de camadas de ciúme. A ânsia vem envolta em globalidade. Toda misturada. Suspendendo a tirania da razão. Os ruídos fazem parte da realidade. E as sombras. E os fantasmas. Os anjos da guarda têm-lhe medo. São muito assustadiços. Entra pelos vidros das janelas a luz cinzenta da tarde. Por eles vê-se o parque infantil deserto por onde as ervas começam a crescer. Antigamente, por aqui, havia crianças e não existia parque para as brincadeiras. Agora, que fizeram um parque, já não há crianças. Nesta terra amada faz-se tudo depois do tempo. Tudo depois dos outros. Tudo depois. Tudo. E o anjo da mágoa a diluir o rosto nas nuvens. E a comprimir as coxas. E a massajar o sexo. Aí está a necessidade de ser etéreo! A melhor simplicidade surge da complexidade. Crescem por aqui as memórias, a desilusão e o abandono como antigamente medravam as abóboras. A intensidade dos cheiros é muito diferente. Cozer os sentimentos ao lume requer exatidão. Junto ao forno, sobre o tabuleiro ainda paira o cheiro do pão que ali foi cozido. Ao fundo da cama, estão os velhos socos do avô. As pessoas mentiam, mas agora fazem que acreditam. Dissimulam o vácuo. A admiração ficou tão fria como uma manhã de dezembro. A solidão faz mal. A chuva começa a fustigar as árvores e as flores do jardim. Tudo arrefece, até o amor. Depois tudo aquece, até a dor. A chuva cessou, mas a avó protege-se sobre a capa de burel. E a mãe traz a cabrinha ao colo. E o pai dá-lhe um beijo. E eu cozido no meu ciúme. A avó parece extenuada. Já mal consegue sair da fotografia. E depois voltar. A avó diz-me: “Não é preciso dizeres nada. Descansa. Não chores.” Depois encolhe-se dentro da fotografia. Ao lado da jarra de vidro com uma flor fúcsia de plástico. A morte definitiva pode ser qualquer coisa de semelhante.
A linguagem humana é espantosa. Através da ligação de um número limitado de sons e gestos conseguimos produzir uma infinidade de palavras e frases com significados diferentes. Podemos armazenar, conceber e comunicar um incrível manancial de informação sobre tudo o que nos rodeia e também sobre o amor e sobre física quântica. A nossa linguagem evoluiu para nos abrir a possibilidade de tagarelar, de trocar ideias, de trocar informações. Com a linguagem humana sabemos quem nos odeia, quem gosta de nós, quem é honesto e quem é ladrão. Mas o mais interessante de tudo é que a linguagem do Homo Sapiens, mais do que transmitir informação sobre polícias e ladrões, tem a capacidade de transmitir informação sobre coisas que não existem de todo. Apenas ele, entre todos os animais, consegue falar sobre entidades que nunca viu, tocou ou cheirou. Só ele consegue escrever poesia e criar Deus. Foi com a denominada Revolução Cognitiva que começaram a surgir as lendas, os mitos, os deuses e as religiões. A capacidade de os sapiens falarem sobre coisas ficcionais é o aspeto mais singular da sua linguagem.
Quando, entre os nossos primos chimpanzés, dois machos disputam a posição de alfa, fazem-no formando diferentes coligações de apoiantes machos e fêmeas. Os laços entre os membros dessa coligação baseiam-se em contactos íntimos diários: abraços, beijos, festas, cuidados de limpeza e mútuos favores. Tal como os políticos que conhecemos em campanha eleitoral, eles andam de um lado para o outro a apertar mãos e a beijar bebés. E a tagarelar.
Afinal, isto já vem de longe.
No rescaldo da Revolução Cognitiva, segundo Yuval Noah Harari, foi a tagarelice que ajudou o Homo Sapiens a formar bandos maiores e mais estáveis. Mas, ao que dizem, até a coscuvilhice tem os seus limites. Estudos sociológicos referem que a maior parte das pessoas não consegue conhecer intimamente nem falar eficazmente sobre mais de 150 seres humanos. Então como é que o Homo Sapiens conseguiu ultrapassar esse limiar crítico formando aldeias, vilas e cidades de milhares de habitantes e mesmo impérios?
Parece que o segredo reside no surgimento da ficção. Ou seja, como todos agora sabemos, um grande número de estranhos consegue cooperar com êxito graças à crença em mitos comuns. Esses mitos fazem parte da memória coletiva das pessoas. As igrejas estão enraizadas em mitos comuns. Os estados estão enraizados em mitos comuns. Os sistemas judiciais estão enraizados em mitos comuns. Mas nada destas coisas existe fora das histórias que as pessoas inventaram e contam entre si.
Está tudo centrado no ato de contar histórias e de convencer as pessoas a acreditar nelas. Contar histórias eficazes não é para todos. A principal dificuldade não reside na narração propriamente dita, mas na capacidade em levar as pessoas a acreditarem na ficção. Mas quando consegue tal feito, esse sapiens adquire um enorme poder, pois permite que milhões de estranhos cooperem e trabalhem em prol de objetivos comuns.
Foi dessa forma que se criaram as religiões, as nações e as empresas.
Ao longo da história da Humanidade, as pessoas teceram uma incrível rede de histórias complexas. Essas ficções acumularam um poder imenso. Nos círculos académicos, os estudiosos denominam-nas como “ficções”, “constructos sociais” ou “realidades imaginadas”.
Uma realidade imaginada não é uma mentira. Claro que existem as mentiras. Mas não há nada de especial em relação a elas. Até os cercopitecos e os chimpanzés conseguem mentir. Já foi registada a mentira de um cercopiteco a gritar, em linguagem própria, “Cuidado! Um leão.”, sem que por perto estivesse qualquer animal dessa espécie. No entanto, esse sinal de alarme assustou outro macaco que, curiosamente, tinha acabado de encontrar uma banana, fazendo com que o mentiroso ficasse sozinho para se apoderar do prémio.
Ao contrário da mentira, a realidade imaginada é algo em que todos acreditam, ou dizem que acreditam. E enquanto existir essa crença coletiva, a realidade imaginada exerce força sobre o mundo.
Desde a Revolução Cognitiva, o sapiens tem vivido uma realidade dual. Por um lado, a realidade objetiva dos rios, das árvores, do lince da Malcata e do burro Mirandês. E por outro, a realidade imaginada dos deuses, das nações e das empresas. Mas à medida que o tempo vai passando, é a realidade imaginada que se torna cada vez mais poderosa, ao ponto de ser ela quem atualmente permite que a própria sobrevivência dos rios, das árvores, do lince da Malcata e do burro Mirandês dependa da boa vontade de entidades imaginárias como deuses, nações e empresas.
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