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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

28
Nov22

614 - Pérolas e Diamantes: A gente do olhar rápido

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 8.jpg 

Esta é a época gloriosa em que os gatunos se fingem homens de negócios, banqueiros ou políticos. E conversam com as pessoas como se isso fosse totalmente normal. O problema é que para nós a falta de dinheiro nos simplifica a vida. Para eles é exatamente o contrário. Cada vez é mais difícil escondê-lo. E vivem aparentemente como pobres, para disfarçar.

Hamlet já morreu há muito tempo. Hoje já ninguém morre em consequência da verdade, nem os imitadores das personagens shakespearianas. Muitas coisas feias são quase belas, muitos homens são tão sábios que já não percebem nada e há até coisas tão dolorosas que dão vontade de rir.

Essa gente tem o olhar rápido dos ladrões.

E por aqui andamos nós a cheirar os cravos vermelhos em dia de festa. E a enaltecer a papoila e a gaivota da canção. É sempre baseados no caderno de encargos que essa trupe encontra o buraco explicativo para meterem dinheiro ao bolso. Quanto maior e mais intrincado é o caderno de encargos maior é a fatia que lhes cabe.

A Democracia é, sobretudo, uma abstração que nos atiram aos ouvidos em tempo de campanha eleitoral, sobrando dela a mentira da igualdade, a trapalhada da fraternidade, o défice da liberdade. E também a inércia das instituições. E a corrupção. Enredam-nos em jogos de palavras.

Essa gente tem o olhar rápido dos ladrões.

Todos agora sabemos que as pregações moralistas dos homens do poder tentam quase sempre esconder a máquina que eles sustentam, oleada com o servilismo e a manha. Melhor seria que não fosse.

No entanto, germinam possibilidades por todo o lado. Temos que reprimir os nossos impulsos. A gente que administra o país nem nos deixa descansar. Atrás de uma novidade, surge logo uma surpresa de nos cortar a respiração. O PRR é um maná dos deuses enviado pela mamã UE.

Essa gente tem o olhar rápido dos ladrões.

Nós desenvolvemos com qualidade a habilidade de nos safarmos dos confrontos. E lá vamos desencalhando as coisas. Apenas o otimismo é prematuro.

Mas o que será que nos leva sempre ao equívoco e à catástrofe?

Essa gente tem o olhar rápido dos ladrões.

O que nos falta é o sentido de autoridade pessoal. Provavelmente é melhor deixar que as coisas aconteçam. Mas já é tempo de fazermos com que as coisas aconteçam a nosso favor.

Navegamos entre a futilidade e a falta de poder. No mundo moderno não basta andar contente e esperar que tudo acabe por correr pelo melhor. O que eles querem é que a gente esteja feliz com a sua sorte. É necessário estar atento.

Essa gente tem o olhar rápido dos ladrões.

A verdade é que a nossa subserviência não é eficiente. Apenas nos permite sobreviver sem sobressaltos.

Depois de se lerem belos romances, o mundo assemelha-se a um sonho bom onde tudo é bonito e higiénico. Mas temos de perceber que parece assim porque foi contado em palavras. A realidade costuma ser uma desilusão. Com a gente que se diz educada é preciso ter cuidado.

Essa gente tem o olhar rápido dos ladrões.

É difícil expulsar o mau sangue. Os tratadores de buldogues sabem-no muito bem.

Também eu começo a compreender a desilusão que sente o homem singelo perante o processo parlamentar. As palavras adiantam pouco. Daí o não sairmos da cepa torta.

Essa gente tem o olhar rápido dos ladrões.

De certeza que não vamos ter dificuldades em voltar a acreditar no país, na Nossa Senhora de Fátima, no Salazar, no Cunhal, no Sá Carneiro, no Mário Soares e até no Freitas do Amaral. Mas vamos ter mesmo de usar drogas um pouco mais pesadas do que da última vez.

Mas sempre vos digo que não é boa ideia, apesar dos vários programas de educação e formação e integração, colocar um envenenador perto de uma cozinha, mesmo em dia de greve da fome.

24
Nov22

Poema Infinito (640): O violinista

João Madureira

IMG_4383 - cópia 7.jpeg 

Antigamente, as carroças traziam para aqui peixe e carne. E legumes. E tudo o mais que havia para vender. Era a praça do mercado. Agora já não vem gente aqui. Ninguém atravessa a rua para este lado. Caminham a direito. Ali. Do lado de lá. Atrás deles veem-se casas. E a encosta. Um pouco mais à frente era a rua das tabernas, onde se comia, bebia e alguns músicos vadios animavam o tempo. Eu atravesso a rua até ao outro lado. Quando alguém batia à porta, as raparigas costumavam ir abrir e soltar gargalhadas. As casas tinham pouco espaço. Mas as gargalhadas eram grandes. Na maioria, as casas eram pequenas, muito juntas umas das outras. As ruas também eram estreitas. Mas ligeiramente mais largas do que as casas. Então era difícil encontrar um teto onde abrigar-se, encontrar refúgio que servisse de proteção do frio e da escuridão. E as pessoas caminhavam à chuva. E sentiam o frio e o escuro. E tinham medo. Sonhavam com um lugar onde pudessem descansar do seu medo e aquecer a coragem. Muitas encostavam-se às paredes, debaixo dos beirais. Ali ficavam de pé, como estátuas. E não diziam nada. Recolhiam-se dentro de si. Sonhando com luz e calor. E do céu caía ainda mais chuva. Depois agachavam-se e tentavam dormir. O queixo descaía-lhes sobre o peito e as pálpebras descaíam-lhes sobre os olhos. Na taberna, o músico toca um violino. O seu pai já tinha tocado violino, ofício que aprendeu com o seu avô, que aprendeu com o seu pai, etc. O homem do violino acha que tocar violino é uma fatalidade, uma inclinação que lhe veio da dor, do lamento. Dor que tenta acalmar, tocando. Por vezes, tocar também lhe dá alegria e felicidade. É como o vinho. O problema é a ressaca que provoca. Costuma tocar em bodas. Em funerais. Em batizados. Ou em bailaricos. Esse é o destino dos tocadores de violino que tocam em tabernas. Ele pode tocar, mas não pode beber. Senão as notas saem-lhe do instrumento a cambalear. E depois os bêbados ficam ainda mais bêbados e começam todos à porrada. O pai do tocador de violino disse-lhe que podia beber um trago, depois de afinar o instrumento, e de seguida aquecer o violino e os dedos, dessa maneira toca-se sempre melhor. Devia seguir o ritual, devagar. Agora anda sempre a tocar e a viajar. O que lhe provoca tristeza. Tocar é uma fatalidade. As fatalidades servem para isso. Por vezes fica com os dedos entorpecidos e com a voz turva. E chora. Não é jovem, nem é velho. Usa barba e um chapéu negro de aba larga. Cá fora, um jovem rapaz acorda com o barulho da taberna. O seu cabelo está encharcado. Mete-lhe os dedos frios. Fecha de novo os olhos. Sente-se pesado. Cansado. Está imerso num banho frio de desilusões. Depois passa uma mulher e dá-lhe a mão.  Afastam-se ambos a caminhar. Sobem a colina e sentam-se sobre uma grande pedra. Ele não sabe o que fazer. Então põe os braços à volta da mulher e mantém-na apertada contra si. E parece que pairam. O jovem diz então algo sobre o seu pai que é o homem que está a tocar na taberna. Os seus olhos brilham. Levanta-se, desce a rua e dirige-se à taberna. Ela segue-o de perto. Avança devagar, abre a porta e vê que lá dentro está um homem sentado a uma mesa com um violino ao lado e a beber um copo de vinho. Senta-se à sua frente, enche com a caneca outro copo, bebe-o de seguida, pega no violino, afina-o à sua maneira, toca alguns acordes, aquece os dedos, deita mais vinho no copo, roça as cordas mais um pouco para aquecer o instrumento e começa a tocar do nada até ao infinito, algo de grandioso.

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