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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

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29
Dez22

Poema Infinito (645): Penumbra

João Madureira

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A penumbra enclausura e intensifica o desalento. A saudade. O motivo desta escuridão continua difícil de perceber. Nesta meia-luz já não se movem os meus avós, nem os meus pais. Apenas aranhas. As memórias estremecem a ritmos diferentes. Algumas delas desfazem-se em pó. A ondulação das palavras percorre a casa, as paredes barrocas, a sua ressonância religiosa. Os labirintos estão repletos de sentidos duplos. Temos de polir o sofrimento para podermos olhar para ele. É estranho os olhos da avó olharem-me de lado. Pisca-os como se estivesse assustada. Eu aproximo-me devagarinho do lume. Atrás da porta está a ratoeira armada. A mãe anda para trás e para a frente, entre o lume e a torneira, carregando água quente e despejando água fria. É necessária uma boa dose de medo para a boa educação. A paciência da avó foi um milagre. O purgatório aconteceu-lhe em vida, com a morte do avô, com o trabalho permanente pela sobrevivência, com as rezas urgentes pela necessidade de se precaver contra novas desgraças. A sua esperança misturou-se sempre com a dor. O seu presente não tinha futuro. A sua voz transformou-se num eco que se vai desvanecendo todos os dias mais um pouco, até se tornar um vazio ensurdecedor. A avó criava coelhos e galinhas e tratava das árvores de fruto e das hortaliças. E subtilezas. E cumpria com os mandamentos. Mas era avessa à submissão. A luz começa a arder na superfície das casas. Alguém esgaravata o tempo à procura de ar. E de sentido. Tantas palavras a saírem da sua boca, surpreendem. E o brilho nos seus olhos, impressiona. A intensidade da sua expressão, ilumina a escuridão. É tão rara esta expressão no seu rosto. Eu olho para a avó que, por seu lado, sentada na mesa da cozinha, olha para o nada. Parece que por detrás das costas da avó existe outra avó. A escuridão encosta-se às janelas. E torna-se pesada. A avó levanta-se e senta-se. Lava as mãos. Faz compota de tomate. Descasca feijões. Corta abóboras e batatas. Lá fora tilintam campainhas. O medo pode soar a falso. O olhar da avó parece que entra por mim adentro. A tristeza brota da sua boca, palavra a palavra. Noite. Manhãzinha. O sol espreita pelas frinchas das tábuas. É fácil imaginá-lo. O quarto das traseiras está cheio de plantas a secar. Em cima de folhas de jornal estão espalhadas flores de calêndula, hortelã-pimenta, cominhos, erva-dos-carpinteiros. E nas paredes estão pendurados saquinhos com pedaços secos de maçã, pêssegos e pavias. O cheiro das ervas sente-se por toda a casa. Junto da lareira está uma trança de alhos. As sombras sopram outras sombras. As aves anseiam pelo seu primeiro voo, para sentirem a vertigem genuína de que se alimentam. Fico com os lábios ressequidos só de pensar na ceifa. As espigas altas parecem rimas, cheias de ternura e de verão. Reaparecem os verbos ao anoitecer, quando os cantadores se vão deitar. A terra parece imóvel. Reacende-se a dor. Alguém conta histórias com alguns resíduos de alegria. Os deuses, por aqui, vivem pela voz. Noto nos frutos secos um sabor a fina fímbria de luz. Essa parece uma ponte de acesso ao ponto puro onde tudo começou. Toda a minha inocência por aqui ficou. Presa às paredes, aos objetos, às árvores e ao rio. Foi o tempo em que as cegonhas bebiam nuvens e a avó cozia o pão no forno da aldeia. Não havia livros, não havia memória. As andorinhas ainda voavam. Agora alguém as colou na parede da varanda. Lázaro, levanta-te e caminha.

26
Dez22

A noção de poema

João Madureira

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Olá disse ele, olá disse ela, olá disseram os dois ao mesmo tempo e ao mesmo tempo também disseram que lindo dia de sol para depois ele dizer que se sentia feliz porque vida há só uma e mulher da sua vida também e ela olhando-o fixamente com os seus lindos e estrábicos olhos disse amo-te tanto que até me esqueço do tracinho e ele corrigiu-a, amavelmente, por certo, lembrando-lhe que o tracinho se chama hífen e que adora ímanes femininos que o atraem como a cafeína e a nicotina e a adrenalina e que as relações sexuais o libertam do bulício de todos os dias e que não existe outra realidade para além da realidade de um corpo tenso de desejo ao que ela respondeu que também por aí anda à procura da vida e do desejo e da espuma dos dias e do brilho das estrelas e da vida vivida com a intensidade dos sábios e dos ascetas que gostam de viver para contemplar e de contemplar para viver e de olhar para a vida com olhos de inclusão porque compreender é perdoar e, deus do céu, sinto-me tântrica, disse ela sem gaguejar, quando olho para ti com o espírito de te incluir por que se há coisa de que eu gosto é de incluir, sobretudo a ti, e depois observar para posteriormente concluir e sentir e desejar e eu desejo-te tanto, mas tanto, que me sinto infeliz que, mesmo não parecendo, é a forma superior, intelectualmente falando, de felicidade, mesmo que aparentemente invertida, como invertida é a noção da realidade, porque a realidade, o que nós apelidamos de realidade, não existe, o que sim existe é a ficção, a tua ficção, a minha ficção e a obsessão, então ele interrompeu-a porque achou que devia e confirmou tudo o que ela disse e sublinhou a parte da inclusão e do desejo porque o desejo é sempre a afirmação superior de estar vivo porque estar vivo é tentar possuir algo, a posse é o instinto básico da sobrevivência e para cada um sobreviver é preciso querer e querer um corpo é bonito e essa beleza só pode desaguar no desejo porque a beleza não existe senão na forma de arte, porque, bem vistas as coisas, copular é uma arte, a primeira arte, a arte mais praticada, a arte mais popular, a arte antes e depois do pecado, porque deus também pecou, e peca, quando gerou cristo, o que nos leva ao mistério da religião, a religião é uma outra forma de linguagem do prazer e da transcendência, porque toda a transcendência, sendo religiosa, é também a forma superior de redenção e eu quero render-me ao teu corpo, possuindo-te agora por palavras que nos aproximam concomitantemente da realidade dos corpos e, valha-me deus, da sensação total da vida e tu és a minha vida e eu sou a tua vida e nós os dois, por incrível que pareça, somos a vida de todos porque a sublimamos e no sublimar é que está o ganho, ó inferno da carne, eu já ardo, e tu cegas-me, não sei o que mais desejo em ti se tu mesma se as tuas palavras porque as tuas palavras sabem-me tão bem, mas tão bem, que não sei se me aguento sem fazer mesmo aqui um escândalo, tu és o meu escândalo privado e o teu ligeiro estrabismo realça o prazer que eu sinto subir-me pelo corpo como uma cobra, a tal do pecado, e ela, Eva e cobra ao mesmo tempo, interrompendo-o, reafirmou-lhe a noção do poema e da escrita, porque a escrita, sobretudo a escrita de poesia, é amor é desejo é prazer, e sublimação, e uma mulher, que é mulher sem preconceitos, ama tanto, e tão bem, ou tão mal, como um homem, pois uma mulher no cio é como o vulcão dos Capelinhos, sempre pronta  a entrar em erupção, sim, eu sei, disse ele, mas a imagem física do vulcão a entrar em erupção é sobretudo uma imagem de amor no masculino, no entanto estou de acordo na ideia de que uma mulher não é um adjectivo é, antes, o magma submerso e fundador da terra, ou, quiçá, o verbo profundo e fundador da escrita, e eu desejo escrever em ti, como Abraão, o pai criador da compaixão, e escrever poemas de amor e romances de amor e cartas de amor e receitas de amor e menus de amor e ensaios de amor e dissertações de amor… e, interrompeu ela, com o seu sentido de humor apurado, novelas de escárnio e maldizer, objectivamente falando, conclui ele, vamos até minha casa ver o… ps, nestas, ocasiões, dizem os especialistas, ... muito mais do que uma mulher nua, os homens gostam de mulheres provocantes, com lingeries agressivas, mas, cara leitora, os homens fogem da vulgaridade como Cavaco Silva da intervenção política, o Manuel Alegre da realidade económica, o Sócrates do fulgor dos primeiros dias de governação, o Passos Coelho da responsabilidade institucional e o António Costa deles todos… relativamente à lingerie masculina, caro leitor, as mulheres, com o sentido prático que todos lhes reconhecemos, dão-se por felizes com uma erecção, mesmo simples, apreciando, no entanto, que ela seja natural, pois não vá dar-se o caso de o amante se finar antes de terminar a sua tarefa devido aos estimulantes químicos e ponto final. E, Deus do céu, talvez uma erecção matinal nos ilumine a todos. No entanto, por favor, evite os excessos. E, sobretudo, os desperdícios.

22
Dez22

Poema Infinito (644): Coma

João Madureira

IMG_4383 - cópia.jpeg 

Eu a ouvir os pinheiros e os eucaliptos e os gladíolos e as nespereiras, apesar de por aqui não haver nada mais que castanheiros. E a ouvir o riso das crianças e as indiscrições dos adultos, que já quase todos estão no cemitério do campo raso. E a inquietar os olhos nas casas descarnadas e nos caminhos esquálidos que seguem as linhas do abandono. Recordo o inverno, os dias felizes junto à lareira, as pessoas a encherem o adro da igreja, o coração a saltar do peito. E também os senhores que usavam bengala e paletó, sempre a marrarem com o olhar em frente para lhes abrirem caminho e a fazerem perguntas parvas como se fossem os donos da sabedoria e do tempo. E até do ar que respirávamos. Pontapeavam gatos, cães e mendigos, galinhas, burros velhos e as crianças enjeitadas. Deitavam-se com as criadas nos armazéns ou nos celeiros e depois elas iam chorar enquanto lavavam no tanque a roupa interior manchada de sangue. Os possidónios arranjavam sempre maneira de deitar a sua culpa, a sua máxima culpa, para cima dos ombros dos seus empregados. À noite, perante o olhar desconfiado das mães, elas, as estupradas, as violadas, as submissas, suspiravam como o vento e estremeciam como os pinheiros nos montes. Elas a olharem o reflexo da luz da lua no empedrado que iluminava os alpendres onde iam acomodar o gado. E os curandeiros a acender velas para afastarem as almas penadas. E elas a rezar e a tomar mezinhas para não alcançarem. E o senhor prior a olhar embevecido para a sua sobrinha que tocava piano como quem sacha terra cheia de seixos. E a desmanchadeira a abrir a porta do curral. E a estender o liteiro por cima das palhas. E a água a ferver nos potes para cozinhar as ervas abortadeiras. E a avó a bordar. E a mãe a bordar. E a madrinha a bordar. E as irmãs a bordar. E os homens na taberna a jogar à sueca com cartas surrentas estampadas com mulheres nuas. E Deus a desfitar a pecadora. E a pecadora a sofrer pelo pecado e a morder o pano de linho até à exaustão. E a suar. E a sangrar. E a pensar no pai ofendido e na mãe desnaturada e na limpeza da casa. E a pensar que o filho da puta até urtigas lhe chegou às nádegas e à vagina, como o fazia às porcas, para a excitar. Para a excitar, dizia o filho da grandessíssima puta. Ela murchou como as papoilas e ficou fraca de ancas como as vitelas enjeitadas. Deixou de poder alcançar, apesar do muito porfiar do marido. Olhava para as estrelas e chorava. Olhava para os bezerrinhos e chorava. Olhava para os cordeirinhos e chorava. Olhava para as crianças e chorava. Foi ao São Caetano. Em vão. Fez excursões a Fátima. Em vão. Foi até a Lurdes, a expensas de uma irmã emigrante. Ainda mais em vão. Ela a arrastar-se pelo empedrado em dia diluviano e o marido a cobri-la com o guarda-chuva. E beijou as mãos de quantos padres por lá havia. E freiras. Em vão. Tudo em vão. Cerimónias, lenços brancos a adejar, cânticos, mar de velas acesas, lágrimas, suspiros e ais. Tudo em vão. E fios e anéis e até a aliança de casamento entregue aos vendilhões do santuário. Tudo em vão. Melhor teria sido entregar o ouro aos próprios romanos. E chorava como os melros quando lhes tiram as crias. Depois ficou inerte, como se desistisse de tudo, indiferente à casa, aos animais, às crianças, às cabritinhas, às vitelinhas, caminhando devagar. E os cães a ladrar ao longe. E a misericórdia a tomar conta dela, como uma anestesia. Não recuperou do coma induzido.

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