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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

30
Jan23

622 - Pérolas e Diamantes: Foxtrote

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia.jpg 

A História é algo que um pequeno grupo de pessoas faz enquanto todos os outros trabalham para viver ou sobreviver. Por exemplo, a Revolução Francesa foi dirigida por advogados influentes e não por agricultores famintos. Os famosos anfiteatros romanos foram construídos por escravos para que os romanos ricos e ociosos pudessem assistir ao espetáculo de outros escravos a envolverem-se em violentos combates de gladiadores.

 

A verdade científica diz que Deus não existe. E, muito provavelmente, a maioria da hierarquia social, sobretudo a política e religiosa, sabe disso e pensa em conformidade. Mas então porque afirmam o contrário? Pois, porque todos eles leram Voltaire: “Deus não existe; mas não digam isso ao meu criado, não vá ele matar-me durante a noite.”

 

Lembro que quando em 1860, uma grande parte de cidadãos norte-americanos conclui que os escravos africanos eram seres humanos e, como tal, tinham de gozar o direito à liberdade, foi necessária uma atroz e sangrenta guerra civil para levar os estados do sul a concordar. Ou a fazer que concordavam.

 

O príncipe Talleyrand, que serviu a monarquia e também os regimes revolucionário e napoleónico, depois de décadas de experiência governamental afiançou: “Podem fazer-se muitas coisas com baionetas, mas são assentos deveras desconfortáveis.”

 

Toda a ordem existente no mundo é imaginada. Mas desde que é partilhada por milhões de pessoas, não há forma de lhe escapar. O historiador Yuval Noah Harari diz que quando derrubamos as paredes da prisão e corremos para a liberdade, estamos de facto a correr para o pátio mais espaçoso de uma prisão maior.

 

Por incrível que pareça, o primeiro nome registado numa tabuinha de cera, da cidade de Uruk (c. 3400-3000 a. C.) é a de um contabilista e não a de um profeta, poeta ou grande conquistador. Isto já vem de longe, de muito longe.

 

Milénios passados, os teólogos servidores dos senhores arianos europeus argumentavam que os africanos descendiam de Cam, o filho de Noé, que o amaldiçoou afirmando que os seus descendentes seriam escravos.

 

Ainda estamos para saber a quem os teólogos modernos atribuem as culpas pelas dezenas de milhares de pedófilos que conspurcam a hierarquia católica. Sodoma? Gomorra? Roma? Vaticano? Seminários? Conventos? Sacristias?

 

Ora tentem lá perceber a razão por que no tempo de Isabel I, de Inglaterra, durante os seus 45 anos de reinado, todos os membros do parlamento eram homens, todos os oficiais da marinha e do exército eram homens, todos os juízes e advogados eram homens, todos os bispos e arcebispos eram homens, todos os teólogos e sacerdotes eram homens, todos os médicos e cirurgiões eram homens, todos os alunos e todos os professores de todas as universidades eram homens e quase todos os escritores, arquitetos, poetas e filósofos, pintores, músicos e cientistas eram homens.

 

Uma coisa que se aprende com a história é que a maioria das vezes ela tem de ser servida mais vezes com a mentira do que com a verdade. O que satisfaz a populaça é a adoração do bezerro de ouro. O Moisés que vá pregar a outra freguesia. E por aqui andamos a pegar fogo uns aos outros a partir da revelação de que Deus se disfarçou de sarça ardente para falar ao profeta das tábuas testamentárias escritas com pauzinhos na argila do Monte Sinai. A partir daí, a casualidade incendiou-se.

 

É difícil não respeitar um guerreiro, já o mesmo não se pode dizer dos reis. Os reis até podem ser boas pessoas, mas a sua condição de monarcas é iníqua, abstrusa, indigna, abjeta, atentadora dos direitos humanos, insolente, estúpida, antidemocrática, medíocre e novamente estúpida estúpida estúpida estúpida estúpida, inútil, ignóbil, um circo de palhaços ricos, uma peça de tartufos, uma tribo de manequins armados em pavões, o máximo atentado humano à igualdade, absurda, desprezível, vil, indecorosa, infame, vergonhosa, menosprezível, hipócrita, mentirosa, farsante, enganadora, dissimulada, anacrónica, anacrónica, mentirosa, indecorosa, insolvente, ladra, indecente, ignóbil, aviltanteaviltanteaviltante, afrontosa, indecente. Todos eles parecem cavalos amestrados, ajaezados à inglesa, ao toque das cornetas e excitados pelo ladrar dos cães. Coitadas das raposas.

26
Jan23

Poema Infinito (649): Tontura

João Madureira

IMG_4383 - cópia 4.jpeg 

As histórias dependem de quem as conta. Por isso, os sonhos têm variações significativas. Sobretudo os lineares. Já os sonhos paralelos precipitam-se em finais muito diferentes. Os seres mais ousados insinuam que os inventam. Também há os que ficam encalhados no passado. Mais ritmo não é mais velocidade, é mais gozo. Ai das mulheres a quem assacam tempestades. Há os que guardam silêncios. Mas também existem aqueles outros que os dinamitam. Há os que vão embora porque querem. E há os que não conseguem regressar porque não podem. Mas quando vão, todos eles, sem exceção, pensam um dia poder regressar.  Mais do que a coreografia verbal, o que conta é a vontade. Também há bruxas boas e fadas más. Está tudo nos livros infantis. Os segredos incomodam. Na vida há pelo menos duas velocidades e não é possível controlá-las. Elas é que nos controlam a nós. Até o silêncio tem dois lados, num nada se ouve, no outro até o crescer da relva se escuta, ou o bater do coração dos pássaros. Pode parecer bonito o sol no meio da tempestade, mas é sol de pouca dura. Viver e amar é outra forma de estar ferido. O amor requer cuidados pessoais. E sacrifícios. E exige tentar amansar a imensidão da consciência e de não falar com palavras por baixo das palavras. E de prever o vento. Quanto mais azul, melhor. E de construir um espaço para o outro dentro de nós. Dá pena ver pássaros tão pequeninos cair dentro desta imensidão. Dá pena não lhes poder valer. E depois ficar com aquela impotência dentro de nós. Foram o caule fraco da nossa alegria. Abriram as suas asas como as flores. E depois morreram. Por serem quase perfeitos, são um grande erro do criador. A beleza pura não tem nada a ver com as suas características. A quem deixamos as histórias? A transmissão dos seus voos? Os super espaços que desenharam as suas asas nos nossos olhares? As linhas de fuga a arderem. As fotografias incapazes. Os estilhaços das pedras e das fisgas. A dor das sequências. A solidão dos esboços. A verdadeira beleza é anónima. Não necessita de referências. E a família a ouvir-se no fundo da casa. Os pássaros não choram. Apenas morrem. Uma pessoa habitua-se ao absurdo. Só pode. E a linguagem a criar o fogo. Para as aves, todo o vento é azul. Florestas de tristeza rodeiam os lugares e os velhos templos, as praças desertas, os idosos, as casas em ruínas. A alegria já nem sequer nos chega em forma de surpresa. As memórias são como borboletas à volta da lâmpada. Apesar da calma aparente, tudo parece mais contraído e inquieto. À exceção do ser humano, o universo é todo ele indiferente. O silêncio não consegue evitar a chuva. Os sentimentos não têm nada a ver com a força da gravidade. Agora os velhos alforges apenas servem para carregar as memórias de um lado e a dor do outro. Estas montanhas já não podem ser conquistadas de novo. Tudo dá sinais de desgosto e abandono: as pinturas estaladas, as paredes de granito cobertas de musgo, as varandas de madeira a desfazerem-se, as árvores a morrerem por falta de amor. Alguma roupa ensopada esvoaça ao vento nos estendais. Ouvem-se passos cansados a tentarem lembrar-se dos velhos caminhos. Parece que os pássaros nos chamam com gritos de espanto. As histórias rodam em volta de si mesmas. E as saudades rasam o chão como andorinhas. A primavera vai voltar para se entristecer de novo. As memórias provocam-me tonturas.

23
Jan23

621 - Pérolas e Diamantes: Eu e Corto Maltese

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 8.jpg 

Houve um tempo em que pensei fumar papirossas, passar os serões entre escritores, algumas vezes pálidos de tristeza ou a tremer de frio e raiva, outras alegres e divertidos. E eu a irromper pelos salões, timidamente ardente, fogoso, delicado, conquistando corações, tocando com a minha ingenuidade os lábios ardentes das donzelas, que até podiam ser camponesas, princesas ou literatas. Ambicionava provar o sabor do pecado sem pecar. Ser rebelde e corajoso, sem abandonar os bons costumes e a boa educação. E fingir delicadamente tristeza para as mulheres me darem mimos. E depois, animado por um ou dois copitos de vodka, começar a ler os meus poemas transbordantes, repletos de alegria, tristeza,  amor e abandono, deixando os aplausos para o fim, como nos concertos de música clássica. Altura em que me despedia e ia para casa escrever novos poemas atormentados, no meio do sofrimento da criação e da inspiração. E, nos intervalos, ir assistir, como um juiz, à Revolução de Outubro, vendo o poder a oscilar e a mudar de mãos nas várias lutas entre “Brancos” e “Vermelhos”. E, continuando a fumar papirossas e a beber copitos de vodka, deslocar-me até à velha cidade de Jerusalém e propor a todas as nações do mundo que ajudassem Israel e a Palestina a conviverem em paz e harmonia. Sonhei ser amigo de Corto Maltese e aprender com ele a amar as mulheres misteriosas e a perceber os homens. Todos os homens, independentemente da sua ideologia. Ele a fumar cigarrilhas e a beber rum no seu veleiro e eu a seu lado a fumar papirossas e a beber copitos de vodka. Ele sempre misterioso e eu sempre poeta. Ele sempre a praticar o bem sem olhar a quem. E eu a escrever a sua Odisseia. Constantemente a navegar por dentro da Balada do Mar Salgado, a percorrer a Sibéria, a viver a Fábula de Veneza ou a visitar A Casa Dourada de Samarcanda, sempre sob O Signo do Capricórnio. Eu, além do francês obrigatório, aprendia línguas, o russo, o iídiche, o árabe, o aramaico e o italiano. Há lá língua mais saborosa que o italiano! E há lá herói mais herói que Corto Maltese! Este mundo está pejado de inimigos e apenas de alguns amigos. Por isso há guerra, miséria e opressão. Mas também existem heróis de banda desenhada como Corto Maltese e candidatos a escritores que fumam papirossas e bebem copitos de vodka quando estão em saraus literários ou entre amigos. Olho agora para uma foto tirada quando eu usava bigode e boné, ao lado do Corto Maltese, sempre jovem. Ele a sorrir quase como a Mona Lisa. Enigmaticamente. Nele vejo astúcia e determinação. Em mim observo uma enorme vontade de possuir esses dois atributos. Eu alto e magro como um lareiro, de lacinho, olhos ingénuos, óculos redondos por causa do astigmatismo, meio embaraçado, meio orgulhoso, rosto a transbordar de otimismo. E o desejo escondido de fumar papirossas como os revolucionários anarquistas russos e beber copitos de vodka. E escrever poemas iluminados. E infinitos. E de passear na Praça Vermelha vestido com elegância e a cabeça coberta pelo chapéu russo chamado chapka, ao lado de Corto Maltese, o Príncipe Mitchkin, Dostoiévski, Nikolai Vasilievich Gogol, Anna Karenina e Nastasya Filipovna. Todos ainda decididos, desafiando o destino. Neva. La place Rouge était blanche… Depois, como sempre acontece desde que o mundo é mundo, o solo da Rússia começou a fugir-nos debaixo dos pés e foi o cabo dos trabalhos. Lá se foi a revolução, a poesia romântica e a superioridade moral dos comunistas. Mas uma coisa é perder os ideais e outra bem diferente é perder a honra. Desta amizade, ficaram alguns postais, raras cartas e o seu exemplo extraordinário. Corto Maltese, desde que Hugo Pratt morreu, passa o tempo deitado, com os olhos abertos e os braços e as pernas sempre a mexer. Por vezes grita. Tanto ele como eu, continuamos a desprezar e a ignorar as opiniões abjetas, outra vez bastante difundidas. Desprezando o racismo e os preconceitos. E por aqui andamos a defender a Europa das Luzes, a racionalidade, a tolerância e o progresso. Aqui. Até ao fim. Imaginando fumar, ele umas cigarrilhas, eu algumas papirossas, e beber copitos de vodka e rum.

 

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