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Edgar Faure disse que noventa e cinco por cento das questões políticas são questões de suscetibilidade pessoal. Os cinco restantes, digo eu, são questões tribais. Ai esta pequena dor de ser português! De não possuir visão própria, nem noção de destino e de fazer alarde da sua preguiça distribuída por todos os momentos da sua vida. Tudo é tão banal que até dói. Não é por acaso que os pacóvios elegeram como canção nacional o fado, que, bem vistas as coisas, tal como o tango, nasceu nos prostíbulos. E não é defeito, pois claro, é mesmo feitio. Quem quiser levar este país a sério só pode enlouquecer. Temos sempre a sensação de que estamos permanentemente onde não devíamos estar. E olhem que não é inquietação, como cantava o José Mário Branco, ou desassossego, como escreveu esse poeta idolatrado até à náusea, Fernando Alberto Campos Etecetera Pessoa, é mesmo falta de jeito. Nós não fazemos parte do Universo, mas do seu segredo, iluminados pelas procissões, maravilhados pelas festas e pelo foguetório, com um sentido prático para o improviso que me leva a pensar que esse é o quarto segredo de Fátima. Apenas um povo como o nosso, que reza mesmo enquanto come, é capaz de criar um fosso quase intransponível entre o português falado e o português escrito. Nós somos assim, mas não é por mal. Nascemos de um milagre fugaz mas ainda aqui estamos para testemunhar o êxito dos outros. Os portugueses, honra lhes seja feita, apreciam-lhes a exigência e até a ela se submetem com um sorriso na cara e uma vénia bem composta. A maioria nasce na província e depois vai morrer no exílio lisboeta. Todos guardam na memória a mãe e o pai a vê-los partir de comboio enquanto a restante prole diz adeus do cais da estação. No fim da adolescência ouvem música medíocre e não revelam nenhum respeito pela literatura clássica, ou outra qualquer. Os portugueses não gostam de teimar nas vocações, no trabalho e no estudo, apostam mais na facilidade. O que eles querem é ser felizes, mas nem nisso acertam, apesar de serem viciados em raspadinhas. Apreciam memórias passageiras, uniformes, medalhas, emblemas e disfarces carnavalescos. Dão mais crédito à autoridade do que à razão, com o resultado que todos sabemos. A verdade é que o humor dos portugueses é tão requintado que a parte que o ouve, ou o lê, nem sequer o entende como tal. Os pais foram fascistas, os filhos comunistas e os netos são uns descrentes que bebem Coca-Cola Light, café descafeinado, água das pedras sem gás, cerveja sem álcool e até se dizem sociais-democratas sem orientação definida ou liberais praticantes de yoga. O passado entristece-os, o presente aborrece-os e o futuro será o que o Deus do improviso lhes oferecer. Agora a cultura vem em camadas como os bolos de bolacha. A liberdade deixa alguns imaginarem a falta dela. São os que dizem apreciar o mergulho em apneia. Claro que tudo isto podia ter sido pior, ou também podia ter sido melhor. Mas foi o que se pôde arranjar. Nem coisa que se veja, nem obra que se despreze. E por aqui andam grandes artistas a produzir obras que vendem a parentes pobres por preços simbólicos, que compensam pela admiração e pela simpatia genuína. Do mal o menos. Obras onde sopra o vento poético. Do artista fica a obra e o sentido explícito de quem acredita naquilo que faz. O resto pouco importa. Onde põem a lua também põem a luta e o sol algum dia brilhará para todos nós. Há lá ideia mais bonita! Quando estão por perto, todos vivemos em festa. Apesar de não perceberem o mundo, entendem as pessoas. E isso é o que importa. O que interessa é a revolução das almas. Nesta gente admirável não existe qualquer tipo de esforço pedante para se impor ou exibir. São como são e isso basta-lhes. Acreditar no parto sem dor é uma ideia bonita. Todos os compromissos implicam incoerências. Só a morte define a distância definitiva. A sobreposição de critérios acaba por complicar sempre as coisas. Então como conciliar privilégio e justiça? Pois, para acabar por hoje com este desdizer, afirmo alto e bom som que não é possível. A luta pela igualdade não é uma vocação. É uma necessidade. E a generosidade, caros amigos, é um empecilho. Os compromissos são difíceis, mas não existe outra forma de viver em democracia.
A amargura também se come. Eu bem a misturo na salada com a alface, o tomate, as beldroegas, a cebola, a rúcula. E lá a engulo, disfarçada de alimento verde e fresco. Antigamente procurava o tempo por necessidade. Agora faço-o por pura curiosidade. O tempo de agora está cheio de silêncio. E de pó. Passo o pano ao de leve para dar brilho à saudade. Ela ali e eu aqui. Os dois a encarar a inutilidade da louça, da roupa da cama, das janelas quase desfeitas, dos armários vazios. Tudo a caminho do esquecimento. Vestígios de casas devagarosas, de fechaduras obstruídas, de réstias de luz amarela. As perguntas sem resposta encaixam umas nas outras. Estas perguntas não têm resposta. Nem a querem. As razões são diferentes, dependem de cada um. Já não é possível voltar atrás e dizer que os amava, bem mais do que eles poderiam pensar. E ali estão eles a sorrir para quem olha para a sua fotografia. Já não têm necessidade de amor. Morreram. E eu também um pouco. E um pouco mais ainda quando penso neles. Eu a esconder os sentimentos e a contrariedade. Agora já é tarde. Por incrível que pareça, os seus olhos sorriem mais do que as bocas. Ainda não suspeitavam do anúncio do fim de toda a esperança. E o galo na capoeira a enervar as galinhas. Agora encontramos espectros onde deixámos pessoas. Os canteiros destroçados. As fotografias encarquilhadas. O vento ainda existe e as folhas dos carvalhos estremecem e a luz do sol inclina-se para aquecer a relva. Eu a varrer a eira com o olhar, a mesma eira que elas varriam com a vassoura de giesta ou de codessos. No seu tempo, foram as mulheres mais bonitas da aldeia. Tal mãe, tal filha. Agora as palavras afogam-se no ar. Posso regressar ao local, mas já é impossível regressar às pessoas. A essas pessoas. Este vazio está cheio de inquietação. O mundo a acabar antes da janela, antes do vidro, encostado à luz que se espalha pelo chão como se fosse fogo sem calor. Os meus olhos já entenderam a maneira como Vermeer transportava a luz para as suas pinturas. Os espaços abertos parecem cada vez mais fechados. Como se fossem circulares. Como se fossem repetições. O interior é como uma daquelas aldeias que foram submergidas pelas águas das albufeiras e que aparecem depois como fantasmas em tempo de seca. Os de lá dizem que vão para o sul. E que gostam. Os de cá confessam que os seus caminhos, todos eles, por mais imperfeitos que sejam, os levam para norte. Gostam do frio. O que parece uma coisa inexplicável. Amam as geadas. A neve. O lume das lareiras. As chouriças. A pinga. O foguetório produzido pelas chamiças das urzes. A intimidade dos momentos. É preciso pensar melhor a solidão. As lágrimas atravessam o escuro, as paredes, os muros, os palheiros. E vão esconder-se no forno onde a memória delas as aproveita para temperar o pão lêvedo. O silêncio amplia as vozes sussurradas, como se juntas formassem uma oração sem princípio nem fim. Depois de perder o tempo, chegará a altura de perder a razão. Para resistirem ao desespero e à desilusão, elas enfeitavam-se com as lendas. Muitas vezes o sorriso congelava-se-lhes no rosto. Nas festas de família, elas comiam sempre com um braço no colo, para criar lugar para quem chegava de surpresa. Só agora percebo o valor simbólico da atitude. A verdade é que não voavam porque lhes pesavam as asas. Cresciam-lhes porque tinham medo de voar.
O mundo está cheio de seres humanos que serviram um ideal e não o conseguiram alcançar. Repleto de pessoas que não conheceram o verdadeiro amor, fingindo habilidades e compaixão, esperando recompensa por proferirem palavras amáveis, desejando um pouco de companhia e até um orgasmo de vez em quando. Há pessoas que não se apercebem das coisas mesmo que estejam em frente delas. Por vezes forçam o amor, mas dessa maneira ele não se desenvolve. A muitas faltou-lhes uma guerra. Combater os outros em vez de dar porrada nos seus. De resto, até ganham o suficiente para serem razoavelmente felizes. As esposas exalam gemidos recriminatórios e escusam-se ao ato pretextando enxaqueca. Os maridos sonharam, por causa dos exemplos, serem pais para desancarem os filhos. Os bons exemplos devem repetir-se. Esse é o recurso educativo mais eficaz e mais simples. Não há nada melhor do que replicar os costumes antigos aprendidos na infância. Os filhos aderiram agora à moda das tatuagens, aos desenhos na pele. E o casal, quando se separa, a mãe fica com a vivenda e o filho e o pai com o carro e a cadela. E depois passam a jogar à defensiva. A gastar demasiada energia a fazerem mal um ao outro. Apesar de crentes, a religião quase não está presente em casa. Batizam os filhos e levam-nos à primeira comunhão apenas para cumprir com a tradição e com a formalidade, para agradarem aos avós e para evitarem situações discriminatórias na escola. Os rebentos passam o tempo a enviarem selfies uns aos outros, especialmente de estâncias balneares, com um sorriso rasgado no rosto como prova da sua felicidade. Muitos, sem nada para fazer, encafuam-se entre quatro paredes e desenvolvem, ou dão forma, à preguiça, ao tédio e à modorra. E também pedem emprestadas, uns aos outros, as expressões. Olham para os interlocutores, mas não os ouvem. São enfadonhos e gostam de se ouvir a falar com evidente prazer. Apesar dos seus discursos infantis, com raspas de erudição wikipediana. Admiram as coisas mas não sabem bem porquê. Nem quais são as tais coisas. Os anos passam, mas o tempo desperdiçado continua a gotejar nas suas vidas. O problema é quando o esforço e o entusiasmo não lhes servem para nada. Uma coisa sabem os pais, os filhos e os netos do Espírito Santo: apesar de preferirem declinar os pedidos dos seus superiores, são sugestionados a fazer as contas e a avaliar as consequências possíveis, concluindo, os arautos da desobediência surda e muda, que, obviamente, é mais vantajoso ceder. Todos têm de ganhar mérito, conseguir aceitação. Submeter-se. Estão, estamos todos, sempre a cair na armadilha social, estrangulando, silenciosamente, a nossa juventude e traindo os nossos ideais. É a modos como um parto com epidural. Ou cesariana. Os mais corajosos até recorrem às barrigas de aluguer. A maturidade consiste no supremo ato da resignação. Por causa das conveniências, a covardia vai-se transformando em hábito. Quando nos descuidamos, estamos a votar no tal partido que abominávamos. E então lá vamos bebendo o nosso gole diário de amargura. Os mais organizados guardam-se para os shots de fim de semana. Pensamos até dizer que amamos o próximo mais do que a nós mesmos, como nos ensinaram a avó, a mãe e a catequista divorciada que tinha um deficiente desempenho sexual, mas a timidez paralisa-nos. A timidez e o hábito. Nós temos vergonha de ser ternos. O melhor mesmo é ninguém se sentir culpado de ter desfrutado do seu orgasmo. Há mais orgasmos que chouriços. Há santos e pecadores em todo o lado. E também em todas as posições. É tudo uma questão de ritmo. Mas não nos devemos conformar. É sempre possível elevar o nível. Com a exigência surge a particularidade. A subtileza dos pormenores. E Deus, ao que dizem os sábios, está neles. E não devemos imitar a voz dos outros, pois pode sair-nos um gemido que nos pode comprometer. Os adultos não são anormais, mesmo que o possam parecer. Parece que agora, a linguagem do amor são poemas breves e trava-línguas. Há os adultos que são rápidos por causa do entendimento e os que são lentos porque percebem tudo. Mas uma coisa é melhor do que nada. E as duas juntas dão sentido à brincadeira.
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