São Martinho de Anta
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Nós sentimo-nos ainda mais indefesos quando não há nada de concreto que possamos defender. Ou combater. As brincadeiras não se moldam, o que se molda são os brinquedos. A minha gaivota não voa porque tem corpo de madeira, asas de zinco e bico de prego. Não voa, mas parece. Nela estão misturadas a alegria e o desalento. Voar livremente é perigoso. É como pensar. Livremente. E ali está ela ao lado do Anúbis, que já foi partido ao meio e colado com supercola 3, com a Santa Muerte, com o Santo Filho Muerto às carrachulas, e com Thot inclinado sobre o lado direito por defeito de fabrico. E com a Matrioska, e com o ioió grego. E com uma Santa Luzia pintada à mão, com os seus bonitos luzeiros a olhar para os seus olhos bonitos que estão depositados no prato, como se de duas pérolas vivas se tratasse. E Jakob, o Mentiroso, a interromper o seu trabalho de judeu preso num campo de extermínio para desfrutar do fascínio de um som nunca ouvido. E os barítonos fortes a cantar fraco. E nós a deixar de desejar o desejo. A esconder a dignidade debaixo do tapete como se fosse lixo. Deus não tem noção de quando uma conversa chega ao fim. Deus parece que fala em surdina e os humanos fazem que ouvem com meio ouvido o seu discurso incompreensível. Ele do lado de lá e nós do lado de cá. Nós daqui e vós daí sois tantos como nós, mataremos o cordeiro e as vísceras são para vós. Senhor. Deus deixou criar os guetos e os gulagues porque sabia que não ia ser metido lá. Ninguém disfarça as desigualdades. Todos a fingir. Igualdade. Infortúnio. Anjos que são sentinelas. Que têm duas mãos direitas. Quando alguém faz as suas orações, uma estação de eletricidade ganha mais potência, mas a verdade é que uma outra começa a falhar. E Deus a dar-lhe. Deus não recupera o tempo perdido. Deus, o verdadeiro Deus, elimina-o. Parece que andamos todos os dias a descobrir o medo. O medo dele. O nosso medo. O medo não acontece por si só. Tem as suas leis próprias e insondáveis. Podes ter uma balança, até daquelas muito sensíveis, mas nunca conseguirás pesar a esperança. Nem a tua, nem a dos outros. Acho que nem há fórmula para a produzir. Ou efeito para a reproduzir. E a lenda diz que nós regressaremos à aldeia com a mão a segurar o queixo e o nariz a tocar o vidro que emoldura a paisagem verde agreste, cheia de giestas, tojos e pinheiros bravos. Semeada de rochas. E a saudade a entrar arrastada nos nossos olhos. E nós a desistir daquilo que não fomos capazes de conseguir. Mas a tentar pensar que na água tudo pesa menos, até os sentimentos. Casar-se em apneia é uma bela ideia. E os sentimentos em filigrana. Este cheiro a abandono e a compaixão tem muito a ver com má consciência. A minha barba cresce como se fosse o restolho das terras dos campos em volta. E eu à volta do adro da igreja, como se estivesse no adro de uma prisão, a trautear as canções com os lábios quase imóveis que a mãe me cantava quando eu estava doente na cama a fixar os monstros na parede. O silêncio à noite ainda é mais espesso. E o frio da noite lá vai executando os pássaros. E nem um pio se ouve. Faz tudo parte da normalidade, dizem. Dizem os que estão habituados. De manhã pegam neles, pegam-lhes nas penas da causa, e lançam-nos para longe. A quietude e a normalidade engole os sentimentos. Na primavera vêm outros. Não há que ter pena, é a lei da vida. O que passou já não tem realidade. Quem me dera que a realidade fosse uma mentira. Mãe. Pai. Quem me dera. Choramingo como uma criança.
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E de repente aconteceu algo inaudito. Algo de completamente diferente do que estávamos habituados a observar. Mas eu nada de dar parte de fraco. Nem de forte, convenhamos. Por vezes acontecem-nos coisas destas, desabam sobre nós acontecimentos de que não estávamos minimamente à espera. Mas é isso que dá sentido à vida. O inesperado. Uma vida vivida no ramerrame do dia-a-dia torna-se insuportável. Eu, digo-vos a verdade, não a conseguia aguentar. Ainda bem que sou solteiro. Tenho toda a liberdade do mundo, ou quase. O casamento condiciona muito a vida de uma pessoa, ou das duas. Mas, como vos ia dizendo, naquele dia aconteceu algo de surpreendente. Algo de completamente inesperado. Todos os que lá estávamos concordámos que uma oportunidade daquelas unicamente sucede uma vez na vida. Ou nem isso. Foi extraordinário. Ninguém estava à espera. Se alguém estivesse à espera de assistir a algo parecido, presumivelmente aquilo não tinha acontecido. Mas aconteceu, assim de repente. E foi por ser algo de inesperado que fez com que tivesse resultado. Quase nunca estamos no lugar certo à hora certa. Quase sempre estamos no lugar errado à hora errada. Mas daquela vez não. Todos os que lá estávamos sentimos um misto de temor e júbilo. É difícil de definir tamanha sensação. Apenas posso dizer que foi estranha. Essa é a mais pura das verdades. Experimentei um sentimento de incredulidade, mas não me deixei influenciar pela dúvida de questionar tudo o que ali sucedeu. Uns dizem que foi a surpresa o que fez com que todos quantos lá estávamos não conseguíssemos sair do lugar. A senhora que se encontrava ao meu lado ria e chorava ao mesmo tempo. Parecia doida. Mas doida varrida. No entanto, momentos antes, nenhum de nós conseguia conjecturar que aquela mulher, de porte tão distinto, tão senhora de si, se fosse abaixo daquela maneira. Parecia hipnotizada. Como vos disse anteriormente, aquilo aconteceu tão de repente que nem deu tempo para nos prepararmos. Mas foi bonito de ver. De viver. Podeis pensar que exagero. Mas juro-vos que o que vos exponho tem tudo a ver com a realidade mais primária. Não foi nada do outro mundo. A singeleza de tais acontecimentos é o que lhes confere cor e substância. Podeis-vos rir à vontade, mas tive a nítida sensação de ter voltado aos tempos de outrora. Não na perspectiva politicamente redutora. Não. Antes na dimensão poética da infância. Não caio facilmente nesses lugares comuns. E ali sucedeu tudo, menos um déjà vu. O simbolismo foi enorme. Enorme. A catarse quase nos afogou na nostalgia. Simbolicamente foi sublime. Nem todos os dias temos força anímica para nos deixarmos levar pela mais pura das ousadias. Sim, já sei que sou tudo menos ousado. Ou pelo menos julgo que é assim que me definis. Mas digo-vos que não sou apenas aquilo que pensais que sou. Alvejo um pouco mais. Ou menos. Ou tanto. Tanto e tão pouco. Depende da perspectiva. Da vossa perspectiva. Não é por sermos amigos que obrigatoriamente possuímos a mesma perspectiva. Confesso-vos que na maioria das vezes não concordo em nada com a vossa raison d'être. Mas não é isso o que verdadeiramente importa na amizade. Na amizade o que interessa é a tolerância. A amizade por vezes tolhe-nos a compreensão. Ou a dimensão do entendimento. O movimento. O ego. Sacrificámo-nos para nada. Os amigos não podem ser juízes de amigos. Foi pena não estardes lá comigo. Uma coisa daquelas era digna de ser vista e vivida na companhia dos amigos. Não de desconhecidos, ou afins. Mas, verdade seja dita, naquela ocasião todos os desconhecidos me pareceram amigos de longa data. Perdoai-me, se puderdes, a franqueza. Os rostos dos que assistiram espelhavam a maior das incredulidades. Mas todos acreditaram que aquilo a que assistiram foi dos acontecimentos mais importantes da sua vida. Sinto que foi a sua imprevisibilidade o que lhe conferiu a aparência singular. Fiquei estupefacto e rendido. Não estava nada à espera de assistir a uma coisa daquelas naquele local. Mas não foi o local o que determinou o seu simbolismo. A ter existido algum simbolismo foi a total ausência de símbolos. De facto, admito que sim. Sim, a minha resposta é positiva. Nem podia ser doutra maneira. Vós já me conheceis o suficiente e por isso sois as principais testemunhas de que eu não invento nada. A minha capacidade efabuladora é muito reduzida. E realidade basta-me. Não sou homem para criar uma outra realidade. A minha chega-me e sobra-me. Mas, como vos ia dizendo, algo de completamente diferente aconteceu…
PS – Receitas para ajudar a combater a crise.
Caril de camarão e ananás:
Ingredientes (para 4 pessoas de apetite moderado, ou prudente) – 552,23 ml de creme de coco angolano; ½ ananás fresco madeirense, descascado e cortado em cubos de 2 cm de aresta; 2 colheres de sopa de pasta de caril vermelha tailandesa; 2 colheres de sopa de molho de peixe tailandês; 2 colheres de chá de açúcar brasileiro; 354,76 gramas de camarão gigante cru de Moçambique; 2 colheres de sopa de coentros alentejanos frescos, picados; flor comestível para guarnecer (rosa, nastúrcio ou capuchinha); arroz de jasmim tailandês cozido em vapor, para servir.
Confecção: Coloque o creme de coco, o ananás, a pasta de caril, o molho de peixe e o açúcar numa frigideira grande. Leve a lume médio até querer levantar fervura. Descasque e retire a tripa ao camarão. Junte o camarão e os coentros picados na frigideira e deixe guisar, em lume muito brando, durante 3,21 segundos ou até os camarões estarem cozidos. De seguida guarneça com uma flor (rosa se for mulher socialista, nastúrcio ou capuchinha se for militante da oposição) e sirva com arroz de jasmim cozido em vapor.
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Não tinha berlindes mas uma caixa de botões coloridos para jogar. As palavras e as memórias procuram refúgios para se esconderem. O menino precoce com as suas manias. A tentar beijar o sorriso ainda mais precoce das meninas. E as meninas a serem meninas a saltar à corda a sua precocidade. Apetecia deitar-me à chuva. Enaltece-me a deliciosa sensação das gotas de água a escorregarem sobre a pele. São como pequenas insignificâncias que se vão expandindo. E nós com os beijos aos tropeções, como jovens namorados. E ainda com o sexo aflito e com as veias a baterem forte como o coração. O que é isto, mãe? Línguas de perguntador. E eu a aprender a ler sozinho pelas orações dos santinhos. E a tentar perceber as palavras do avô quando me falava dos peitos de rola que eram rijos como os das raparigas. E a mãe a pedir ao avô que se calasse e a avó a rir-se como se soubesse traduzir o sorriso do avô. Comecei a colecionar memórias, santinhos e cromos do futebol. E histórias da carochinha. Ainda gosto das narrações que se dispersam em todas as direções. Das histórias ilimitadas, como a superfície dos berlindes. Que não têm princípio nem fim. Aquele tempo tinha também outra dimensão. As suas memórias são agora como partículas de pó suspensas num feixe de luz. Tudo misturado numa infusão amarga misturada com as cores dos pássaros nervosos a comer as cerejas mais maduras da cerdeira da Clérga. Tudo num filme musical, mas sem som. Depois chegaram as facas de cortar ideias e as tesouras de podar alegrias. E tudo começou a ganhar outra forma. A dimensão nervosa e adulta de pensar. O tempo dos conceitos e das suas fronteiras. E começámos a duvidar das convicções. E das certezas. Todas as palavras são úteis. E inúteis. Depende. E chegaram também os silêncios. E os juízos de valor. Que também podem ser a mesma coisa. Depois chegou o amor e começou a ficar tudo iluminado. Quando o desejo é fixo, até os olhos têm ereções. O amor pode ser ensurdecedor. Uma espécie de felicidade infeliz. Uma alegria que provoca dor. Sinto o cheiro do amor. Tudo tem um cheiro. Surpreendo-me na tua boca. Na preparação do chá. Na velha pronúncia da avó, apoiada nos dentes e na leveza dos lábios. Quando as contava, as histórias pareciam estremecer. Por vezes eu adormecia com o rosto encostado à suave respiração do seu peito. A felicidade era um lugar onde se apanhava calor. A sexualidade ainda estava dentro da sua crisálida, ainda apenas havia risos, gritos, cantigas. E velas de cera na igreja. E água benta fria na pia. No verão andávamos com a pressa das sandálias que trazíamos nos pés. No inverno, era a lentidão das botas que nos pesava. As crenças eram escuras, como o pecado. A compaixão levava-nos ao silêncio. Por vezes, nem o lume nos aquecia. Nem o pão nos matava a fome. Ficávamos de olhos vazios. Tudo adquiria um tom pardacento a que era difícil fazer recuperar o brilho. No inverno, o senhor abade falava-nos do inferno e tudo ficava ainda mais frio. À noite, a avó acendia a candeia mas era difícil expulsar os pesadelos. Apenas a fadiga nos empurrava para o sono. Eu rezava para que o mundo mantivesse o equilíbrio e não caísse e se afundasse no mar profundo. Eu pensava na mãe e ela não vinha. Eu pensava no pai e ele não vinha. Ainda hoje oiço essa infância que julgava esquecida. Ainda hoje oiço os pássaros sufocados no ninho que construíam no telhado.
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