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A intranquilidade é um sentimento opressivo. O rio mantém-se inalterado, brumoso e indistinto. Os resistentes andam ainda à deriva na vida. A tranquilidade é uma noção ilusória. Dói-me a paciência para descer as escadas do cretinismo. Uma coisa é subi-las envolvido na ignorância da crucificação, outra, bem distinta, é descê-las depois de ser pregado, martirizado, embebedado com vinagre, e, se ainda fosse pouco, abandonado pelo próprio pai divino com a desculpa permanente da salvação de quem não necessita, nem merece, a salvação celeste. Pai que é Pai morre em vez do filho para salvar a honra e a progenitura. O filho não tem que se submeter aos evangelhos de um pai vingativo. Antes pelo contrário. Ainda me lembro do dia em que a Amarela, a vaca preferida do João Lorde, pariu um bezerro enviesado que acabou por morrer. Estava a chover. Sentou-se num banco de madeira, cá fora, e a chuva transformou-se em granizo. E ele permaneceu ali sentado. As pessoas a olharem para ele como se estivesse louco. Depois os seus filhos içaram-no entre braços e levaram-no para dentro da cozinha e pousaram-no no escano, junto da lareira. Maria Fonseca serviu-lhe uma sopa quente de pedaços de batata, macarrão, feijão, tudo preparado num pote onde se cozia um osso de presunto. Dentro da habitação, a sua sombra foi-se convertendo noutra sombra. A sombra de toda a tristeza. Tanto trabalho, tanta esperança, para nada. Nalgumas macieiras do quintal, veem-se ainda pendentes alguns frutos ressequidos, que fazem lembrar ornamentos natalícios da árvore sem folhas. E as memórias continuam sozinhas e imóveis. O João Lorde, de olhos doridos pelo apaziguamento, a observar as brincadeiras dos pombos. E os camponeses curvados e em sofrimento. E várias pessoas a passearem os seus pesadelos. E ele a olhar para o teto que devia representar o céu. Maria Fonseca tem tanto tempo nos olhos! A casa está adormecida. O caráter é o que interessa nas dificuldades. Não consigo conceber um texto sem pessoas. Mas não deixo de tentar. Casas sem pessoas ocupadas. Com narradores intermitentes. Casas com uma superfície feminina. Com raparigas rigorosamente sexuais. Felizes. E depois infelizes. Não acredito em neuroses heterossexuais. A feminilidade no interior da sexualidade. Vaginas e rosas. Espinhos. Adornos. Podas. A magnificência da indeterminabilidade. Não há sol dentro de casa. Não há luz. A nostalgia parece artificial. Sempre a fotografar o vazio. O Kama Sutra a tomar conta das Mil e Uma Noites. O imaginário. A estrutura cruel da linguagem a parecer inadequada. As borboletas a voarem diretas à luz. O buraco negro da sexualidade. O arrependimento. A encenação. A teatralidade. A aniquilação. No entanto, as mães continuam a rezar o seu terço de estrelas. E sorrisos. Todos temos um passado. Todos temos um princípio. Tudo caminha para o seu fim. Quando vejo o bordado, tenho de acreditar na bordadeira. O terraço cobre a ferida da deserção. Os delfos fazem a vigília. Respiramos devagar para não atrapalhar a desordem harmoniosa das lágrimas, a idade do trevo, os grãos de milho ao relento, a latitude dos verbos, a sintaxe do desdém, o crepúsculo dos adjetivos, a mágoa, os montes, o desespero. Dialetos e caos. A fria alegria da neve. As margens dos dialetos. As bocas suavizando a dor.
Dizem os entendidos que somos um povo que gosta de falar de si próprio, que temos paixão em falar de nós, daquilo que somos e não somos. Eduardo Lourenço considera que sofremos de hiperidentidade, seja lá isso o que for. Outros acham que Portugal é, em si próprio, uma contradição, pois, apesar de sermos capazes de dizer mal de nós, apenas o fazemos entre nós, e ficamos ofendidos se alguém lá de fora se atreve a reproduzir a nossa crítica. Mas é verdade que cada português tem uma questão pessoal a resolver com o país.
O antropólogo José Gabriel Pereira concluiu, através de um estudo feito com milhares de portugueses, que cada portuga se considera um exemplo para os outros, por isso o melhor do grupo em que se insere. Todos fariam, se fossem mandantes, a coisa certa. Todos seriam os treinadores perfeitos para a sua equipa de futebol ou o melhor primeiro-ministro de sempre e para sempre. Concluiu ainda que por cá ninguém manda em ninguém. Todas as corporações se indignam quando as querem tutelar. Os juízes estrebucham, os professores berram, os militares contorcem-se, os médicos indignam-se e os políticos fazem discursos apologéticos. Daí o grito tipicamente luso: Em mim ninguém manda, nem que se foda.
Basta olhar para o nosso entorno para verificarmos que tudo está a postos para os tempos que aí vêm, mas nada está em ordem. Ninguém tem um projecto consistente que nos permita encarar o futuro com optimismo. Não existe desígnio nacional. Avançamos por inércia. Caminhamos por caminhar. Todos querem ser dirigentes e ninguém aceita ser dirigido. A nossa identidade está em não termos identidade nenhuma. Por isso é que os vários estudiosos dos últimos dois séculos afirmam que Portugal é o país errado, sem viabilidade, povoado por gente pobre e inculta, onde nada dá certo. E as estatísticas evidenciam constantemente o mesmo: somos sempre o país do carro vassoura.
Fernando Pessoa escreveu que os portugueses são incapazes de assumir a culpa: é sempre a sexta pessoa de um grupo de cinco. José Gil tem razão quando afirma que o português se queixa sempre do país e nunca de si próprio. Mas, de todas as definições do ser português, se é que isso realmente existe, aprecio, com algum pesar confesso, a do historiador José Matoso, que identifica Portugal como um país dominado por uma minoria que sempre fez com que a maioria desenvolvesse os dotes do improviso, a tendência para viver o dia a dia ao sabor do vento, praticando a pequena fraude, investindo na economia paralela, na fuga aos impostos e apostando forte no clientelismo.
E, para que não pensem que me pus para aqui a escrever por minha conta e risco, chamo à colação várias e distintas declarações ao Expresso proferidas por gente que sabe daquilo que fala. Pelo menos, como bons portugueses, são os melhores comentadores do mundo e arredores.
O crítico político Daniel Oliveira diz que somos ciclotímicos, já que mudamos constantemente de humor. Tanto nos sentimos uns gajos extraordinários como, de repente, puxamos da guitarra e cantamos baixinho que somos o pior povo do mundo. Já o escritor e colunista do Correio da Manhã, Francisco José Viegas, diz que possuímos a característica da generosidade, embora, adverte, com a inteligência que todos lhe reconhecemos e que nunca nos cansaremos de elogiar, “mascaramos com ela a falta de disciplina, de exigência e de constância”. E sentencia: “Ser generoso não basta”. Basta é pagar os impostos a tempo e horas.
A socióloga Maria Filomena Mónica define-nos como pobres. E concretiza: “sempre fomos um país de camponeses pobres: entretanto deixámos de ser camponeses, mas continuamos pobres”.
O escritor Vasco Graça Moura dizia que somos baldas porque vivemos quarenta anos debaixo do manto negro do salazarismo: “O português só sai da balda para desenvolver outras qualidades quando submetido a um regime de autoridade, por muito desagradável que este seja”.
O historiador Rui Ramos declarou que somos faladores. E ele sabe daquilo que fala. “Mais do que pensarem ou fazerem, os portugueses falam. Falam, sem nada para dizer e em vez de conversar, dissociando a fala de qualquer pretensão de comunicação.”
Mas nem tudo são comentários tão desanimadores, apesar de genuinamente culturais. Existe sempre alguém que resiste, existe sempre alguém que diz não. E não é nem um poeta alegre, nem um sociólogo deprimido, e, muito menos, um historiador encartado e desencantado. A nossa salvação, em termos de argumentário, vem do chefe de cozinha José Avillez. Para ele nós somos corajosos. “É o que, ao longo do nosso percurso, nos fez ultrapassar momentos difíceis de cabeça erguida. É o que, perante a adversidade, nos faz continuar a lutar.”
Mas, nos tempos que correm, a sugestão ajustada chega-nos a através de Eduardo Souto Moura, Prémio Pritzker de arquitetura: “A solução para a arquitetura portuguesa é emigrar.” Estou em crer que o nosso compatriota não nos levará a mal o estendermos a sua arrojada sugestão a todas as outras profissões. E o último a sair que apague as luzes do aeroporto. Por favor.
PS – E enquanto o êxodo não se inicia, aqui fica mais uma sugestão, desta vez a cargo do Hotel Ritz, com o firme propósito de os estimados leitores prepararem mais um apetitoso cocktail.
Prime Tentation – 4 cl de Pama (licor de romã); 1 cl de sumo de limão; 1 cl de xarope de açúcar; 1 cl de Cointreau (licor de laranja); 1 cl de clara de ovo. Técnica: Misturar tudo no shaker e coar bem. Decoração: Cacho de arando e ramo de hortelã. Tempo de preparação: 8 minutos.
Apesar de ser míope e de a sorte não lhe sorrir, Maria descobria trevos de quatro folhas a grande distância e descortinava a lua nova ainda antes de ela ser visível. O problema era quando o vento virava no fundo do caminho e ficava ou muito frio ou muito quente. Então fazia que desaparecia atrás dos seus óculos. Tinha de continuar a esquecer. Os seus sonhos pareciam negras fosforescências. Das que habitam o universo desde a sua criação. Depois tudo caiu, como o fogo de artifício depois de explodir. O vento agora não para, desmancha-lhe o penteado e os bons propósitos. O tempo apaga-lhe toda a maquilhagem. Continua a esquecer-se das coisas, das promessas, dos livros e, depois, de si própria. É fácil perder o amor quando o vento das desavenças sopra forte sobre a preguiça dos princípios. Só quem olha para ela com atenção percebe que os seus sorrisos são desesperados. O som da felicidade parece-lhe um perigo. O sexo, ela sabe, não passa de um complexo. Tanta educação para nada. O sexo pode ser inconsequente. Quando acorda, o céu parece frio e está cruzado por relâmpagos. O terreiro é branco por estar aberto ao sol. As cordas estão cheias de roupa que se agita alegremente. Tudo parece fora de lugar, as madressilvas, os muros e as abelhas que saem do cortiço. Tudo parece estar confundido de espanto. Tudo se agita e serena, aceleradamente. Homens enxotam dos beirais as revoadas dos pássaros que procuram ninhos. Há sempre mais vítimas do que justiçados. A solidão é a voz da eternidade. Maria sempre teve um olhar excessivamente claro. Mesmo quando sofria, não gritava nem chamava por ninguém. Por vezes era possuída por uma espécie de malícia momentânea. Que ia e vinha como um espasmo. O pecado era apenas um ímpeto. Ela nem sequer sentia Deus. Tinha-lhe medo. Era uma espécie de abjeção inconsciente. O mal é algo mais do que o desafio que os outros nos lançam. Tem hálito de geada. Maria tinha uma espécie de sensualidade teatral, provavelmente aprendida vendo cinema mudo nos cineclubes. Descobriu nos livros a maneira triste de estar contente. E vice-versa. E de estar sozinha no meio da multidão. E a surpreender-se com a semântica. E a ser indulgente. E inocente. E fluente. E resistente. E também insolente. E a ser mar e terra, simultaneamente. Algumas vezes queria ser pássaro. Outras achava as aves inúteis. E ficava com os olhos frios. Sabia de cor os dias passados, onde o tempo continuava a agonizar. Em dias marcados no calendário cantava para arredondar as horas mais bicudas. Carregava-se de gestos. Maria conseguia iluminar como o sol, mesmo sem querer. Irritavam-na as esperanças verticais das pessoas que lhe contavam histórias exemplares. Na ida, gostava de anotar os caminhos do regresso. Aprendeu com a sua avó a lavar os olhos nas quatro estações. E depois chorava de alegria. A avó deixava-a vestir-se com palavras curtas, para agradar aos rapazes. Do seu sexo não vinha mal ao mundo. Gostava de deitar-se debaixo dos choupos, sozinha ou acompanhada. Edificava as palavras do seu amor sílaba a sílaba. E ciciava-as ao ouvido dos amantes. Respondia com silêncio ao silêncio de Deus. Esta era a sua forma de rezar. Depois começou a ausentar-se dos seus gestos. A ausentar-se todos os dias mais um pouco. E voltou à infância para nunca mais de lá sair.
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