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Orvalha sobre os campos, sobre as casas, sobre as pessoas que andam ao relento, sobre os animais selvagens e domésticos. Orvalha sobre os tojos, as giestas, as urzes, o milho e o centeio. Orvalha sobre o amor e a inquietação. As janelas dão diretamente para a serra. O Ribelas corre do lado esquerdo da casa. Devagar. O chão de madeira range. Olho o tempo imóvel. Ele faz o mesmo. Esta é a minha fase de espelho. Alguém deixou alguns ramos nos degraus do pelourinho. De flores. Cravos brancos e vermelhos, envoltos em celofane. A curiosidade tem os seus próprios movimentos. A igreja ainda reflete a pequena sumptuosidade pétrea e antiquada. O sino emite uma espécie de som rachado. O sacristão arfa a cada badalada. O cordão é feito de ferro forjado, à maneira antiga. Ele é constituído de carne macerada pelo tempo. A religião é um ofício. Passeio. Atravesso a pequena ponte para o lado de lá. Da casa. Nuvens. Nuvens. Nuvens. Provavelmente vai chover. É Semana Santa. Dúzia e meia de gatos pingados vão fazendo que rezam. Alguém transporta uma cruz de duas tábuas de pinho pregadas envolta num pano roxo. Parece que andam de cruzeiro em cruzeiro à procura de um apeadeiro. Mas este destino não é destino nenhum. Os cânones perderam o sentido. Bem vistas as coisas, a Via Crucis é o caminho escolhido por um suicida, aprovada ou decidida pelo seu pai. Nem por ser Deus, tem perdão. O Pai. Por ato tão fortuito e ignóbil. Filho perdoa o teu Pai, pois ele não sabe o que faz. Começou a chover. Confundo as gotas de água com os pensamentos. As gotas crepitam nos vidros das janelas. O vento dá uma ajuda. Viajo dentro de um invólucro de silêncio. Do meu silêncio. Há pessoas tão tristes que até fazem da ternura um resquício. Há vinho que entristece as memórias. E há memórias que azedam o vinho. A alegria escondeu-se debaixo das pedras. Era aí que as mães antigas a guardavam para que não lha roubassem. Utilizavam-na apenas em momentos especiais e usavam-na a modinho, para não a gastarem inutilmente. As últimas aves prenunciam a ida. Sabiam elas muito destes montes. As mães antigas. E das casas de colmo. Dos quintais. Das cerejeiras, das pavieiras, das macieiras, das pereiras, das figueiras e dos declives das vinhas. Iam às fontes encher os cântaros. Os seus maridos, quando não tinham nada para fazer, iam para as tabernas gastar o tempo, embebedando-se. Elas, as velhas mães, esperavam, esperavam sempre um pouco mais, suspensas na luz que introduzia a noite. Chegados a casa, eles elevavam a voz e elas lançavam gemidos para amarrarem o desespero. O amor, nesse tempo, era sujo, como tudo em seu redor. A distância, na floresta, mede-se de árvore em árvore. O orvalho, com as suas gotas, costumava ajudar a alimentar os sulcos. As estrelas que avistavam não tinham nome, mas as constelações eram férteis. Durante a noite, as habitações ficavam à beira dos astros. Por vezes, as velhas mães ficavam com os rostos insondáveis e cantavam, desornando com as mãos aquilo que lhes estava próximo. Lá fora, era tudo tão alto como o céu, onde costumavam perder o olhar. Deitavam-se depois nas suas camas frias despedaçando os sonhos. E as insónias dilatavam-se pela noite fora. Dentro de si apenas existiam duas estações: ou inverno frio ou verão escaldante. A harmonia não era inútil, era inalcançável.
Isto é como quem se confessa, eu sou metade marxista de Grouxo e outra metade comunista à maneira do avô de Amos Oz, Guetz Yefremovitch Mussman. Um comunista não bolchevique. Para ele, Estaline era um irmão gémeo de Ivan, o Terrível. Sentia-se um comunista pacifista, um comunista à maneira de Tolstoi, que se opunha ao derramamento de sangue. Receava a maldade que se deposita no interior da alma das pessoas de todas as classes. Acreditava que um dia tinha de haver um governo popular, comum a todas as pessoas honestas do mundo. Para isso, era necessário ir aos poucos abolindo os estados, os exércitos e as polícias secretas e começar a pôr ao mesmo nível os ricos e os pobres. Daí a necessidade de tirar a uns para dar aos outros, mas aos poucos, progressivamente, para não haver necessidade de recorrer ao derramamento de sangue. Nem que para isso levasse sete ou oito gerações, de forma a que os ricos quase não sentissem que estavam a tornar-se menos ricos. Segundo Guetz Mussman, o essencial era convencer as pessoas do mundo inteiro de que a injustiça e a exploração eram as doenças da humanidade e que a justiça era o único remédio: um remédio amargo, com toda a certeza, repetia, perigoso, sem dúvida, mas que tínhamos de ir engolindo pouco a pouco para nos habituarmos a ele. A verdade é que quem pretender engoli-lo de uma só vez, apenas conseguirá causar desgraças e derramamento de sangue, basta reparar no que fizeram Lenine e Estaline na Rússia e no resto do mundo. O avisado avô de Amos Oz também gostava de lembrar que Wall Street é um vampiro que suga o sangue do planeta, mas que não é com o derramamento de sangue que se combate o vampirismo. É precisamente o contrário, pois dessa forma apenas o conseguimos aumentar, alimentando-o, dando-lhe a beber cada vez mais sangue quente e puro. Para Yefremovitch Mussman, o problema de Lenine, Trotsky, Estaline e os camaradas deles, foi o quererem reorganizar o mundo segundo os livros que leram ou escreveram, sobretudo os de Marx e Engels e outros intelectuais, que, com toda a certeza, conheciam as bibliotecas de cor, mas que não tinham a menor ideia sobre a realidade da vida, a inveja, a maldade, a mesquinhez e a alegria sardónica. Na sua douta opinião, é pura loucura tentar organizar a vida a partir dos livros. De qualquer livro! Nem da Bíblia, nem do Manifesto Comunista. Jamais! Os dogmas matam as ideias. O que, segundo ele, valia verdadeiramente a pena, era organizar um pouco menos as coisas e ajudar-nos mais uns aos outros e termos um pouco de compaixão. O avô do escritor israelita acreditava sinceramente em duas coisas: na compaixão e na justiça. Mas defendia que ambas e duas deviam estar sempre ligadas, pois justiça sem compaixão é um açougue e compaixão sem justiça, talvez até fosse bom para o bom Jesus, mas não para os simples mortais que tivessem comido a maçã do Mal.
Já a avó de Amos Oz pensava que as qualidades mais importantes num homem são a honestidade e a bondade. Mas que a honestidade é ainda mais importante do que a bondade. A honestidade é a fatia do pão e a bondade é a manteiga ou o mel. Geração após geração, voltamos sempre aos assuntos eternos: justiça, beleza, destino, Deus. Enquanto uns discutem, outros limitam-se a escutar. Por incrível que pareça, são os últimos aqueles que acabam por triunfar, porque são adaptativos, medíocres. A grande maioria dos homens com qualidades, que são persistentes, inspirados, possuem alma grande e uma filosofia de vida muito especial, acabam por não ter sorte. Estar do lado da razão é meio caminho andado para o insucesso. O triunfo persegue aqueles que não são nem carne nem peixe. Esta é a tragédia humana, que traz sempre à mistura a sua dose de comédia.
Andersen, através do seu conto sobre os alfaiates do rei, pretendeu dizer que o povo é tão estúpido e mau como os reis. Uma coisa te digo do fundo do coração, povo, povinho, povo, o silêncio é uma coisa hostil, especialmente quando é da nossa responsabilidade. E a história de David a lançar com a funda a pedra contra a couraça do filisteu Golias é muito bonita, mas enganadora. A maioria das vezes, a pedra faz ricochete e acaba por derrubar o lançador. Apesar de tudo, devemos continuar a construir as fundas e a colecionar pedras para ter na despensa.
A verdade é que todos enriquecemos a terra com estrume.
Já dorme a aldeia, já dormem os campos, já dormem as gargalhadas. E cambaleiam os ébrios. O palácio da alegria e da tristeza está em ruínas. Dos mil anos anteriores já não resta um único vestígio. Tudo está amortalhado no denso nevoeiro do esquecimento. Vamos perdendo a vontade e a capacidade de recordar. Sob a luz intensa e invasiva do progresso, as memórias desvanecem-se como sombras. Por aqui passaram os nossos Trilhos Negros, os caminhos de bois da antiguidade que atravessavam as planícies ibéricas e levavam os cereais até ao Mar Mediterrâneo. A avó costumava recitar alguns dos primeiros contos populares mediterrâneos que preservaram os segredos do pão. Muitos dos homens que acompanhavam os carros de bois carregados de cereais entravam nas tabernas e perdiam-se do seu destino. Em boa verdade, os Trilhos Negros são pré-históricos, tão antigos como o pão. Os pequenos bacilos viajavam no interior dos corpos dos mercadores. Foram eles que causaram aquilo que denominamos como peste. Atravessando as planícies. Percorrendo as rotas comerciais. Dizimando as populações das terras onde os cereais eram colhidos e armazenados. Ainda mais antiga do que a mais antiga profissão do mundo, a prostituição, é o cultivo e a comercialização de cereais. Segundo o mito dos deuses eslavos e das lendas com eles relacionadas, as pessoas deviam copular nos campos a fim de selar o acordo com os deuses e, dessa maneira, orientar as plantas de trigo para a frutificação. Assim a deusa romana Ceres, conhecida entre nós como Nossa Senhora das Brotas, o abençoe. Os corações a bater e os sexos a arder. Apesar disso, a ansiedade nunca desaparece. A nossa terra brilha embutida em tonalidades quentes quando o sol sobre ela incide da maneira certa. É normal que os aldeões se desloquem até à árvore grande do largo central da localidade para pedirem bênçãos para os filhos. Depois passam na igreja para os benzerem com água benta. Caem gotas lentas dos olhos das mães. Dentro do seu peito guardam as confissões. Íntimas. Entre as suas coxas cintilam gotas de sangue do que poderia ter sido fertilizado. E não foi. A vergonha e o prazer podem ser húmidos. Também a luz sangra. Cortejos sumptuosos vão e vêm. E Deus sem sair do lugar. Procissões nas ruas. Barcos no cais. Pessoas instruídas a oferecer resposta para aquilo que não lhes foi perguntado. O amor é rápido. O amor e o brilho. Um beijo ligeiro nos lábios pode ser pronúncio de um amor robusto. Alguém canta na noite. Alguém bate à porta. Alguém necessita de dormir. A lua fica quieta. Sobre os campos verdes agitam-se marés de prata. Mãos de fogo atravessam o nevoeiro. Ouve-se uma confusão de murmúrios. Noites doridas. Fêmeas enlouquecidas. Depois os campos ficam pálidos como o rosto das mulheres paridas. Nos largos caminhos erram os peregrinos que desenham com os seus passos os itinerários humanos. Os equinócios movimentam-se dentro do seu próprio silêncio. E a Terra a girar a 465 metros por segundo. E tudo parece parado. Dentro dos gestos está o nosso próprio desígnio. Os vestígios. A nostalgia. A estética. Tudo a cintilar. E os silêncios antigos a beber a música e os abismos. Todos tentamos o verso e o inverso. Todos tentamos a bebida. Por isso vamos estendendo os versos até desencadear a loucura e ficarem em forma de céu.
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