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Na ausência de quem gostamos, os dias ficam demasiado longos. Alguém anda a regar o jardim com murmúrios de água. Os pequenos gestos sucedem-se como se fizessem parte do sacrifício. O jardim está cheio de moitas floridas. Olho para as folhas das árvores que baloiçam no céu. E penso neste universo, no meio de todos os outros, como se fosse um objeto. A realidade inteira é muito relativa. Tudo aquilo que se move perde sentido. Um homem assobia como um pássaro desorientado. Andam a colocar na igreja os anjos de asas abertas e longos cabelos dourados que foram para retocar e pintar de novo. Dizem que uma alma que se eleva, eleva o mundo. Por aqui não há almas desse género. Apenas a da Maria Fonseca era capaz de temperar de beleza a fealdade do mundo em que vivia. Bastava amassar o pão e misturar-lhe a levedura azeda do fermento para engrandecer tudo aquilo. No meio do silêncio, cada um pensa no que pensa. A lógica da memória não existe ou é desconcertante. A tristeza, esta minha tristeza, assemelha-se a uma luta de pássaros. A chuva começou a entrar na sala por um buraco fininho. Depois, sucederam-se os relâmpagos. A esperança morre agora mais depressa. Deus é como um cuco, sempre a pôr os ovos nos ninhos alheios. O buraco do tempo olha para mim com muita atenção. Faço que me rio. Eu estou perplexo. Ele está indiferente, como sempre. A Maria Fonseca anda a mondar ervas daninhas e urtigas. É a sua maneira de combater a raiva e o desespero. Não diz nada, mas o seu espírito está cheio de urgência. Agarra nas minhas mãos, ajusta as suas e aperta-as. Ela chora sobre o espaço vazio que agora existe. Eu engulo as lágrimas. Um homem não chora, ensinou-me o Venceslau. A coragem, em vez de se agigantar, diminui. As palavras doem, doem muito. E a Maria Fonseca a chorar no vazio. E eu a engolir as lágrimas. Uma luz iluminou o espaço interior da habitação. Na casa em frente, o senhor Ventura está só, sentado diante da porta, a olhar para a rua. Não sei se procura a luz ou o vazio. O senhor Ventura chegou a tocar o órgão da igreja, mas dispensaram-no porque um dia, com um copo a mais, teve o atrevimento de dizer ao padre que acreditava mais na música de Bach do que no mesmíssimo Deus. Agora, quando fala, só disserta sobre a dor, o tormento, a tristeza e a escuridão. E, sobretudo, sobre os fantasmas da noite. Diz que já não consegue tocar o seu órgão elétrico por causa das artroses. A felicidade é uma espécie de ironia ao contrário. Eu costumo vê-la do avesso. Há uma espécie de vazio no meio de tudo. E a Maria Fonseca a olhar para ele. E eu a olhar para a Maria Fonseca. E o buraco do tempo a olhar para mim. As paredes do falso parecem verdadeiras. Nenhuma história chega até nós integralmente. Isso só aumenta a ânsia da procura. As histórias dançam e nós com elas. A memória é uma viagem dolorosa. Esta é uma história de ausências, com espaços vazios. E da Maria Fonseca a olhar para o vazio. E do Venceslau a olhar para o vazio. E da Feliciana a olhar para o vazio. E eu a olhar para o buraco do tempo. E para eles. Os armários parecem buracos negros, sem livros, sem loiça. Os espaços vazios são cada vez maiores e já não há quem os preencha. A memória dos nossos antepassados é um corredor imaginário. Tudo se afoga em luz. É vertiginoso vaguear por aqui. Eu faço perguntas ao buraco do tempo. Ele não me responde. Tudo se afoga em luz.
Aaaaaaaaaaaahhhh!!! Ai este povo de espírito basbaque, envolvido em utopias de serapilheira, nevoeiro e reis-meninos, com alma de feirante e de bobo da corte. Ai dele. Ai! Ainda não vai lá muito tempo em que os quintais nas traseiras das casas estavam sempre cheios de fraldas a secar, bibes manchados e de andarilhos de verga onde se metiam crianças para aprender a andar, parecendo os robertos dos teatrinhos ambulantes, que víamos nas feiras, com as suas vozes de falsete, caricaturando o diabo, o padre, o sacristão maila sua mulher, divertindo o povo povinho povo, que se punha a gargalhar de forma histriónica. E então que dizer dos burguesinhos provincianos, gente sem brio, que morriam por comer muito e mal, esganados em pequenas hipotecas, sempre à espera que lhes saísse a lotaria, frouxos no trabalho e na palavra dada, generosos nas dúvidas, sempre divididos entre o amor e o ódio, com um saudosismo de caráter, responsável pelo nosso atraso atávico e estrutural, sempre a atafulhar a igreja aos domingos e dias santos. Sempre a ajoelharem-se e a levantarem-se. Sempre de mãos postas para a fotografia, para o olhar do senhor abade e para a cruz do altar. Vivendo em casas de escadas com degraus estreitos, com a luz bafienta das claraboias a alumiar os patamares. As mulheres pareciam não ter idade, sempre dentro de casa com o seu ar de amas-secas, com os seus aventais estampados a cinzento, meias grossas e chinelos. As raparigas, algumas delas, eram belas, à sua maneira, tinham o olhar doce, pele clara, usavam laços e ganchos, nos seus cabelos soltos. Gostavam de chamar a atenção, mas mantinham-se reservadas. Pareciam imprudentes, mas não eram levianas. Viviam encarnando personagens de romances baratos em edições de cordel, sem saberem que isso se paga caro na vida real. Sempre a espreitar os cantos para ver se não estaria por ali um sapo, daqueles que se transformavam em príncipes. Mas por ali apenas apareciam ratos que as punham a gritar como se fossem loucas. Tinham ternura pelas coisas que não envolviam, nem invocavam, o sentido do humor. Gostavam de palhaços e das suas palhaçadas infantis. Riam-se da inocência dos outros e da sua própria inocência. Já o povo baseava a sua vida e o seu conhecimento nas riquezas que lhe eram essenciais à sua pobre vida: o pão e a água. Carne e vinho quando fosse possível. E os homens, do povo, claro, ali estavam para servir. Viviam entre a fome e a pouca sorte. A solidão fazia-os chorar. Por isso mentiam a si próprios. Um dia ainda iriam ter esperança de ter esperança. E ali permaneciam, parados, esgotados, no extremo do tempo. Quando não compreendemos aquilo que nos rodeia, passamos a odiá-lo. Existiam então muitas leiteiras, vendedoras de sardinha com as gigas de vime na cabeça, magalas com cheiro a mofo das casernas, com um raminho de alecrim na orelha, donas de pensões, que eram fêmeas inquietas, e criadas sempre vestidas com o seu casaquinho de malha. E trolhas e carpinteiros e guardas e carteiros, que confraternizavam nas tabernas bebendo copos de tinto e comendo bolos de bacalhau ou carapaus de escabeche. Aqui chegava-se pelas estradas de pó, para ver os campanários e assistir às procissões. Era tudo uma grande tristeza provinciana. Uma enorme pobreza provinciana. Uma piedosa pobreza franciscana. Muitos rapazes, e algumas raparigas, dos concelhos limítrofes, vinham estudar para a cidade e alojavam-se em casas comandadas por mulheres lúcidas, de trança enroscada na coroa da cabeça, que cobravam em géneros, dinheiro contado ou de ambas as formas. Era normal, os mais gandulos, andarem de mãos e pés gelados, cheios de frieiras, beberem copinhos de jeropiga, enquanto fumavam pequenos cigarros sem filtro. Era também normal desaparecer dos seus baús a marmelada, as compotas, o queijo e o fumeiro que os seus pais lhes mandavam para enganar a fome a meio dos estudos. E nos liceus, ou colégios da região, a juntar à desgraça dos professores austeros e mal preparados, a fazer-lhes companhia nas salas, lá estava a bandeira pátria, um retrato do papa, um do Salazar e outro do Carmona. E também um Cristo devidamente crucificado para ainda meter mais dó. A grande maioria dos jovens ficava nas aldeias a guardar cabras e ovelhas, bezerros, vacas e bois. Na vila, a rapaziada era constituída por pequenos valdevinos, caixeiros, trolhas, ou aprendizes de lavrador. O mal passivo corrompia mais do que aquele que era deliberado. E usava-se a violência para lutar contra o absurdo.
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