Poema Infinito (661): Frio
Soam por todo o lado os passos dos cavalos da guarda, duendes andrajosos andam em busca dos velhos artistas do burgo e dos amadores da música. As árvores parecem transplantadas de outros caminhos. Sombras e raízes por todo o lado. O musgo já cresce em muitas escadas. Pressentem-se os fantasmas e os segredos. Os bons pastores estão fora de muralhas. As andorinhas chegaram este ano mais cedo. As pessoas dão sinais de que foram trocadas, já não são as mesmas. Os pobres aparentam estar ainda mais cansados. Os profetas evidenciam estar perdidos. E os ricos ausentes. As coisas nunca se mudam, mas as coisas mudam, não é avó? E a mãe a recontar as calamidades, detendo-se nas que lhe parecem imbuídas da devida incredulidade, a tropeçar na nigromancia e na fé exótica dos bons tempos. E o prazer a sobrepor-se à redenção e os costumes a lacrarem o desejo. Ninguém acredita em nada, apenas na pálida e contraída justiça de circunstância. E a mãe a mudar as flores das jarras e a experimentar pomadas contra as rugas. E a tarde estagnada. E as intenções metidas em frascos. E a beleza a ser vencida pelo tempo. E pela inutilidade. E o vento a arrebatar-nos. E o silêncio a suspender-nos. E Deus entre o bem e o mal. Alguém conta histórias de doidos como se fossem alegres. É nos cantos que se recolhe a penumbra fria. Deles, até as palavras mais toscas costumam fugir. Neles, até as almas salgadas ficam mais instáveis. Os gestos primeiro imobilizam-se e depois quebram-se. Tudo parece deformado pelo caos. Os utensílios, as tábuas pregadas, os murmúrios, a iluminação, os rostos e as palavras. As flores parecem sempre dispostas a revelar o delírio da sua inutilidade. Tudo tão quieto. Tudo sem direção. Tudo tão instável. Apenas as paredes estão seguras. As paredes e os enganos. Nesta casa até as tábuas choram. E a brisa que entra pelas janelas. E os pássaros a voarem desde a muralha, aproveitando as correntes de ar. Ainda me lembro da mãe a alisar o meu fato domingueiro com o ferro, a sublinhar os vincos na farda do pai, a pregar os botões indecisos, a ligar o rádio e a acompanhar as canções do Tony de Matos. E o rio a escurecer por causa das nuvens do céu. Tudo me parece agora tão distante. As memórias parecem flutuar prestes a evaporar-se. Vistos daqui, mesmo os foguetes que estouram no ar parecem tristes. E até a música da filarmónica soa a desamparo. Por vezes, sinto um estremeção de pânico. O tempo traz sabedoria, mas também desespero e ausências. Sobretudo ausências. Parece que as coleciona. A mãe surge-me a sorrir atrás de um ramo de flores. A memória prega partidas. É uma espécie de vigarice permanente. Tudo acontece como numa espécie de filme com os planos truncados. Fotogramas a queimarem-se com o calor da luz do projetor. Tudo começa a decompor-se. No meio deste silêncio até se ouvem as gotas dos sentimentos a embater na madeira do sobrado. Um dó li tá, a Rosa a brincar ao pé-coxinho entre as pedras da eira. E eu a tomar uma aspirina para que me passe a dor de cabeça com tanto sentimento. Tudo a acender-se e a apagar-se como se fosse metafísico. E a mãe a fungar as lágrimas. E tudo a desaparecer. À distância de um sopro, está tudo lá. As nuvens rasgadas, o movimento lento do céu. O sossego inquieto da noite. E os satélites a explodirem por cima de nós. Tudo florido. Afinal, as janelas estão cobertas de geada. O frio sorri para nós.