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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

20
Abr23

Poema Infinito (661): Frio

João Madureira

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Soam por todo o lado os passos dos cavalos da guarda, duendes andrajosos andam em busca dos velhos artistas do burgo e dos amadores da música. As árvores parecem transplantadas de outros caminhos. Sombras e raízes por todo o lado. O musgo já cresce em muitas escadas. Pressentem-se os fantasmas e os segredos. Os bons pastores estão fora de muralhas. As andorinhas chegaram este ano mais cedo. As pessoas dão sinais de que foram trocadas, já não são as mesmas. Os pobres aparentam estar ainda mais cansados. Os profetas evidenciam estar perdidos. E os ricos ausentes. As coisas nunca se mudam, mas as coisas mudam, não é avó? E a mãe a recontar as calamidades, detendo-se nas que lhe parecem imbuídas da devida incredulidade, a tropeçar  na nigromancia e na fé exótica dos bons tempos. E o prazer a sobrepor-se à redenção e os costumes a lacrarem o desejo. Ninguém acredita em nada, apenas na pálida e contraída justiça de circunstância. E a mãe a mudar as flores das jarras e a experimentar pomadas contra as rugas. E a tarde estagnada. E as intenções metidas em frascos. E a beleza a ser vencida pelo tempo. E pela inutilidade. E o vento a arrebatar-nos. E o silêncio a suspender-nos. E Deus entre o bem e o mal. Alguém conta histórias de doidos como se fossem alegres. É nos cantos que se recolhe a penumbra fria. Deles, até as palavras mais toscas costumam fugir. Neles, até as almas salgadas ficam mais instáveis. Os gestos primeiro imobilizam-se e depois quebram-se. Tudo parece deformado pelo caos. Os utensílios, as tábuas pregadas, os murmúrios, a iluminação, os rostos e as palavras. As flores parecem sempre dispostas a revelar o delírio da sua inutilidade. Tudo tão quieto. Tudo sem direção. Tudo tão instável. Apenas as paredes estão seguras. As paredes e os enganos. Nesta casa até as tábuas choram. E a brisa que entra pelas janelas.  E os pássaros a voarem desde a muralha, aproveitando as correntes de ar. Ainda me lembro da mãe a alisar o meu fato domingueiro com o ferro, a sublinhar os vincos na farda do pai, a pregar os botões indecisos, a ligar o rádio e a acompanhar as canções do Tony de Matos. E o rio a escurecer por causa das nuvens do céu. Tudo me parece agora tão distante. As memórias parecem flutuar prestes a evaporar-se. Vistos daqui, mesmo os foguetes que estouram no ar parecem tristes. E até a música da filarmónica soa a desamparo. Por vezes, sinto um estremeção de pânico. O tempo traz sabedoria, mas também desespero e ausências. Sobretudo ausências. Parece que as coleciona. A mãe surge-me a sorrir atrás de um ramo de flores. A memória prega partidas. É uma espécie de vigarice permanente. Tudo acontece como numa espécie de filme com os planos truncados. Fotogramas a queimarem-se com o calor da luz do projetor. Tudo começa a decompor-se. No meio deste silêncio até se ouvem as gotas dos sentimentos a embater na madeira do sobrado. Um dó li tá, a Rosa a brincar ao pé-coxinho entre as pedras da eira. E eu a tomar uma aspirina para que me passe a dor de cabeça com tanto sentimento. Tudo a acender-se e a apagar-se como se fosse metafísico. E a mãe a fungar as lágrimas. E tudo a desaparecer. À distância de um sopro, está tudo lá. As nuvens rasgadas, o movimento lento do céu. O sossego inquieto da noite. E os satélites a explodirem por cima de nós. Tudo florido. Afinal, as janelas estão cobertas de geada. O frio sorri para nós.

17
Abr23

631 - Pérolas e Diamantes: O caráter e a função

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 4 (1).jpg 

A acumulação de informação não resulta em formação. Isso era o mundo perfeito ao nível da escola e mesmo da sociedade. Por vezes funciona exatamente em sentido contrário. Ou seja, não há mutação na qualidade.

Todos sabemos que desde que o mundo é mundo, as multidões gostam dos espetáculos de pão e circo.

Há quem passe a vida a levantar taças, mas não tenha conseguido sequer ganhar uma.

A cultura de massas está nas mãos de grupos de poder económico e nos grupos de poder político, até porque utilizam os mesmos meios para os fins de persuasão e domínio. Ou seja, a cultura de massas é um produto industrial, estando por isso sujeita a muitos dos condicionalismos típicos de qualquer atividade desse género.

O problema da cultura de massas reside no facto insofismável de ser manobrada por grupos económicos com fins lucrativos e realizada por executores especializados em fornecer às pessoas aquilo que elas querem, que é sempre o mesmo: telenovelas, concursos, frango de churrasco, febras e Quim Barreiros.

Aos proprietários de um jornal, de uma televisão ou de uma rádio, não lhes interessa a qualidade e a verdade dos conteúdos difundidos, o seu objetivo é vender sabonetes, carros, biquínis, políticos e comentaristas que são quase sempre a voz do dono. Não é por acaso que o melhor canal de televisão, a RTP2, tem audiências miseráveis. Não é por acaso que o jornal mais lido é o Correio da Manhã, que mais parece um panfleto de prisão ou o jornal de cordel de antigamente.

Todos gostamos de O Velho e o Mar, mas o que ele divulga são estilos e atitudes culturais já muito esvaziadas da sua força inicial. É o que se pode chamar a banalização da cultura dita de esquerda, da cumplicidade e da habituação aos cânones. É destinado ao bom leitor cheio de ilusões (desilusões?) tardias e banalizadas pela realidade. A realidade antiga já pertence ao armazém estético. Já está no baú do sótão. A complexidade já não é um estigma cultural nem a simplicidade um valor estrutural. Por incrível que possa parecer há jazz mau e boa música popular. E até existe melhor música gastronómica do que gastronomia musical.

O gosto coletivo absorve e explora todos os níveis culturais. Mas quem mexe nestas coisas não gosta de se comprometer. A descoberta, dizem, é puramente experimental. Os valores estéticos são esboços do possível. Há os que sempre nos querem servir a mediação e a tradução das obras de arte. Querem impor uma espécie de sensibilidade comum. Há relações culturais de vários géneros. Mas a cultura é uma só. A cultura não é sofrimento. É fruição.

A televisão, por exemplo, enche-nos todos os dias de uma falsa universalidade e de uma alegoria vazia. Vende-nos imagens de miséria, sofrimento e desespero intervaladas com hambúrgueres da MacDonald’s, desparasitantes para cães e o último grito em carros elétricos amigos do ambiente. Tudo simbólico, universal, patético.

É sempre fácil fazer uma crítica construtiva sobre os pontos fracos. O contrário é que é difícil, pois apenas está ao alcance dos políticos da oposição e dos banqueiros do regime. A crítica é feita em modo de banda-desenhada, com sorrisos e esgares desenhados com brush e base facial, balões, onomatopeias e teatro kabuki. Todas as metáforas são pagas a peso de ouro e as verdades verdadeiras a pataco. As verdades pedagógicas são ditas a soletrar, enquanto a espessura e a imperfeição da verdade têm de passar pelo passevite.

Agora somos todos avatares uns dos outros, estilizados, transpostos e banalizados. O público é um logro. E os tesouros verbais e discursivos estão verdadeiramente gastos e depauperados. O mau gosto tem uma estrutura tão elaborada que até parece o contrário.  

Querem-nos fazer crer que a dúvida é paradoxal e que as suas transfusões da verdade é que nos dão vida.

O que mais me indigna é que os seus aparentes artifícios retóricos simples veiculam um sistema de valores que, de facto, nada têm a ver com a modernidade que dizem querer construir.

A verdade é que as aparentes novidades estilísticas, verbais e discursivas, apenas servem para veicular conteúdos política e socialmente conformistas, o modernismo é retórico e apenas pretende ascender ou consolidar o poder. Esse discurso de rutura andou no seminário, passou pela maçonaria e acabará na opus dei.

O seu caráter é a sua função.

13
Abr23

Poema Infinito (660): O pecado original

João Madureira

IMG_4383 - cópia 3 (4).jpeg 

Há um silêncio total na sala. A janela difunde uma luz normal, um tudo-nada lívida. O dia começa a surgir. Um manto de névoa cobre a memória e torna-se cada vez mais denso. Já não consigo perceber lá muito bem se a janela indica o crepúsculo ao amanhecer ou ao anoitecer. Entre a apatia e a exacerbação, a vigília é quase vítrea. A ficção é toda gramatical. E a realidade não lhe fica atrás. Os porquinhos-da-índia não me saem da cabeça. E a Rosa a matá-los, projetando as suas cabeças contra as pedras. Ficar quieto e calado também tem o seu preço. Uma conversa sobre porquinhos-da-índia acaba sempre em pesadelo. A memória também pode ser uma parvoíce. Ou sobre parvoíces. A luz berrante do crepúsculo vai-se suavizando, pedaço a pedaço, até ficar praticamente normal. Depois, desaparece. As mãos postas da Pietà começam a vibrar. Alguns estados místicos levam ao êxtase. Os Santos entram numa espécie de imersão contemplativa. Até a alegria e a dor se transformam em linhas espectrais. Raios de luz que se dissolvem no ar. Tento manter-me no lado do sol. Por vezes sentimo-nos a afogar nos braços de quem amamos. Tudo fica azul. Irresistível. É como quando estamos ao telefone e não conseguimos dizer nada, nem conseguimos desligar. As giestas, as urzes e os tojos estão cheios de geada. A geada alastra e cobre tudo. De branco e de frio. Depois cai a neve sobre a geada. Tudo fica ainda mais frio. O silêncio move-se. A infância. A minha infância. A da minha mãe. O coração desgastado do meu pai. Há pássaros caídos debaixo das árvores, massacrados pelo vento, pela neve, pela geada, pelo frio e cegados pelo branco. Alguém os recolhe para depois os ir enterrar junto às alminhas no cimo do monte. As nuvens engolem a última luz do inverno. Só quero o que me pertence. Sem pseudónimos, sem proletários, sem burgueses, sem lutas religiosas ou de classe. Sem palácios, sem castelos, sem barracas. Sem prelúdios. Com homens e mulheres sexuais. Sem luxos sintáticos e sem ciência económica. Sem vítimas disponíveis e sem mugidos intensos. Os dedos estão envoltos em frio e as feridas são limpas com algodão em rama. Homens eretos sem armadura, gente sublime onde brilha a meiguice. A nova teologia não tem seiva nem energia. Alguns homens elevam-se mais do que deviam. O pensamento divino é um defeito humano feito de razões súbitas, de forças caóticas, de desespero. Alguém corre pelos campos indiferente ao tempo e à inutilidade do seu gesto. Hábitos velhos dão romances novos. A confusão pós-moderna derrota os mitos mas nada consegue construir. Apenas mutilam as melodias. Os novos deuses usam telescópio e uma dialética de golpes baixos. Põem a boca em forma de sexo, mas são estéreis. Ou melhor, esterilizados. São meticulosamente oportunistas. Lá fora está a violência da natureza e as manchas de sol. E as memórias que vão desaparecendo. Os príncipes de seda não existem. Só Pinóquios assexuados feitos de madeira incombustível. Estar só é uma utopia. Estúpida. Apenas provoca, ainda, mais inquietação. Noites difusas. Os anjos afastam-se de Deus porque desistiram de compreender a sua orientação sexual. Agora abrem ainda mais os olhos e as suas bocas melancólicas e desfraldam as asas como se quisessem despir-se de algo que não é seu. E gritam que vão para a guerra. Destroço a destroço. Catástrofe atrás de catástrofe. O lítio das suas baterias elétricas é barrosão. Esse é o seu pecado original.

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