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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

10
Abr23

630 - Pérolas e Diamantes: Cruzes

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 3.jpg 

A grande preocupação atual, se não a de sempre, é com o escritor e não com a sua escrita, com as suas poses, com as suas idiossincrasias, com as suas relações encobertas, com a etiqueta, com os amigos e com os membros dos júris dos prémios literários, que fazem parte de uma lista secreta de cúmplices. Qualidade? Uma ova, ou uma desova. Este país é feito de leitores, escritores e editores de livros escolares. Há os belicosos, os firmes e ponderados e até os que possuem doses de autoestima que os fazem parecer inteligentes quando só repetem banalidades. Gostam de escrever novelas onde homens muito belos se sentem aprisionados por mulheres loucas, ou também sobre o contrário. Claro que a vida doméstica continua a ser aquilo que sempre foi, já a vida pública é que se transformou num problema. Todos os nossos grandes intelectuais, sobretudo os escritores, vivem na profusão da atividade revigorante e excitante das comunidades académicas, nas reuniões dos seus departamentos, na elevação intelectual das ninharias, na eloquência dos disparates e na abordagem científica da política. Afinal tudo é política. Até os estados de alma, a cor da pele, a orientação religiosa, a orientação sexual e também a das correntes marítimas. Afinal o rei que vai nu está a soldo dos empresários que fabricam roupa. É difícil matar as promessas e as utopias e depois escrever. Sobre elas. Mas a escrita não é uma forma de a gente se exprimir e muito menos uma forma fugaz de fazer terapia. É uma vocação que se desenvolve e trabalha todos os dias. Acho que foi Philip Roth que disse que o melhor que um leitor tem a fazer é concentrar-se nos romances e não nos romancistas. Para bem de todos. Sendo que o escritor também é leitor. E, na generalidade, um leitor compulsivo e obsessivo. Não existe escrita sem leitura. Também há aqueles que rosnam e nos arregalam os olhos. Mas temos de os aturar. E desculpar. Há aqueles que compreendem e discernem mas sentem pouco e também há os que sentem muito, compreendem pouco e não discernem nada. Esses são os abençoados por Deus. E ainda há os que se apaixonam como se fossem personagens de romances, com sombras ou sem sombras de Grey. Quem começa a ler livros da Anita acaba por se enamorar dos clichés. E então não há nada a fazer. E depois há a gente da má língua, gente que nada faz, mas tudo diz e desdiz, para voltar a dizer. A vida interior dessas pessoas tem pouca energia. Ilumina-se à luz das velas que costumam colocar nos santuários para pedirem a remissão dos seus pecados aos Santos e a Deus. A verdade é que somos todos um pouco inocentes sobre a natureza do mal, a não ser ter como certo que o mal são sempre os outros. Não há leitura profunda para livros supérfluos. Anda tudo à procura de um pretensioso psicologismo misturado com o peso, talvez excessivo, da introversão sentimental. Histórias duras, fortes, mas artificiais, entre o erótico dedutivo e a piroseira existencial. Vivemos num mundo construído com os tijolos da mediocridade e pintado com a tinta dos sonhos nunca realizados. Restam-nos os momentos de ternura. E a ironia. E as abstrações gramaticais e as evidências fulminantes e as pistolas de água do carnaval e as dores de dentes e as mãos postas da Pietà para acariciar a morte do filho. E também como quem quer pensar até ao fim e se embebeda a meio. Há pessoas que foram educadas para realizarem exercícios de ortografia e para se abstraírem de pensar nos erros que dariam se estivessem a fazer esse mesmo exercício. Todos se querem identificar com Jesus mas são incapazes de tomar o seu exemplo sem pesar os prós e contras, sem observar o catecismo e pesar com ambas as mãos o fardo substancial dos trinta dinheiros. O olhar de Judas foi o que proliferou. Apesar de dizerem o contrário. Há os que são feitos para o ditado e detestam as composições textuais. Só dissolvendo as conexões se compreendem os jogos. Convém não esquecer que muitos dos heróis nacionais foram chefes de quadrilha. E que há outros que lhes querem seguir e exemplo, dispensando os cavalos e as pistolas. Judas foi incapaz de sorrir aos sarcasmos do Senhor. Seu. Após o beijo. Mas ambos morreram. Um de livre vontade, pendurado numa figueira. E o outro espetado em dois lenhos cruzados.

06
Abr23

Poema Infinito (659): Delírio

João Madureira

IMG_4383 - cópia 2.jpeg 

Bauhaus, surrealismo, justaposição, modernismo, hebdomadário, sexismo, vai não vai, psicadelismo, influências, alcoolismo, cristianismo, e fadismo (fascismo) en passant, Baco e bacorismo no poço da morte ou no banco da matança, nazismo e comunismo, sarrabulho comido em cima do bandulho do porco, simbolismo, anarquismo, ou qualquer outra história com orelhas de burro, temos de poupar no sal e no açúcar e nas gorduras saturadas e monoinsaturadas e polinsaturadas, cafeína, insulina e morfina, o circo está montado, o circo e os palhaços e os equilibristas, e as partners, o pecado, a carne, e a carne do pecado, e o pecado da carne, as vaginas que se fodam, os pénis que se identifiquem, e os anjos assexuados que se ponham em sentido, coisas coisinhas coisas, vamos lá até ao limite, o ar condicionado tem de servir para alguma cousa, não somos elásticos, nem de plástico, nem euro-asiáticos, somos como sacos de supermercado pagos a cêntimos de desperdício, deuses dos pequenos descuidos, é é é tudo ou sim ou sopas, caldo de couves com feijão e e e pinheiros de natal de plástico biodegradável decorados com LEDs de desculpa e com testiculozinhos do menino Jesus e ok olá e há por aí tanta expansão, Talking  Heads, Mister Jones, e vamos esterlicar as estrelas de Belém e bolsar as estrelas de David e chorar porque Deus chora, lágrimas de crocodilo, e porque o Demónio aconchega os pecados à nascença, Deus e o Demónio na terra do sol e dos jacarandás e do Malhadinhas e do Jubiabá e e e um dois três e vira virou, tudo neste país é rarefeito, o sexo, a origem, o destino, o futuro, a identidade, a esperança, os beijos, os cromossomas, os amores de perdição, o crepúsculo e e e pim pam pum cada bala mata um, olha a chibinha mé mé mé olha a chibinha que não sabe de quem é é é e não é clorofórmio, cloreto de sódio e homens de bigode e anjos tortos e sombras que espiam os desejos, tudo azul como Deus manda, rimas e conhaque, caminhos das pedras e a tristeza exposta ao público como uma fratura, poetas vermelhos, poetas tingidos de vermelho, crianças a crescer para o infinito e mais além dos bonecos, peixes aflitos no meio da água e as sereias a parirem luz, tudo a engordar, tudo a emagrecer, todos nus no meio dos pinhais, ou das searas, os olhos rasos de água, os sexos tristes, a absurda extensão dos lados, o medo agudo e forte, Eva a conceber Adão, e não o contrário, o pecado da carne a pegar fogo, três vezes me hás de negar, antes do galo cantar, e a procissão a passar e a religião a sangrar, e Deus a passear pela brisa da tarde com a poalha do céu a brilhar e os cristãos a tossir e Deus a ir e a vir, e depois vem a penitência e os sermões para os peixes e tudo o que deve doer dói, os anéis e os dedos, e as madrinhas e os afilhados e as prendas e os prendados e a glande e os lábios e a serpente sempre a dar ao rabo e a pôr o dedo simbólico na ferida, mulheres projetadas e homens fumegantes, a seguir vai tudo lamber as feridas e meter o desejo inacabado dentro das gavetas da mesinha de cabeceira, a cabeça fica então repleta de perplexidades morais, de curvas desiguais, como se todos os ladrões se enfiassem dentro do santo sepulcro à espera que os trinta dinheiros se multipliquem, o monte das oliveiras está sempre pronto para mais uma oração e para a traição que se segue, os beijos também podem ser traição, ou álibis… anjo meu, anjo meu, há pecador mais bonito do que eu?

03
Abr23

629 - Pérolas e Diamantes: Ainda me lembro

João Madureira

 

Apresentação3-2 - cópia 2 (5).jpg 

Ainda me lembro do óleo de fígado de bacalhau, do leite racionado, da distribuição de alimentos às famílias mais carenciadas, das roupas simples, das botas cambadas e rotas, dos sapatos com solas finas como cartão, dos móveis de má qualidade, da chicória em vez de café, do leite em pó, dos bairros pobres e sem eletricidade nem água canalizada, das manhãs de geada, das crianças descalças, das braseiras acesas, dos caminhos transformados em lama, do frio a trespassar os ossos, da imigração ilegal, da guerra de África, das cadernetas de senhas de racionamento e das cadernetas de cromos das equipas de futebol, dos armários de cozinha com meia dúzia de pratos e malgas e garfos de ferro enferrujado, das mães a racionarem o peixe e a carne à mesa, do pão centeio duro como cornos, das mães lavarem a cabeça das crianças com petróleo para matarem os piolhos, da escola frequentada por rapazes e raparigas pobres, habituados às estaladas na cara ou às palmatoadas de professores e professoras, das famílias com oito ou dez filhos para criar, alguns deles sempre famintos, rotos, descalços e de cabeça rapada e de se inventarem partidas para humilharem os mais limpos ou bem alimentados, das histórias de suspense de cortar a respiração, do Tarzan, do Mandrake, do Flash Gordon, do universo dos índios e dos cowboys, do filme Ben-Hur, dos relatos radiofónicos de hóquei em patins entre portugueses e espanhóis, da piedade e da falta de esperança, das histórias cheias de grutas e dragões, de labirintos, de catacumbas, abismos, masmorras, florestas encantadas, campos de batalha, polícias e ladrões, galáxias, naves espaciais e extraterrestres, dos domingos cheios de missas e pecados e perdões, de histórias com patifes, aldrabões e miseráveis, que matavam e morriam enquanto se riam dos outros e de si próprios, e com mulheres sublimes que amavam e eram amadas como mandavam as regras da cavalaria andante, que, apesar do sofrimento porque passavam, eram delicadas, dedicadas, compreensivas e amadas, sempre vítimas da opressão do sexo masculino, mas com uma capacidade de sofrer e perdoar como Jesus Cristo, e também me lembro de, mesmo confessados, perdoados e com as vacinas e as hóstias em dia, a rapaziada trepar pelo muros da escola para irem observar as raparigas de saias até ao joelho, meias até ao joelho, sempre aos pares a jogarem à macaca ou até para irem às sentinas, ou a entreter-se a fazer as tranças umas às outras, ou a borrifarem-se com a água das torneiras, e lembro-me de os rapazes gostarem de falar do que é que as raparigas tinham e os rapazes não, ou ao contrário, ou do que é que os irmãos mais velhos faziam com as suas namoradas sempre às escondidas, e quanto mais às escondidas melhor, e de passarem as mãos por fotografias de raparigas quase nuas ou da risota pegada que provocavam as esferográficas onde se via, à transparência, uma rapariga cujo fato de banho desaparecia quando se virava a caneta ao contrário, e também me lembro dos segredinhos e das gargalhadas, no recreio, a propósito de um tal larilas, que se vendia em troca de rebuçados, chocolates e cigarros a rapazes já grandotes ou a homens, ou de uma mulher de um alfaiate impotente que levava a rapaziada para trás da loja e lhes mostrava a vulva para se masturbarem, o que provocava, diziam, depois do ato, alguma tristeza e arrependimento, e de mais tarde, no liceu, uma enfermeira, nos descrever, impassivelmente, os órgãos sexuais e respetivas funções, canais, testículos e ovários, espermatozoides, óvulos, glândulas, pénis, vagina e trompas, e de nos ter falado, com cara de caso, dos dois graves problemas que a prática sexual envolvia: a gravidez e as doenças venéreas contagiosas, mas nada nos disse acerca do prazer que tal aventura podia provocar, e também me lembro de professores que mais pareciam sargentos do exército, muito mais interessados em castigar do que em ensinar e de outros serem tão chatos que a maioria aproveitava o tempo para dormir uma soneca ou jogar à batalha naval, trocar bilhetes ou atirar bolinhas de papel por cima das mesas. De tudo isso ficou-me um misto de sobriedade, dúvida, sarcasmo agudo e fino e de uma espécie de tristeza intermitente. E, agora, uma certa lentidão nos gestos que resultam das muitas ausências que sinto todos os dias.

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