630 - Pérolas e Diamantes: Cruzes
A grande preocupação atual, se não a de sempre, é com o escritor e não com a sua escrita, com as suas poses, com as suas idiossincrasias, com as suas relações encobertas, com a etiqueta, com os amigos e com os membros dos júris dos prémios literários, que fazem parte de uma lista secreta de cúmplices. Qualidade? Uma ova, ou uma desova. Este país é feito de leitores, escritores e editores de livros escolares. Há os belicosos, os firmes e ponderados e até os que possuem doses de autoestima que os fazem parecer inteligentes quando só repetem banalidades. Gostam de escrever novelas onde homens muito belos se sentem aprisionados por mulheres loucas, ou também sobre o contrário. Claro que a vida doméstica continua a ser aquilo que sempre foi, já a vida pública é que se transformou num problema. Todos os nossos grandes intelectuais, sobretudo os escritores, vivem na profusão da atividade revigorante e excitante das comunidades académicas, nas reuniões dos seus departamentos, na elevação intelectual das ninharias, na eloquência dos disparates e na abordagem científica da política. Afinal tudo é política. Até os estados de alma, a cor da pele, a orientação religiosa, a orientação sexual e também a das correntes marítimas. Afinal o rei que vai nu está a soldo dos empresários que fabricam roupa. É difícil matar as promessas e as utopias e depois escrever. Sobre elas. Mas a escrita não é uma forma de a gente se exprimir e muito menos uma forma fugaz de fazer terapia. É uma vocação que se desenvolve e trabalha todos os dias. Acho que foi Philip Roth que disse que o melhor que um leitor tem a fazer é concentrar-se nos romances e não nos romancistas. Para bem de todos. Sendo que o escritor também é leitor. E, na generalidade, um leitor compulsivo e obsessivo. Não existe escrita sem leitura. Também há aqueles que rosnam e nos arregalam os olhos. Mas temos de os aturar. E desculpar. Há aqueles que compreendem e discernem mas sentem pouco e também há os que sentem muito, compreendem pouco e não discernem nada. Esses são os abençoados por Deus. E ainda há os que se apaixonam como se fossem personagens de romances, com sombras ou sem sombras de Grey. Quem começa a ler livros da Anita acaba por se enamorar dos clichés. E então não há nada a fazer. E depois há a gente da má língua, gente que nada faz, mas tudo diz e desdiz, para voltar a dizer. A vida interior dessas pessoas tem pouca energia. Ilumina-se à luz das velas que costumam colocar nos santuários para pedirem a remissão dos seus pecados aos Santos e a Deus. A verdade é que somos todos um pouco inocentes sobre a natureza do mal, a não ser ter como certo que o mal são sempre os outros. Não há leitura profunda para livros supérfluos. Anda tudo à procura de um pretensioso psicologismo misturado com o peso, talvez excessivo, da introversão sentimental. Histórias duras, fortes, mas artificiais, entre o erótico dedutivo e a piroseira existencial. Vivemos num mundo construído com os tijolos da mediocridade e pintado com a tinta dos sonhos nunca realizados. Restam-nos os momentos de ternura. E a ironia. E as abstrações gramaticais e as evidências fulminantes e as pistolas de água do carnaval e as dores de dentes e as mãos postas da Pietà para acariciar a morte do filho. E também como quem quer pensar até ao fim e se embebeda a meio. Há pessoas que foram educadas para realizarem exercícios de ortografia e para se abstraírem de pensar nos erros que dariam se estivessem a fazer esse mesmo exercício. Todos se querem identificar com Jesus mas são incapazes de tomar o seu exemplo sem pesar os prós e contras, sem observar o catecismo e pesar com ambas as mãos o fardo substancial dos trinta dinheiros. O olhar de Judas foi o que proliferou. Apesar de dizerem o contrário. Há os que são feitos para o ditado e detestam as composições textuais. Só dissolvendo as conexões se compreendem os jogos. Convém não esquecer que muitos dos heróis nacionais foram chefes de quadrilha. E que há outros que lhes querem seguir e exemplo, dispensando os cavalos e as pistolas. Judas foi incapaz de sorrir aos sarcasmos do Senhor. Seu. Após o beijo. Mas ambos morreram. Um de livre vontade, pendurado numa figueira. E o outro espetado em dois lenhos cruzados.