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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

29
Mai23

636 - Pérolas e Diamantes: O cágado e os dogmas

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 2 (6).jpg 

Alguém perguntou a outro alguém: “Lembras-te de alguma vez agradeceres à tua mãe o que ela fez por ti?” Então lembrei-me que a minha mãe, a Dona Feliciana, foi uma criada, uma máquina de cozinha, sempre a lavar e a passar a roupa, a trabalhar a horta, a alimentar a criação, a amamentar os filhos, a dar-lhes banho, sem manifestações de dor, apesar de sofrer de enxaquecas e de desilusão crónica. Não sei a que propósito me dá agora para as recordações, as evocações e outras pieguices. Revisito os velhos tempos como quem folheia calmamente um álbum de fotografias e depois lá arranjo tempo e coragem para escrever essas impressões para as pessoas de confiança. Há gente que se deixa matar por apego à vida. Há lá maior paradoxo? Uma pessoa não pode viver a esconder a toda a hora aquilo que é. A andar pelo bairro com cautelas de homem perseguido. Alea jacta est. Será que o sofrimento tem prazo de validade? Quando o pai morreu, pensei: Poderá o sofrimento alguma vez ser diferente? Quando a mãe morreu, pensei: Poderá o sofrimento alguma vez ser diferente? Ainda hoje, passados estes anos todos, não consigo responder a esse sentimento. E, muito provavelmente, nunca vou ter a coragem suficiente para dar a resposta conveniente. Eu bem não queria, mas tudo o que digo e escrevo, gira em torno dessas perdas, dessa mesma situação de tristeza. Será que esta situação tem saída? Provavelmente sim, mas não a consigo encontrar. Eu continuo a lutar entre a crença religiosa e o ceticismo. Mas a racionalidade não precisa de lutar muito contra o fracasso religioso. Sempre pensei na beleza. A beleza, para mim, teve sempre um valor moral. Eu que pensava ser um revolucionário segmentado, não passo, pobre de mim, de um conservador temperamental. Sempre andei à procura da beleza, qual Santo Graal, e, em todos os caminhos que percorri, mais não fiz do que puxar e empurrar a moral. Mas, como disse, e para mal dos meus pecados, entre crenças e afrontas, descobri que culturalmente sou um conservador, pois valorizo, sobretudo, a sabedoria dos tempos. Mas, por outro lado, também me sinto um pouco anarquista, pois não existe arte fora da correlação entre criatividade e transgressão. Mas não se consegue transgredir conscientemente aquilo que se desconhece. Os falsos conservadores apostam na apostasia da justiça e da misericórdia, utilizando as armas da injustiça e da inclemência. Tudo o que é moralmente óbvio parte da arrogância da arte aborrecida, do dogma. O esplendor acaba quase sempre em tragédia. E isso é trágico. Há pessoas que escrevem, e descrevem, as suas obsessões como se fossem coisas arrebatadoras. Mas, na verdade, limitam-se a reproduzir os ecos das obsessões dos seus ídolos. A arte pode não ser a verdade, mas é muito menos a soma estilística de pequenas mentiras. A dor não é apenas uma coisa de fêmeas sensíveis, mas também de machos nostálgicos e abnóxios. Peguei no marxismo como teologia e isso só podia resultar mal. Pensei que juntar dogmas podia ser reconfortante. Mas descobri, entretanto, que não existem respostas para tudo. Deixei-me de defesas apaixonadas para me dedicar a escrever postais ilustrados aos amigos. E, quando acordei do sonho, apercebi-me que este mundo já era outro mundo. E continuo sem saber se eu caibo lá. Todas as coisas mudam menos do que parece. A toada das aparências até pode ser doce, mas os assuntos abordados têm um sabor amargo. Mas há gostos para tudo. As identidades fazem-se e desfazem-se ao sabor das hipóteses. Não vale a pena dedilhar o sacrifício como se ele fosse uma canção gemebunda. Quando lhe dão o rebuçado, o intelectual sofrido e ressabiado, sorri de satisfação como se o osso tivesse algo mais do que o tegumento. Quando o osso tem carne, o cão desconfia. A comédia da dor era, afinal, um embuste. Até a gaguez do escritor quase gago desaparece, os coitos passam de interrompidos a sibilantes, e a reza futebolística deixa de ser feita de joelhos para passar a ser realizada em pé e incluir uns patins em linha. O intelectual erectus, afinal, era um cágado a necessitar de ser engraxado.

25
Mai23

Poema Infinito (666): Ausências

João Madureira

IMG_4383 - cópia 9.jpeg 

As ausências apoderaram-se da casa. E eu a revirar os objetos e a rever as memórias. E a sistematizar os conteúdos da alegria e da tristeza. A importância dos sentimentos e das coisas deixou de ser significativa. A casa está atordoada. Encolheu muito. Desvirtuou-se. Os objetos parecem acometidos pela dúvida da utilidade. Na caixinha de veludo estão ainda broches cornucópia em filigrana, libras, rosas, brincos, alianças, fios, tudo em ouro. Já há décadas que ninguém usa nada disso. Não se pode trazer o tempo passado de volta, é como tentar segurar a água com as mãos. As patadas dos cascos de um cavalo ressoam surdamente no lajedo da eira. Daqui veem-se os campos lambidos pelo inverno. Sigo os caminhos no mapa da ternura. Substituo na memória algumas das palavras que esqueci. Nunca se sabe se não serão as mesmas. Foi com a minha mãe que aprendi a ler as primeiras palavras, os nomes de Deus e dos santos, impressos em papel colorido que ela utilizava para marcar as orações do seu missal. Os marcadores estavam também preenchidos com outras orações dedicadas aos santinhos da sua devoção. Aproveitava os domingos, os feriados e os dias em que eu ficava doente para lermos e rezarmos. Aprendemos ambos a fazer as duas coisas em simultâneo. Continuo no meio da escuridão a olhar para as zonas de luz. Vejo portas entreabertas que projetam feixes de claridade no chão laminado.  Os sonhos são involuntários, mas a fé é imposta. As religiões são mentiras luminosas. Há sonhos proféticos. Os últimos raios de sol expõem o pó suspenso que existe dentro de casa. Isto já vem de longe: eu sempre a enveredar por caminhos diretos que não vão dar a lado nenhum. Não me apetece dormir. As maiores catástrofes acontecem durante a noite. Todos os medos são memórias de outros medos. Depois viro-me na direção da vasta paisagem do nada. Sonhamos com a luz, mas esperamos a escuridão. O que não precisa de ser visto, não será lembrado. A saudade é a matéria negra do universo. Oiço o eco da minha mágoa a despenhar-se. Penso nos jardins crepusculares, num carrossel vazio, numa criança perdida com um arco inútil nas mãos. Tudo envolto na substância pura da angústia. E a tarde a terminar como todas as outras. Sempre tive uma grande capacidade para aprender o desnecessário. Nada resta dessas tardes sem orientação. Transformaram-se em fotografias inúteis com familiares dentro. Desapareceram as datas e os factos. As garantias de ternura perderam-se no tempo. Tudo o que era linear se fragmentou. A avó ensinou-me, sem o saber, que o objetivo da arte consiste em revelar as coisas invisíveis. Os pedaços do velho mundo transformaram-se em dúvidas. Tudo cheio de lacunas e ausências. Não sei o que a memória quer de mim. E muito menos o que eu quero dela. E as ruas e a velha casa a apertarem-me num abraço. Charcos de luz. O espaço diluído. A brancura a dissolver-se. A vida a levar-me para junto das pequenas coisas, daquelas mais simples, que não provocam ruído e não ocupam espaço. E as armadilhas da lógica e dos rostos e dos conceitos e dos olhares a incharem. As armadilhas de tudo e de nada. As armadilhas do todo e do nada. As armadilhas. Todas as armadilhas iluminadas. Está tudo armadilhado. Tudo iluminado. O santo Natal. A Páscoa santa. As igrejas. Os centros comerciais. Os campos sagrados da guerra. A Guerra Santa. A Santa Guerra. O erotismo da guerra. A sintaxe do apocalipse.

22
Mai23

635 - Pérolas e Diamantes: Uma coisa é certa...

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia (3).jpg 

Uma coisa é certa: para além de sermos como somos, ou do lugar donde vimos, não valemos menos do que os outros. Não somos o que ganhamos, pois temos o mesmo valor que os outros. Temos o valor dos que gostam de nós. O valor que nos dão. Mas para isto não ficar demasiado sério e hermético, vou recorrer à velha técnica da citação de provérbios. Um francês: “A pouco e pouco, o pássaro faz o seu ninho.” Um chinês: “Uma árvore gigante nasce de uma semente ínfima, uma torre de nove andares de um punhado de terra.” E também um português: “Grão a grão, enche a galinha o papo.” Nós acreditamos no direito, mas não devemos esquecer que ele é para ser um instrumento ao serviço do poder. Tudo o resto não passa de um truque comunicacional. Dizem os legalistas, que é o medo da lei que rege a conduta dos homens. A tentação de perpetuar o poder é que dá lugar à bazófia e à mentira. E isso é mais visível a nível do poder autárquico, onde se encontram os sinais mais evidentes de corrupção criativa, de negócios escuros e de associação criminosa. Essas coisas não nascem de geração espontânea. O poder discricionário encoraja os comportamentos desviantes e a perda das referências morais. O poder é hoje encarado, se é que não o foi sempre, como um meio de obter vantagens e privilégios. A nossa democracia funciona em regime de rotatividade e de crítica alternativa. Mas em espelho. Espelho meu, espelho meu, há por aí alguém mais ambicioso do que eu? Quando se está na oposição, critica-se o poder. Quando se está no poder, esmifra-se a oposição. Mas todos eles fazem o mesmo. E, em nome da democracia, se vão despedaçando os seus ideais. Dizem, e nós lá vamos fazendo que acreditamos, que o nosso país é governado pela lei. A sê-lo, será pela lei do mais guicho, daquele que não mente mas falta à verdade, do que não rouba e que nada tem em seu nome, mas no de familiares, pondo as suas poupanças em paraísos fiscais. É raro o dia em que um político não é notícia nos órgãos de comunicação social por corrupção ativa ou passiva, branqueamento de capitais, peculato, abuso de confiança, abuso de poder, fraude fiscal, associação criminosa, recebimento indevido de vantagem, falsificação de documentos, etc., e ainda os jobs for the boys e os sacos azuis para pagarem as campanhas eleitorais. E das duas uma, ou os nossos jornalistas são mentirosos ou a nossa classe política deixa muito a desejar. E depois, como virgens ofendidas na sua honra, começam a invocar a demagogia e o populismo do Chega, do BE ou do PCP em vão, como forma de desculpa: se não vos serve uma democracia corrupta, a alternativa é o fascismo ou o comunismo. Para todos eles, a PJ é uma nova PIDE disfarçada que persegue políticos democráticos como se fossem criminosos e o Ministério Público uma associação de juristas ressabiados e monomaníacos. A verdade é que o povo português revela sinais ancestrais de tibieza e procrastinação. Apesar do folclore mediático, as ideias continuam velhas, a cultura arcaica, os costumes derreados e os hábitos obsoletos. Portugal é uma sociedade fragmentada em projetos e mitos religiosos, projetos filosóficos importados e projetos ideológicos copiados até à inconsequência. Quando se trata de governar, os indigitados mandam chamar os técnicos, politicamente nulos, para os misturar com a dúzia e meia de caciques da casa. Os partidos são bons para acolherem aqueles que pretendem viver com pouco esforço e sem luta, sem dúvidas e correndo poucos riscos. Mas também há a rapaziada que desenvolve a paixão dos oportunistas. Ambas as fações são sustentadas pelas cliques amorais e apolíticas. Por muito que digam o contrário, as pessoas encaram a política como um processo para subir na vida. E depois há os eleitores que após o ato eleitoral não sabem o que fazer à sua. Apesar de acumularem desilusão atrás de desilusão, não desistem e, de quatro em quatro anos, voltam à sua mesa de voto para colocarem a cruz nos de sempre. A tradição já é velha: não se muda de clube de futebol, de religião, nem de partido. A tradição, digam lá o que disserem, ainda é o que era. Por isso é que o nosso país se assemelha àqueles que correm na passadeira, por muito que se esforcem, suem e gastem calorias, não saem do lugar.

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