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Demasiado perto para avançar e demasiado longe para recuar. A vida interior também pode ser uma espécie de guerra civil, combatendo o figurante com a sua imagem figurada, corpo a corpo, olhar a olhar, ilusão a ilusão. Já só nos falta mais um passo para o abismo. Vamos ter de partir o espelho. Vou ainda tentar guardar tudo na periferia do esquecimento. O canto dos meus antepassados ressoa nas minhas costas como coros em antifonia. As vozes resistem ao tempo mas não à decomposição das evidências. Trabalho a pós-memória para poder continuar a viver sem eles. A tentar dar-lhes voz e a tentar perceber a sua experiência e a sua perceção. Tal como Ulisses, evoco as suas almas. E elas vêm em nuvens, nos gritos das aves, na luz da figueira, no aconchego dos olhares dos filhos e dos netos. E ali estão eles a olharem para mim e eu para eles. Olho para trás e agradeço-lhes a liberdade que arrancaram da terra como se fossem batatas. Somos todos filhos do dilúvio e das catástrofes. Todos, sem exceção. Há lá coisa mais terrível. As palavras de Primo Levi soam como os sinos da igreja da minha aldeia a chamar para a verbena: “Os piores, que sabiam adaptar-se, sobreviveram. Todos os melhores morreram.” Recorto as minhas memórias, amplio-as e projeto-as sobre outras imagens de outras memórias, modifico-as dando-lhes novas interpretações. Retiro-as de um contexto e insiro-as num novo. Novas memórias, ou pós-memórias, são transferidas para novos textos. Algumas são mesmo difíceis de ingerir em cru. O tempo acaba por varrer tudo e todos. Coitadas das memórias. O passado transforma-se, através da memória, em fetiche, numa zona de consenso silencioso. Os nossos anos bíblicos estão sempre no passado. As janelas da casa das nossas memórias dão sempre para o vazio. Por alguma razão, passamos a vida a desconfiar da atualidade. Andamos sempre a afirmar que os anos da nossa infância é que foram o paraíso perdido da inocência e da constância. O que não é verdade, mas também não é mentira. Todas as memórias são a versão pessoal dos acontecimentos antigos. Pensamos estar apaixonados pelo futuro, mas o que verdadeiramente amamos é o passado. Por vezes é quando separamos a causa do efeito que começamos a entender o amor. Lá estão na prateleira os três macacos de porcelana que se continuam a recusar a ver, ouvir e falar. E por todo o lado há fotografias antigas, caixinhas de botões e bobinas de linhas e cadeiras e sofás e as mobílias antigas nos quartos dos fundos. Também persiste a mesma luz inquieta que entra pelo meio das cortinas. E o mesmo céu pálido por cima da varanda. E o mesmo ar invulnerável a passar-nos entre os dedos. E os livros amarelados da poesia infantil. E os pequenos cestos cheios de fruta de plástico que parece mais bonita do que a que apanhávamos nas árvores da Clérga. Tudo se transformou em literatura. Até a bicicleta sem pneus pendurada na adega. É estranha esta sensação de invisibilidade e de invulnerabilidade. As poucas pessoas que fazem que passeiam em frente da velha casa parecem árvores dobradas pelo vento. E sorriem de forma pouco natural, evidenciando dentaduras tão brancas e perfeitas, fazendo lembrar o poeta surrealista Mário Cesariny ai meu Deus de Vasconcelos. “O navio de espelho não navega, cavalga… ao crepúsculo… o seu porão não traz nada… desde o início do mundo até ao fim do mundo.”
A fartura é tanta que já me caem os cêntimos da carteira e a gordura pelo rabo. E com tanta riqueza vou subscrever o Spotify e pôr-me a ouvir os Dry Cleaning. Apesar de ser um velho à beira da reforma, sinto-me como um jovem à beira de nowhere. Há lá coisa mais linda! (Bonita? Bem-apessoada?) Há lá coisa… Eu até já me dispo de preconceitos e visto-me na Zara. Há lá coisa mais moderna! Mais do que taxar os trabalhadores, o Estado Democrático garantia a sua existência através da taxação dos ladrões e de todos aqueles que fogem ao fisco. Esperamos uma coisa e encontramos sempre outra. A nossa limitada imaginação é incapaz de antecipar algo que saia dos limites do previsível. É da ordem natural das coisas, virmos ao mundo sem perguntas. O trágico é irmos dele sem respostas. Apesar disso, fazemos coisas com todo o sentido, damos de comer a mais de três milhões de animais de estimação e de companhia registados em Portugal, levamo-los ao veterinário e a passear, para eles, em liberdade, poderem fazer as suas necessidades. Não no nosso quintal, pois os seus dejetos dão cabo da relva e das flores e secam as árvores ornamentais ou de frutos exóticos. E metemos a porcaria em sacos de plástico. E deixamo-los urinar e defecar à sua vontade. Em plena liberdade. O 25 de Abril também foi feito para a emancipação dos animais. Eles, segundo descoberta recente da igreja, até têm alma. E esterilizam-se, para o seu bem-estar. E também para o bem-estar dos seus donos. Só falta mesmo pô-los a rezar. Ou a fazer peregrinações a Fátima. A verdade é que se Nossa Senhora apareceu aos três pastorinhos, também deve ter sido notada pelos rebanhos de gado, sobretudo pelos cães de guarda. E mesmo por um ou outro gato que andava por ali à caça, pois os tempos eram de fome. E de republicanos anticlericais. E dos bois, vacas, novilhos, porcos, porcas, leitões, cabritos e cordeiros, coelhos, coelhas, frangos e galinhas nem é bom falar. Criam-se e matam-se longe da vista dos humanos. E abatem-se em sítios higiénicos e frios, como convém. À saúde pública e à paz de espírito. Longe da vista, longe do coração. E lá vamos arrebatando as palavras uns aos outros para demonstrarmos a nossa indignação com o abandono de cães e gatos por alguns celerados que dizem pertencer à raça humana e à cristandade. Esses, a serem alguma coisa, são discípulos de Belzebu, agnósticos de nascença, ou islamitas convictos. Penso que muito provavelmente o dinheiro gasto em Portugal, e por essa Europa fora, com os animais de companhia, dava para alimentar e vacinar muitos milhões de crianças espalhadas pelo mundo. Mas estou em crer que estes pensamentos são mesquinhos. Eu bem me queria esquivar deles, mas. Mas peço desculpa, desde já, se ofendo os sentimentos de alguém. O melhor mesmo é falar de frivolidades e bagatelas. Trocar piadas de xixi, cocó, pipis e popós, sogras e borrachos... queres por cima ou queres por baixo. Ah, ah, ah, ah… A verdade é que a grande maioria da rapaziada, que se diz a mais estudada de sempre, lê pouco e mal. Parece que não pode dar-se a esse luxo por falta de tempo e paz de espírito. Gosta muito de dizer que se diverte, que se emociona, que se zanga e que até barafusta. E faz bem. Bendito seja o seu entusiasmo. A juventude não pensa no passado, não lhe interessa; não pensa no presente, porque também não lhe interessa; e até se esquece de pensar no futuro. O presente é passado. O passado nunca existiu. E o futuro é um túnel onde não se vislumbra nenhuma espécie de luz. Onde se caminha às cegas. Na maioria dos casos é a própria vaidade o que os remunera. Ensinaram-nos a ser pavões enfáticos. A universidade democrática tem destes prolegómenos. Cria cursos como quem enche chouriços e depois quem se lixa é o mexilhão que pensava chegar a ser ostra. Esses licenciados têm, pelo menos, quatro saídas: de carro ou autocarro, de comboio, de barco ou de avião. Todo este relambório fez-me recordar a história da lavadeira contada pelo brasileiro Nelson Rodrigues, o homem fatal: “Era uma lavadeira que se viu, de repente, no meio de uma desordem horrorosa. Tiro e bordoada em quantidade. A lavadeira foi espigar a briga. Lá adiante, numa colina, viu um baixinho olhando por um binóculo. Ali estava Napoleão e ali estava Waterloo. Mas a santa mulher ignorou um e outro e foi para dentro ensaboar a roupa suja.” Eis o que eu quero dizer: estes novos licenciados possuem a mesma indiferença cultural da lavadeira diante dos napoleões e das batalhas. Honra lhes seja feita. Licenciado pós-moderno é mesmo assim. Procuram-se culpados.
Passa através dos intervalos das telhas uma luz dolorosa. Entram pelas janelas todos os rumores do bairro. Já nascem ervas novas junto aos muros. Os pássaros emudeceram. Recordo imagens de tardes mortas. E o sabor do pão fresco. E uma espécie de alegria surda. E eu a olhar para as pessoas com um espanto comovido. Sou feliz e infeliz, ao mesmo tempo. Há nuvens por cima da ponte. O ar está aberto. Os verdilhões e os chascos debicam as cerejas pintas. A forma do tempo começa a deteriorar-se. É meu este vento, esta água, este sol, o rio e as nascentes. Converto-me ao tempo que rola interminavelmente. Está tudo derreado de abandono. Até as árvores estão feridas, ou de tanto desamparo ou de tanta poda. Umas vezes, o riso substitui o choro. E outras, o choro toma conta do riso. E as poucas pessoas daqui falam para não gritarem. E afagam os gatos para não os estrangularem. Os campos secam do lado de fora das janelas. As terras estão mortas. Os caminhos estão definhados. E as árvores nuas. E o céu está cada vez mais profundo, como se o mar nos fosse engolir vindo de cima. As pessoas concentram-se na paisagem, com medo de chorar. A erva dobra-se para o chão e os pássaros voam tão baixo que provocam tonturas e pânico. A tempestade está para chegar. O teu olhar parece um eclipse do sol. Depois tudo fica azul. E depois negro. Nem os grilos cantam. O tempo desagrega-se. O sol queima. E as flores morrem como se não se sentissem úteis. É difícil acomodar a dor. As gralhas bradam o seu monótono grito de outono. Em vez de voarem para a luz, planam para a sombra. Andamos agora a estudar os limites dos abismos. Há sonhos que têm garras. Quero-me esconder dentro dos teus olhos. Eles são tão bonitos! A beleza deve servir para alguma coisa. O nevoeiro já levantou lá fora. Podemos ir passear para o jardim, entre as árvores e o chilrear aflito dos pássaros cegos pela luz. Vejo fragmentos e estilhaços de claridade. Oiço vozes soturnas, alucinadas, vozes de assombro. As vozes não se calam, mas começam a perder-se. Dentro da casa respira-se num som neutro. As sombras adensam-se e condensam-se no vale. Tocam os sinos, lembrando o passado, quando as pessoas ocultavam o corpo como se fosse uma vergonha. Esperamos, despertos, pela manhã de amanhã, junto à lareira, olhando para os nossos cabelos brancos, a ver crescer o silêncio. Os olhos cintilam. O tempo estende os seus braços para nos consolar. E abafar. Sente-se ainda com mais intensidade o declínio das coisas. As paredes são as senhoras absolutas do silêncio. Os cães calados. Os anjos velam os cemitérios. Este é um povoado de sombras, de ausências, de fotografias amareladas pelo tempo e pelo abandono, onde os que restam se vestem de gestos e de dissimulações. Com as mãos em concha tentam conservar o vazio e a fragilidade das sombras. Fragmentos do tempo caem no chão como se fossem folhas de outono. Outros tentam voar como se fossem pássaros feridos na asa. As ausências tornaram-se definitivamente inacessíveis. Deito ao lume as velhas cartas de amor. Os adjetivos cheiram ainda a naftalina. As mãos da solidão continuam a acariciar-me. Parecem pílulas para dormir. Ouvem-se os galos a tilintar na manhã. Algumas vozes vibram como cristais. O sol começa a acender-se no cimo dos montes. As lâminas de luz, que entram pelos buracos do telhado, cortam a cozinha em pedaços. Vou lá para fora espalhar a solidão.
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