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E por aqui andamos nós a escolher entre o egoísmo e o egoísmo. Que tempos estes, Deus meu! Que tempos estes! Grande parte dedicados a ouvir ou a contar histórias sobre o amor felino e a fidelidade canina. Bons tempos em que se ia buscar ao quintal bons frutos e bonitas flores, enquanto os sinos badalavam, as procissões passavam, as mascaradas desciam as ruas e os bailaricos alegravam os outeiros. Agora tudo arde. O país inteiro, no verão, parece um paiol de fogo de artifício. A magia de outros tempos é agora um eco. E também um cliché. E nós, os pretensos saudosistas, a elaborar cenários kitsch. Sempre a apregoar os estereótipos ligados ao desejo e à solidão. Somos uma espécie de filósofos tristes. E agora que cada um pode ter um carro pelo preço da uva mijona, deu-nos para andar a pé, como os peregrinos ao redor dos santuários. Que raio de cisma! Desceu sobre nós o Espírito Santo dos escuteiros ou da Mocidade do tempo da outra senhora. Mas estou em crer que as abelhas ainda zumbem e as melgas picam. Antigamente moviam-se montanhas com a fé. Era tudo uma espécie de via-sacra com laivos de mater dolorosa. De uma coisa estou certo, podem não existir as outras almas, mas a alma lusa existe. Lá fora, os revolucionários foram sempre adeptos da aceleração. Por cá, as suas cópias funcionaram sempre ao retardador. E nunca mais nos libertamos disto. Nem daquilo. Nem dos outros. A alma portuguesa é apenas um desvio semântico. A nossa identidade ou não existe ou é um enigma. A nossa principal dinâmica é a divisão. As águas paradas também enjoam, sobretudo as gentes mais intrépidas deste país de marinheiros. Nós gostamos de conversar. Esse é o nosso principal divertimento. Pode-nos faltar cultura, mas compensamos isso com o excesso de doçura. Há lá povo mais doce do que o português. Claro que isso provoca diabetes, mas para alguma coisa têm de servir a metformina e o Serviço Nacional de Saúde. Ser burro no nosso país não é uma exceção. Do mal o menos. A regra segue dentro de momentos. A província continua a ser uma espécie de jardim zoológico que os políticos visitam em campanha eleitoral para observarem o povo povinho povo no seu habitat natural. E prometem promessas que logo esquecem quando estão de volta à capital. Está na hora de lhes dedicarmos uma música dos Galandum Galundaina: “Nós deiqui i bós daí / Sodes tantos cumo nós / Mataremos un carneiro / Ls cuornos são para bós // Lá lá lá lá ra lá / Lá lá lá ra laia / Lá lá lá ra lá / Lá lá lá ra laia…” Podem até mudar os nomes às coisas e aos lugares, mas as pessoas continuam arreigadas aos seus defeitos. Bem vistas as coisas, o País está tranquilo. E hora a hora, Deus melhora. Nós até podemos não fazer nada, mas alguém o fará por nós. Essa é a nossa esperança. Neste país de solidó estamos sempre prontos a desviar com gracejos, as conversas que não nos interessam. A nossa realidade revela sempre uma pequena inclinação decorativa. Apesar de tentarmos fotografar o futuro, apenas se nos revela o passado. Somos gente muito autocompassiva e ressentida. Na maioria das vezes, transformamos a nossa ousadia em temeridade. A nossa suposta coragem é uma forma difusa de medo. A nossa realidade social é uma espécie de farsa vicentina. A democracia política é um teatro e, como todos sabemos, ninguém pode atuar num teatro sem fingir aquilo que não sente. O problema está naqueles que fingem com tanta convicção que acabam por sentir aquilo que fingem, acabando por confundir a realidade com a sua própria representação. São estes os que vão seduzindo os interlocutores com a sua simpatia e com a vontade insaciável de agradar a gregos e a troianos e os endrominar com o seu infindável repertório de historietas. A tudo nos habituamos: às mentiras, ao descuido, às modificações, ao lixo, às terras de poulo, à ineficiência, ao progresso, à cosmética. E lá vamos porfiando na nobre arte de estar sentados a olhar para os montes e a pensar na praia e no mar. E lá na aldeia o avô e a avó a cavarem a terra e a regarem as hortênsias. E na cidade os netos a entusiasmarem-se com facilidade. Tudo assim e assado. Tudo a agitar os humores. A dançar e a rezar antes da peregrinação a Fátima. Tudo reluz neste país de pastorinhos enfeitiçados por uma senhora que veste de branco e que costuma pousar nos ramos das azinheiras.
A ideia empurrada para a luz começa a escurecer. Parece um inseto desnecessário. Tanto carinho para nada. Cores diferentes, com sonoridades idênticas. Cores iguais com sonoridades diferentes. Por vezes a dor dorme em cima da cama, por vezes é a própria cama. O tempo tem vários sentidos, um deles é o da representação. Pela janela observo as bátegas de chuva. Espero que o dia chegue. Espero que o dia acabe. A força do tempo faz-nos rasgar a superfície das ondas outonais. Outro inverno está para vir. Reconheço o sofrimento mesmo quando o vejo escondido por detrás dos olhares. Clarividência, desespero. Silêncio. Tudo tão perfeitamente imperfeito. O amor tão sólido como uma estátua. Lembro o teu olhar escondido atrás de uns óculos de sol. Estátuas e canteiros de flores. Tudo a sofrer debaixo do sol intenso. O outro sol, aquele de que gosto, é suave, perfeito, estranho. Costumo encontrá-lo no inverno. E também as imagens da água quente da torneira. Na primavera, procuro-te nas pequenas searas de centeio, no meio das maçãs verdes, entre os pastos das vacas e das ovelhas, na doçura morna da água do rio. E eu no meio de uma angústia masculina, em cima do cavalo do meu avô, de chapéu de palha, deformado pelas lentes da memória, pela tortura da saudade, pelas juras falsas, pelos nomes esquecidos. Ou pelo facto de rezar. Ou pelas tradições que me deixam angustiado ou me fazem chorar por dentro. Ainda sinto aquele medo. O de tentar até perceber os planetas, o cansaço dos velhos, a lentidão das vacas. E os poemas. E o terço. E a Bíblia. E os meus dedos a caírem sobre as teclas de um órgão de igreja. E eu a carregar aos ombros as traições. E os cães a guardarem os palácios. E os nobres, enjoados, a vomitarem a fartura, a beijarem o Cristo na cruz, a falarem das suas árvores genealógicas que vão dar diretas aos imperadores, quando não ao mesmíssimo Deus Criador de todas as coisas. Cavalos e cavaleiros dentro do seu próprio sonho. Tudo impossível de amar. E o Herberto Hélder a mutilar flores de estufa. E as noivas, com os véus, a fugirem dos seus casamentos e a tatuarem as pernas e os braços. E a rirem-se, como perdidas, das rendas e dos tricôs que as suas mães e avós lhes deram para o enxoval. E os noivos a apertarem ainda mais o nó da gravata para ver se conseguem reduzir a vontade de gritarem o seu tédio. E o bem e o mal a serem lavados a sabão quente e depois secos e engomados. Tanta roupa lavada e outra por lavar. E as sotainas a encobrirem o pecado e as suas ereções. Depois os corpos suaves ficam ásperos. E os dedos. E as bocas. E os sorrisos. E mesmo as palavras. E os cabelos a perderem o brilho. E o desejo a deixar de desejar. E as mãos quentes a ficarem frias. Alguém lê histórias com voz de ternura. E eu a desenhar letras na superfície da água. Olho para o caos que é o centro da vida. As partículas tangenciais do mundo. Pés levantados do chão e o mundo a levitar. Auras azuis em redor dos objetos. Espasmos quentes de desejo. Testículos e úteros. Pénis e vaginas. Sémen. Óvulos. Círculos de pólen no ar. As luzes a aproximarem-se dos planetas. Os continentes a respirarem. Os deuses em fuga. Tanto Deus para coisa nenhuma. Tanto Deus, valha-nos Deus. Tanto Deus para nada. Galáxias e galáxias de pó e gás. O vazio infinito. O vazio. O infinito. Lembra-te que és pó…
Os políticos de agora são atores da cabeça aos pés: jovens, atléticos, muito bem postos dentro dos seus fatos de galã de província, prontos para encantarem as senhoras de meia-idade, concebendo a política como um espetáculo, pois acreditam que já não é a realidade que cria as imagens, mas as imagens que criam a realidade. A maioria deles pensa que estão a posar para a história, mas, verdade seja dita, apenas posam, ou se arranjam, para a foto que vai sair no jornal local que eles subsidiam a seu belo prazer. Não posam para a posteridade, mas para o ridículo. Combinam a sua mediocridade com o melodrama. São devotos do poder. Sem ele não são nada. Todas estas coisas da política e da conquista de poder são feitas com um elevado grau de improvisação. Todos eles, sem exceção, acabam sempre por mudar algo para que tudo fique na mesma. Quem conhece esses meandros, sobretudo os do poder autárquico, sabe que por lá está tudo muito bem atado. E os interesses garantidos. A política autárquica, por muito que nos custe, é uma ilha, um eufemismo, rodeada de dinheiro e interesses por todos os lados. E a verdade é que o arquipélago autárquico já tomou conta do território. A sua autonomia e independência são apenas semântica ou conceitos vazios de substância que cada um vai preenchendo consoante os seus interesses. E a democracia é uma questão de forma, quando não um pró-forma. A legitimidade popular não passa de um conceito vago que quanto mais propalado é mais inoperante se torna. É triste, mas verdadeiro, ver os mais exímios democratas terem atuações de sabotadores da democracia que dizem defender e amar. Não é a realidade que luta contra a democracia, é a democracia que parece querer lutar contra a realidade. Sobejam argumentos, mas faltam as razões. A mediocridade é, especialmente no poder local, uma coisa de bradar aos céus. Alguns vereadores são manifestamente incompetentes, quer na sua dimensão política, ou meramente técnica. Quando o problema é político, dão respostas técnicas. E quando o problema é técnico, desculpam-se com os subalternos. Claro que o povo ri, esquecendo-se que foi ele, esse povo galhofeiro, quem os pôs lá. Democraticamente. Esquecendo-se que a legitimidade democrática não é o mesmo que competência. E que a competência não se compra nas farmácias e também não se adquire por eleição. E dá trabalho. Muito trabalho. Dá sempre mau resultado quando se promove o moço de recados a capataz, pois quase sempre passa a sentir-se o arquiteto do projeto. Depois, quando toma conta das rédeas do poder, é difícil conseguir devolvê-lo ao redil, pois começa a dar couces como uma mula desembestada. Já os mais afoitos dão sempre a impressão de saberem tudo, coisa que é praticamente impossível, porque revelam faro político e inteligência estratégica. Cheiram o poder, pois para isso foram treinados. Claro está que o magnetismo do poder cria sempre uma espécie de unidade aparente. O segundo sonha em ser o primeiro e o terceiro o segundo, etc. É então quando o caldo se começa a entornar, pois chegam sempre os ciúmes, as rivalidades, as discrepâncias políticas e, sobretudo, pessoais. Os partidos políticos são sempre capoeiras com vários ninhos. Há sempre ambições insatisfeitas. Por trás de cada líder de grupo existe sempre um séquito de aduladores incompetentes e descoordenados. Os subordinados que colam cartazes, que agitam bandeiras e que pagam as quotas também esperam que alguma coisa do exercício do poder chegue até eles e não interessa que seja em géneros: medalhas, prebendas ou cargos mais ou menos honoríficos pagos como despesas de representação ou senhas de presença. Com o avançar do tempo, iniciam-se as discussões e começam a surgir as divergências. Mesmo sabendo que o respeitinho é muito bonito, ele, o poder, começa a dar de si. E quando se perde o respeito a alguém é irrecuperável. O fogo da rebelião começa então a tomar conta do palheiro. A intuição de alguns dos mais avisados de que a equipa era uma manta de retalhos mal engendrada era até correta, mas foi extemporânea. A razão antes de tempo é a pior das verdades. E depois surgem sempre os críticos tardios, os que intrigaram laboriosamente contra o número um. E a balbúrdia instala-se. E depois cresce. Até ao golpe final. Parece que a realidade anda sempre a conspirar contra os políticos. Coitados. Pobres coitados. Quando a forma é o conteúdo, o conteúdo deixa de ter sentido.
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