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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

20
Jul23

Poema Infinito (673): Sítios

João Madureira

IMG_4383 - cópia 4 (3).jpeg 

Ouve-se, em surdina, a gaita do vento nas ervas mais altas e nas casas em ruínas. E o tempo a desmembrar-se em porções infinitas. Olho para os diversos pedaços de telhado que o luar evidencia. Os girassóis estão de cabeça baixa. Até a estrada acaba antes de chegar. O céu de hoje é idêntico ao céu de milhentos anos atrás. E as pontes pendentes dos rios. E os rios pendentes das nuvens. Nesta terra que é meia espanhola e meia árabe. Tudo medido a palmos e a polegadas e a almas e a ambiguidades. O verão medido por sombras e o inverno por canhotos ardidos. As naus de pedra apenas navegam no meio dos montes. E com elas navegam os olhares. E os milhafres. E os melros. Tudo numa insolência condensada, intervalada pelas giestas, pelos fentos, pelas urzes, os tojos e as carquejas. E o vento a roçar pelas enseadas côncavas. E a água das fontes a misturar o passado com o presente. E o tempo a caminhar na eternidade. A solidificar memórias. E os corpos a cumprirem com o mínimo necessário à sobrevivência. Nada permanece, tudo se multiplica, até a solidão. O vento norte pousa nas ruas o frio que até aqui arrastou. O frio faz a sua própria propaganda e acende lareiras. Não são as palavras mais puras que fazem os mais puros dos poemas. As aves perseguem a claridade. E o azul. E o vento. E a humidade. Provavelmente anseiam a luz e a vertigem e o orvalho e os poentes de neve e os instantes. As espigas crescem em busca da ternura do sol. Escuta-se o ressoar dos passos das mulheres que vêm da eira, o eco das suas vidas, a alegria tristonha das suas histórias. Reacende-se a dor, corre a água e a roda do moinho vai fazendo o seu trabalho. Arde o lume. Arde a partida. Arde a chegada. Ecoam os salmos da terra. Torna-se mais nítido o contorno da tua fronte, o sinal dos teus dedos, a alegria do teu olhar. Já há portas da infância que não se deixam abrir. Eu sou esse esforço, estas ruas, estes castelos, este magma a arder debaixo de terra, este prelúdio. E também o epílogo. E os gritos mudos dos que já se foram. E a sua gramática irresolvida, a sua sintaxe e os seus séculos incarnados, tudo feito em cerâmica moldada pelas suas memórias. Murmuramos os sítios e as frases difíceis de sentir, escondendo os vagares e a pressa e os arrepios e o júbilo. Há frases que não encontram a porta por onde devem entrar, amarradas aos sentimentos e ao destino e ao escuro onde ardem, sem que se veja. Somando sítios dolorosos, constelações inteiras e buracos negros. O deus das pequenas coisas não sabe onde soprar. A voz curva-se como se já fosse velha. O fogo abre a carne. O fogo abre as corolas das flores silvestres. E o brilho derretido da geada. O ar quente sobe pelos corpos. E pelos arcos dos pulmões. Tudo vibra. Os corpos humanos, como os celestes, possuem uma astronomia própria. O lume arde enquanto nós dançamos. Ouvem-se, de novo, os salmos da terra, o gemido dos caminhos, os contornos do teu corpo. Salta à vista a alegria das pedras, a impetuosa saudade das mães. As portas ficam mais longínquas das casas. As janelas parecem olhos cegos. É doloroso a posse e o amor entre ruínas. Vacilam as aves nos seus voos. Tudo se demora no que é último. Tudo parece estranho: os montes, os quintais, as cerejas, os declives das vinhas, as ameias do castelo, as sebes, o orvalho, as gotas que alimentam os sulcos, os cântaros, a espiral das manhãs, a neblina do pinhal, a elegia do destino. Tudo parece estranho. Tudo.

17
Jul23

643 - Pérolas e Diamantes: Isto faz parte...

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 8 (5).jpg 

Isto faz parte da história e do seu circo, as personagens reais parecem irreais. E as outras parecem contaminadas pela peste da mediocridade. Da realidade. E a ficção transforma-se em realidade. Que é, neste caso, sinónimo de mediocridade. E a realidade, para tristeza nossa, distorce-se, degrada-se, banaliza-se. A garantia de realidade é irreal, pois a ela se somam os assombros, a falsa magnitude histórica e as zonas de sombra. As hipóteses são mais reais do que a triste realidade. A História está cheia de dúvidas. A realidade exige sempre um romance. A História anda sempre à procura dos historiadores, para que não a deixem ficar mal. O problema surge quando os historiadores querem passar a ser os heróis da História que mais lhes interessa. Eles, que nunca foram parte, nem tida nem achada no processo, querem ser os heróis da transcendência histórica. A verdade é que as espadas, ou as balas, nunca silvaram à sua volta. As guerras, que é onde a História se decide, são feitas de gritos, disparos, golpes, berrarias dos intervenientes e um silêncio aterrorizado e ensurdecedor do povo. O povo sempre acagaçado a ver onde param as modas. Tudo, e todos, em estado de choque. Ou hipnose. E os lugares do circo vazios. Ninguém viu nada, ou quase nada, no momento. Mas todos viram tudo, após a refega. Todos perceberam, então, o significado do enigma. O alarme e o destino do que estava para acontecer. Quando se está no meio do facto histórico ninguém tem a noção do verdadeiro significado dos seus gestos. Aquilo é mais disparar e andar. E o que tiver de ser será. Ou não. Tanto de um lado como do outro, o que por lá mais existe são os oportunistas, reacionários/revolucionários, superficiais e manhosos. Depois existem os que triunfam. A História tem horror ao vazio. E com eles chega sempre o cheiro do sarcasmo, da afirmação inclusiva das reticências, da canonização da hipocrisia, do festejo da vulgaridade. Os festejadores festejam-se sempre a si próprios. Os que vencem banalizam sempre o triunfo do bem. Esse é sempre o seu mal. A canonização dos princípios, a vacuidade dos gestos, o enriquecimento ilícito. A sua biografia imposta. Na verdade, ou na mentira histórica, pois são sempre a cara e a coroa da mesma moeda, tudo parece ser tecido milimetricamente para que o que tinha de ser acontecesse: as teias conspirativas dos militares, a anuência dos políticos, o dinheiro dos empresários, a cobertura dos jornalista e dos diplomatas. Todos em volta da mesa aglutinadora das ambições dispersas, por vezes aparentemente opostas. A verdade é que quanto mais se lê os históricos compêndios canónicos mais as certezas dos acontecimentos narrados se transformam em dúvidas. As incertezas, em vez de se dissiparem, acabam por se adensar. E as dúvidas multiplicam-se. A intuição sobrepõe-se ao medo. A base histórica da História, bem analisadas as coisas, é essencialmente falsa. Mesmo aquela que se baseia em pressupostos aparentemente verdadeiros. A verdade histórica nunca é coerente, simétrica e risonha. Antes pelo contrário, é desordenada, conturbada e imprevisível. Na História, enquanto ela se faz, apenas existe desordem e acaso. Caos. E mais caos. A História, por mais que nos custe, é uma amálgama de hipóteses teóricas, incertezas, efabulações, falsidades e recordações reescritas pelos tristes académicos que espremem os documentos como se fossem limões sumarentos. A realidade não tem a homogeneidade que todos lhe queremos conferir. A História é um labirinto feito de outros labirintos, cheios de memórias irreconhecíveis e quase sempre díspares. A História é sempre o campo da realidade alternativa. Os historiadores, os mais honestos, tentam fazer com que a História seja um pouco mais inteligível, pois não pretendem ocultar a sua natureza caótica, nem encobrir os sinais mais evidentes dos traços neuróticos ou paranoicos dos seus protagonistas mais emblemáticos. Tentam que a novela coletiva seja escrita com a maior nitidez possível. Sobretudo, com toda a inocência de que são capazes. Pois sabem que a História é sempre, para o bem e para o mal, uma recordação inventada.

13
Jul23

Poema Infinito (672): Luz prateada

João Madureira

ORIGINAL (3).jpeg 

A luz prateada que raia sobre os estores, realçada pelas linhas do teto e pelas flores, tem um cheiro a gim-tónico. Faz um frio de rachar. E a pá do moinho sempre a girar. Eu sou o mais novo de tudo isto que é velho. O tempo provoca-me cicatrizes de guerra. O caos nasce na altura do nascimento e a ordem na altura da morte. Nuvens de medo roubam o ânimo às crianças. O medo permanente surge de algo que não é bem real. É fácil sermos vítimas de estranhas fantasias. Puxo as persianas e vejo as ruas cheias de almas. Este frio aquece-me o coração. A pequena floresta parece o cenário de um filme de animação. E a vida a desfazer-se. E o filho pródigo a cantar na sua segunda saída de casa. E o pai do filho pródigo a moer impaciências. Conclusão: até a paciência pode ser passageira. O velho sacristão foi despedido por ter bebido todo o vinho sacramental que o padre guardava dentro de um sacrário suplente e se ter posto a tocar os sinos durante a noite, como se houvesse incêndio ou estivessem para chegar de novo as tropas de Napoleão. Quando olhei para ele pareceu-me um dos velhos loucos aos pinotes que figuram nos quadros de Hieronymus Bosch. Apenas lhe faltavam as orelhas de burro. Há tanta eletricidade no ar que a alma é puxada para fora do corpo. E aí andam elas ao deus-dará. Por isso os cavalos ficaram com os vágados e não se aguentam de pé. Por qualquer tipo de razão inexplicável, lembrei-me de Paris, dos seus quadros momentâneos, da sua luz etérea, das Tulherias, de Montmartre, do Sacré Coeur e do último resplendor do crepúsculo. Nunca é fácil viver o drama diário do funambulismo, entre a miséria e a dignidade. A memória é como plasticina, sempre pronta a ser moldada. As aves migratórias já não regressam aqui. Muitas morrem pelo caminho e outras em terras estranhas. As meninas já não saltam à corda, nem os meninos jogam ao pião. O bem pelo bem e o mal pelo mal, existe lá coisa mais imperfeita. Tudo muito épico, cheio de personagens de barbas, homens abstratos, exaltados pela retórica do cavalheirismo, a deixarem que a vergonha aconteça. A verdade foi crucificada, morreu e depois ressuscitou de maneira estranha, misteriosa e inconclusiva. Há pessoas que possuem uma espécie de inteligência que lhes dá acesso privilegiado à realidade. E há outras que sofrem com as pequenas coisas. O silêncio cósmico pode soar de forma gritante. Há por aqui loucos que farejam o ar. E eu a tentar perceber o brilho do rio. Com a idade, o som do vento torna-se triste. Tudo tão perto e tão longe. Tudo à beira do colapso. E os aviões lá no alto parecendo cegonhas amestradas. A nostalgia desce a rua como se fosse uma sombra permanente. Na igreja cantam os frades como se tivessem intenção de encantar sereias. O comprimento das sombras continua a depender da posição do sol. Olho a adega e lembro-me do cheiro rosáceo do vinho encubado e do perfume macio das grainhas e das cascas da uvas. Ventos breves sacodem os ciprestes. A localidade parece agora um Gólgota, com o crepúsculo ao fundo e com a luz a apertar-se. Depois chegarão os clarões. E, finalmente, acabará por adormecer. As sombras pressentem-se como elegias. Cada vez é mais difícil limpar o pó a tudo isto. O tempo continua a sua penetração silenciosa. Satanás mergulha através dos céus para a Terra. A minha avó sobe para o céu em círculos infinitos.

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