Poema Infinito (677): Via Crucis
Os corpos fundem-se. Fundem-se em gás e fogo. E em entusiasmo. E em braços e pernas. E tocam-se, nas partes mais íntimas. No meio de tamanha confusão, dizes que me amas. Atrapalho-me com tanta ginástica. Via Crucis. Lamento lento. Amar-te numa cama de lírios. Ai Salomão, Salomão, tanta concubina para nada. Somos como lâmpadas, uns fundem-se e outros querem ser fundidos. Antigamente havia velas e depois fusíveis. Hoje já não existe nada disso. Só lanternas de telemóveis a brilhar no meio de concertos ensurdecedores. Domesticaram a eletricidade dos corpos. Antigamente faziam-se filhos em pé, de cócoras ou deitados em cima das tábuas do escano. Agora é tudo feito em cima edredões de penas, colchões ortopédicos ou em sofás inverosímeis. Esta nova sensualidade tem o sabor característico do esferovite. O amor, este novo amor, é tão leve que nem se sente. Os olhares são condicionais. Bebe-se tudo, nem é preciso sede. Fornica-se tudo, nem é necessário desejo. Mãos paradas, sexo baseado em estimulantes químicos. Mas tudo sem química orgânica. Então que dizer das unhas de gelinho a estimular o escroto. A sintaxe do amor, por vezes, ainda chega ao peito. E depois nem sobe, nem desce. Tudo a demorar ou a ser rápido de mais. Há amantes que ladram e outras que falam como se estivessem num filme. Na verdade, já ninguém sabe muito bem onde está. Ou por onde anda. Uns lambem pétalas, outros lábios. Uns riem, outros apontam o céu. É preciso respirar. Experimentar outro tipo de navegação. Sonhar com metáforas. Então, sim, os corpos vão estremecer. Estremecer. Estremecer. A boca procura conforto. Esse é o princípio crítico do amor. Também as avencas florescem. E os pássaros voam para dentro dos sonhos. Quero ir ao lugar do amor e demorar-me lá. É preciso ir, insistir. E vir. Os rostos aflitos, logo ficarão calmos. Faz parte da mise en scène. Muito do amor, começa com um beijo e acaba em desconsolo. E também há aquele que se inicia com um abraço apertado, se incendeia no calor dos corpos e acaba tão consolado que tem pressa de começar de novo. Não feches a porta do teu corpo que quero entrar outra vez. Algumas mulheres descansam na sombra verde do desejo. E sorriem. Umas por fora. E outras por dentro. Os seus sorrisos são como carícias disfarçadas de sexo. Análises e protestos são deixados aos proustianos. Filhos feitos debaixo das árvores são cada vez mais raros. Frutos demasiado maduros apenas sabem a doce. Duas mãos e um sexo podem ser bons acordes para se compor uma canção de amor. Alguém tem de suportar o mundo. Fazer grandes mundos de pequenas coisas. Gemidos e orgasmos. Despir prepúcios, acariciar vulvas. Houve jejum, houve pandemia, houve febre. Apesar dos gritos mudos, continuamos a tocar-nos, a possuirmo-nos. E a copular como quem reza. E a rimar palavras com a carne correspondente. E a dissolver os beijos. E a fazer deslizar orgasmos sobre as camélias. Lágrimas frágeis instalam-se nos nossos olhos. Pequenas viagens de amor podem ter o sabor infinito do momento. Não quero explodir. É ainda possível controlar o crepúsculo. Há tanta inconveniência na posse. No amor despenham-se todos os trapezistas por causa das linhas curvas. O desejo não tem paciência, nem lucidez. Apenas o amor carnal permite a ressurreição.