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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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17
Ago23

Poema Infinito (676): Tanto e tão pouco

João Madureira

IMG_4383 - cópia 4 (4).jpeg 

A noite desprende-se das paredes e adquire a forma definitiva. Apesar da sua densidade, não me apetece acender a luz. E ali fico a sentir-me respirar. Lembro-me do dia em que a minha mãe chorou primeiro para dentro de si e depois para dentro das suas mãos. E o meu pai ali quieto como uma estátua de sal. De manhã, a névoa ainda embaciava as janelas. A poeira dos caminhos e dos tempos tinha sido molhada. A incerteza da continuidade faz-nos correr para o lado do medo. A coragem é um subterfúgio. Um rio invisível, corre no meio das trevas. Longa é a estrada que vai dar ao nada. As caravelas foram transformadas em pipos e os nossos marinheiros praticam agora o escapismo em cima de pranchas de surf. Estes homens do mar já só se sentem felizes em terra. Perfis aduncos, vozes roucas, sílabas parvas. O melhor vinho maduro bebem-no os estrangeiros. Os filhos dos marinheiros, que pescavam sardinha à beira da costa, nadam em piscinas. Transformaram-se em nadadores salvadores besuntados com protetores solares. A luz bebe-os como se fossem sereios. Dedos frágeis sobre a pele, sobre os sexos, como se fossem línguas de perguntador. Aspiramos a maresia através da visualização de filmes. Até as gaivotas são de plástico. E o fascismo. E a democracia. E o vinte cinco de abril. Tanto para tão pouco. Tantos príncipes a fugir do baile de máscaras vestidos de princesas e montados num par de sapatos de cristal com saltos altos feitos na Marinha Grande. Morrer, entre espasmos e orgasmos, entre alegorias, é uma outra forma de dizer que se quer morrer de forma intensa. Noites de indesmentível doçura, caçadas ímpias, mulheres perfeitas que cantam e dançam em desordem, com os seus rostos insondáveis. Epílogos e orgias de sacrifício. Queimam os vestígios da tua boca. Os teus olhos. Os nossos corpos efémeros. Queimam os ventos e as tempestades e o vinho e os sonhos. Alguém colhe o amor como se fosse uma laranja. Respiramos devagar. Tudo numa desordem musical, de cordas e sopros, de lágrimas e montes, de insónias e crepúsculos. Olhamos para os trevos de quatro folhas, como se fossem nossos. O caos é uma nova alucinação. A vertigem dos jardins antigos. Ainda somos capazes de sentir a tontura da combustão juvenil. E de fixar as cores e de guardar os sons. Dirigimo-nos ao quintal e aos montes e às gotas de orvalho. Cardos. E cardos. E cinzas. As metáforas são como arquipélagos de dor. Os cavalos que atravessam os sonhos são suaves. Uma pequena fogueira arde no adro. Os pássaros descansam. E também os seus inexcedíveis voos. O teu olhar dócil chega antes das chuvas. Há sempre a possibilidade do regresso. Estamos sempre em vésperas de destruição. Sempre a decidir a ida. E, sobretudo, a vinda. As notícias desaguam no meio do tempo imenso. Anjos nus dançam ao longo dos muros. Oiço daqui os seus passos contínuos, a ressonância dos seus pecados, o lume dos seus idiomas linguísticos e corporais, o amor dos seres humanos debaixo do céu, sob as estrelas, na imensa serenidade das montanhas. Partimos depois do amor chegar. O luar ilumina o teu cabelo. Beijos e seios e dois sexos a desejarem-se. E a cadência da penetração. De fora para dentro. Com intensidade. Melodia e ritmo. A serenidade da ardência. A tangível arte da cópula. O limiar. A inundação.

14
Ago23

647 - Pérolas e Diamantes: O beneficiado sou eu...

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 4 (3).jpg 

O beneficiado sou eu. E por isso agradeço a este Estado Social o meu bem-estar e a todos os que o construíram, o governam, o mantêm, o alimentam, o ilustram, o desenvolvem e o acarinham. E também tenho de dar os parabéns a toda essa maravilhosa gente que, com sacrifício pessoal e profissional, o vem servindo com esmero e dedicação, revelando as suas extraordinárias qualidades. Todos esses homens e mulheres trabalham incansavelmente, não apenas para construírem uma carreira política e profissional, mas, sobretudo, para o bem-comum. A verdade é que nenhum de nós consegue fazer a mínima ideia de quando conseguem dormir. Toda esta gente troca o conforto e a segurança pessoais pela dedicação à causa pública. Mais do que eles e elas precisarem do país, é o país que necessita delas e deles. E dos seus amigos e parentes e correligionários. Isto, apesar, da impaciência do povo, dos escassos recursos nacionais e das grandes dificuldades internacionais. O seu zelo impressiona toda a gente de boa vontade. E faz mesmo aumentar o nível de qualidade da mão-de-obra nacional, o nível das qualificações dos trabalhadores, o nível cultural dos nossos jovens e a qualidade dos produtos regionais e da raça do porco bísaro, dos bovinos de lameiro, do cavalo lusitano e das galinhas do campo que, com a sua inteligência de aves ancestrais, sabem bem que uma raposa é um lobo disfarçado. A sua ideologia, mais do que ser socialista, social-democrata ou democrata-cristã, é baseada essencialmente no pragmatismo. Eles e elas não cometem erros, pelo menos deliberadamente, são apenas vítimas de embaraços provocados por jornalistas que não têm mais nada que fazer na vida do que andarem atrás de notícias fantasiosas. Eles e elas, mais os assessores que incansavelmente os acompanham, almoçam pouco e jantam tarde e a más horas. A sua vida é tão intensa, e a sua agenda tão preenchida, que chegam a entrar nas festas dos bombeiros ou das instituições de solidariedade social com fome e a saírem de lá com vontade de comer. Alguns, talvez muitos deles e delas, possuem um curriculum vitae com lacunas, mas quem é que nunca sofreu, mesmo que fugazmente, do síndrome Relvas? Claro que podem ter alguns pecados originais, mas, bem vistas as coisas, quem é que está acima deles? Penso que não é possível avaliar a dimensão dessas mulheres e homens, sem ter em consideração os fatores políticos, sociais e humanos em que foram gerados. Todos somos vítimas das circunstâncias. Mas enche-nos a todos de orgulho o facto incontornável de Portugal ser atualmente a terra das oportunidades, tanto para cidadãos nacionais como para indivíduos estrangeiros. E a quem se deve esse salto qualitativo? A resposta é óbvia e simples: a eles e elas. Esta gente muda paradigmas, sistemas e estruturas a um ritmo invejável. O amor, por tradição, é uma questão a dois. E é isso o que existe entre o povo e eles (e elas) ou entre elas (e eles) e o povo, pois, apesar dos arrufos e das discussões familiares, o povo acaba sempre por votar neles ou nelas. Claro que o conflito se renova de quatro em quatro anos, mas o povo lá se vai acostumando, ou melhor, aculturando. Claro que o povo sabe bem tocar bombo, ferrinhos, gaita de beiços e cavaquinho, mas, com os devidos apoios comunitários, aprenderá a tocar violino, fagote ou flauta transversal e a transformar o Malhão numa sinfonia apologética. O puro ato de escutar transforma a nossa erudição musical. Para já não falar das outras. O esforço de modernização do país até nos pode parecer excessivo, mas temos todos de colaborar. Convém não esquecer que esta é uma nação de artistas, um pátria de poetas e de primeiros-ministros que até fazem exames ao domingo. Nós somos o novo centro magnético da lusofonia. Claro que também existem pequenos problemas, sobretudo com os nossos filhos, já que, por causa das suas carreiras profissionais, costumam adiar o nascimento do segundo filho, muitos até do primeiro, mas com mais uns anos de intenso e consistente progresso, o putativo problema passará de ser meramente estrutural, para ocasionalmente instrumental. Ou apriorístico. Ou…

07
Ago23

646 - Pérolas e Diamantes: David à espera do desastre

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 3 (3).jpg 

Deus está no desemprego ou é pago a recibos verdes. Eu estou detrás da cortina de um mago. E pelo trabalho dele, dá para ver que os feiticeiros não se divertem e nem sequer vão às compras. Este tempo é experimental, inspirador e emocionante. O mago não descansa. Isto já dura há algum tempo. Eu detrás da cortina e ele a fazer que não me vê. Ele é o mágico e eu o seu aprendiz. Não descansa, o mago. E depois de um dia de trabalho passa a noite acordado a rir, a sonhar, a conspirar e a planear. Uma das coisas mais importantes que me ensinou, a nível teórico, foi a diferença entre a valsa dançada em Viena e a dançada em Paris, também conhecida como valse-musette. A magia está nos pormenores. E Deus também. Mesmo estando ele no desemprego ou a trabalhar a recibos verdes. De certa maneira, para o patrão, o desemprego do seu empregado é apenas um pormenor que o Estado deve resolver, subsidiando. Muitas vezes, nem a magia ajuda, especialmente quando a realidade esmaga os pormenores. E lá se vão os láparos para o tacho, as pombas para a caçarola e os confettis para os casamentos de pessoas do mesmo sexo. Lembrei ao mestre que também vivemos tempos difíceis, ou mesmo cruéis. Como quando estivemos imersos no pesadelo de José Sócrates para depois concluirmos que acordámos numa realidade ainda pior chamada Pedro Passos Coelho. Depois de todos fecharmos os olhos, quando os voltamos a abrir já tudo valsava ao som da geringonça. A verdade é que a vida continua, não por causa deles, mas apesar deles. Ou apesar de tudo, pois aí estão Marcelo Rebelo, António Santos Costa e o sibilino Luís Montenegro Esteves, este último à espera de um desastre devidamente anunciado para tomar conta da governação do país. E nós lá vamos ganhando diferentes tipos de imunidade. Se conseguimos sobreviver ao vírus do COVID, também somos capazes de resistir a estes pândegos. As instituições políticas do país são uma espécie de Moulin Rouge com uma estrutura exterior parecida ao Mosteiro da Batalha, mas feito em esferovite. Andamos sempre a enfrentar ferozes ventos contrários, no meio de dúvidas e desânimos. Mas não é por isso que vamos desistir. Até porque eles, essa boa gente do poder, sabe que quando temos de escolher entre mentir e magoar, o melhor é escolher a delicadeza em vez da verdade. O melhor é sempre causar alegria, mesmo que para isso se tenha de mentir. A generosidade da mentira é sempre preferível à dor da verdade. Afinal, bem vistas as coisas, é assim que se governa desde os primórdios. Eles, os que se fazem à história, até são os génios da espera, mas, infelizmente, não têm jeito nenhum para tocar a música pela pauta. Gostam do improviso, mas detestam o jazz. Tocam a música dos outros há custa de muito porfiarem. A nós dão-nos a receita para imaginarmos o prato repleto de conceitos e ilustrações. Eles lambuzam-se com a travessa dos alimentos. Quem costuma fazer o pino tem tendência para ver as coisas ao contrário. O poder costuma projetar à sua volta zonas de sombra. Não há nenhum político democrático que não tenha desejado ser bombeiro, para brincar com o fogo e com a água, vestir o uniforme prazenteiro, andar com as botas do heroísmo, dar lustro ao capacete reluzente, fazer apitar as sirenes, ser admirado pelas raparigas, focar-se nos faróis de emergência, ordenar o pânico nas ruas e fazer andar os veículos vermelhos a uma velocidade relâmpago. E ainda de executar as manobras necessárias com a viatura das escadas, desenrolar as mangueiras, fixar na retina o reflexo das chamas e pegar em braços a bonita princesa inanimada, dando continuidade à ficção dos heroicos salvadores. E as suas imaginadas companheiras ou camaradas, aparecem sempre a seu lado com as cestas cheias de amoras, mirtilos, morangos silvestres, groselhas e cogumelos. O problema não está na sua imaginação nem mesmo na sua militância juvenil. O busílis da questão reside no facto de fazerem da política o seu sustento. Os melhores bombeiros são os voluntários. Neles é que reside a essência do humanitarismo. Lembram-se do jovem pastor David que venceu o gigante Golias? Foi em tempos um guerrilheiro corajoso que lutou nas fileiras dos movimentos emancipadores contra o jugo dos filisteus, mas na velhice transformou-se num monarca colonialista e imperialista, que conquistou outros países, subjugou outros povos, tirando aos pobres para enriquecer os cofres do Estado. Uma coisa vos asseguro: isto já é assim desde tempos imemoriais.

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