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Ali estão as quatro viúvas, alinhadas junto à porta. Fazem muito esforço para não pisarem o carreiro de formigas que infestou a casa. A quinta viúva, acamada, faz que não as conhece. Ou já não as distingue mesmo. Avançam sobre a cama. Parecem quatro pombas pousadas sobre a colcha com anjos bordados. Duas de cada lado. Sorriem para animarem a viúva acamada. Ou para se animarem a elas. Uma delas puxa de um rosário e põem-se a rezar o terço. Quem conhece a viúva acamada sabe que ela não aprecia as orações repetidas, considera que os Anjos, os Santos e o mesmíssimo Deus se aborrecem de ouvir tantas vezes as mesmas palavras. Aprendeu isso com a sua mãe que evitava ladainhar ladainhas. A viúva acamada gostava muito de ouvir o seu falecido marido recitar o Cântico dos Cânticos do Rei Salomão. Elas começam a rezar um mistério. Ela faz que as acompanha. Sempre fez bem que rezava. Ela interrompe-as com um ligeiro ataque de tosse e pede-lhes que cantem antes um hino, pois não é tão chato e sempre as palavras vêm embrulhadas em música. As quatro viúvas cantam a sua viuvez, sem muita tristeza. Elas a pedirem perdão a Deus pelos pecados que não cometeram. A louvarem o Senhor por aquilo em que não as ajudou. Quanto mais triste é o canto, mais belo parece. Nesta altura da vida têm de fechar os olhos para acreditarem em Deus. Uma delas, enquanto canta, começa a chorar. As outras resolvem acompanhá-la. Uma por todas. Todas por uma. A viúva acamada fecha os olhos para acreditar também em Deus. Nesta altura já tanto lhe faz. Dizem que os cânticos que entoam são feitos com palavras divinas. Mas não parecem. O amor a Deus não pode fazer dos seus filhos escravos. As quatro viúvas, depois da missão cumprida, vão-se embora, mas evitam pisar o carreiro das formigas sobretudo porque ele está cheio de veneno. E a viúva acamada ali fica distraída a ver passar o tempo traidor. Ele a mover-se, como se estivesse quieto. E ela a ficar quieta, apesar de se tentar mover. As orações entram por uma orelha e saem pela outra. Pelo menos isso têm de bom. O Deus que era vingativo, passou depois a passivo. Agora é interrogativo. Passivo-interrogativo. Entrou na sua fase depressiva. É-lhe muito bem feito. Não é em vão que fomos feitos à sua imagem e semelhança. E o seu filho já não diz “deixai vir a mim as criancinhas” por causa do que andam por aí a fazer os seus propagandistas vestidos de negro. Os que ainda, por inércia e tradição, teimam em escutá-lo, respondem-lhe de forma atrapalhada. Dizem, quando lhe perguntam, que Deus é amor e que isso os alegra, mas o sorriso que tentam esboçar com as linhas dos seus rostos são tristes como a noite. Os mais velhos deixam mesmo cair ao chão os seus sorrisos, como se lhes pesassem ou não os conseguissem reter. Penso: Afinal, quem és tu que nunca estás em paz? A afogares-te no meio da esperança. A vir à tona e a ir ao fundo. A experimentar sentimentos entre aspas. Ai os ascetas! Coitada da tragédia. A verdade não tem que ser trágica. Este inferno é frio. Os moralistas estão pendurados no vácuo. E Deus na abstração. Por vezes, chegam do fundo do tempo os gritos dos cristãos que no Coliseu foram devorados pelos leões. A noite dos tempos está sempre à nossa espera. Ao longe escuta-se o regougo de uma raposa. A viúva acamada arrepia-se e depois adormece.
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