Poema Infinito (690): A luz oblíqua
Poderia ter sido o nosso destino comum, os buracos e os rasgões na roupa. Mas não foi. Foram os textos, as pessoas e o descobrimento das perdas e dos ganhos. O passado era excessivo. Mas ultrapassamo-lo. Dilúvio e enchente. Enchente e dilúvio. A pressão ultrapassou o volume. A natureza nunca é aquilo que parece. Nem os sorrisos. Nem os abraços. Nem o sexo. Parasitar os mortos não é negócio que se recomende. As velhas caras olham para nós como se a perda possa ser um insulto. Ou um aconchego. Os finais felizes estão cheios de lacunas. As escolhas começam a arder. Observo os bancos de nevoeiro a deslizarem sob o manto de luar. O lume desce e depois sobe. Os beijos tornam-se mais demorados. Os seios ficaram mais delicados com a idade. A cadência torna-se mais penetrante. Tardam as chuvas, tardam os frutos. Tarda o riso no teu rosto. Com a idade tudo fica mais indeciso. Sentámo-nos na foz do mundo. Reparo no perfil ciumento de Osíris a olhar na direção de Ísis. Os incautos peregrinos continuam a dirigir-se para o seu árduo destino. Os templos estão cheios de metáforas, de formas escuras, de sombras, de cinzas. Os santos têm musgo no coração. Sentado nos velhos degraus do cruzeiro da praça, espero pela madrugada e pela cadência da chuva. Reparo que as aves estão mais descuidadas. Não se dão bem com este céu antigo. Este pequeno mundo está cheio de arestas. Os ventos da memória cortam como seitouras. Muitas das velhas casas estão transformadas em montes de pedras, onde as silvas fazem ninho. São estranhas estas sementeiras. É também estranha a palidez dos pássaros. E a luz oblíqua das estações. Apagaram-se as vozes. Os lares repousam. O espesso líquido da tarde toma conta do destino das folhas. Pego nas tuas mãos e sinto a grafia aflitiva dos teus nervos. A tua inquietação. Reparo nos sinais de ternura, nas pálpebras do teu sono. Na enigmática vigília da angústia. Falamos das prodigiosas escarpas do tempo para espantar a morte. E do crescimento dos gladíolos. E das orquídeas. E da antiquíssima chama que alimenta esta fogueira. E da insónia dos gestos. E do sofrimento das almas magoadas. E da violência dos crepúsculos. E a vida inquieta e inóspita vai-se afastando de nós. A erva cresce. A lareira espanta o frio. A bruma desfaz-se. Uma voz longínqua irrompe pelo meio do rumor da manhã. Trazes o copo cheio de gotas de orvalho que apanhaste das folhas da macieira. A noite foi de amor, com cheiro a feno e a rosas de verão. Seguir-se-ão as vindimas e o cheiro melancólico do vinho mosto. E depois a canção dos salmos febris. E também a ansiedade da sabedoria e as súbitas bebedeiras das promessas. E o tempo em cima de nós. E as nuvens a doerem-nos nos olhos. E os crisântemos a desfazerem-se. Gotas de amargura repousam nas pétalas precocemente velhas das magnólias. Tanto jardim para tão pouca beleza. O tempo fica mais íntimo, comovido até. As paisagens mais brancas e o veneno mais doce. Campos e campos de doçura. O melhor é levar o cálice da velha e eterna aliança para o frio da adega. As luzes começaram a escurecer e as vozes a moldar o silêncio. E o nosso olhar entre as giestas e os sonhos. As aves começam a deixar os montes. E com elas vai mais um pedaço de vida. E nós a segurar os lábios para não tremerem de emoção. O rio cresce lento como a morte. Distraio-me com os campos de centeio e milho.