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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

30
Nov23

Poema Infinito (690): A luz oblíqua

João Madureira

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Poderia ter sido o nosso destino comum, os buracos e os rasgões na roupa. Mas não foi. Foram os textos, as pessoas e o descobrimento das perdas e dos ganhos. O passado era excessivo. Mas ultrapassamo-lo. Dilúvio e enchente. Enchente e dilúvio. A pressão ultrapassou o volume. A natureza nunca é aquilo que parece. Nem os sorrisos. Nem os abraços. Nem o sexo. Parasitar os mortos não é negócio que se recomende. As velhas caras olham para nós como se a perda possa ser um insulto. Ou um aconchego. Os finais felizes estão cheios de lacunas. As escolhas começam a arder. Observo os bancos de nevoeiro a deslizarem sob o manto de luar. O lume desce e depois sobe. Os beijos tornam-se mais demorados. Os seios ficaram mais delicados com a idade. A cadência torna-se mais penetrante. Tardam as chuvas, tardam os frutos. Tarda o riso no teu rosto. Com a idade tudo fica mais indeciso. Sentámo-nos na foz do mundo. Reparo no perfil ciumento de Osíris a olhar na direção de Ísis. Os incautos peregrinos continuam a dirigir-se para o seu árduo destino. Os templos estão cheios de metáforas, de formas escuras, de sombras, de cinzas. Os santos têm musgo no coração. Sentado nos velhos degraus do cruzeiro da praça, espero pela madrugada e pela cadência da chuva. Reparo que as aves estão mais descuidadas. Não se dão bem com este céu antigo. Este pequeno mundo está cheio de arestas. Os ventos da memória cortam como seitouras. Muitas das velhas casas estão transformadas em montes de pedras, onde as silvas fazem ninho. São estranhas estas sementeiras. É também estranha a palidez dos pássaros. E a luz oblíqua das estações. Apagaram-se as vozes. Os lares repousam. O espesso líquido da tarde toma conta do destino das folhas. Pego nas tuas mãos e sinto a grafia aflitiva dos teus nervos. A tua inquietação. Reparo nos sinais de ternura, nas pálpebras do teu sono. Na enigmática vigília da angústia. Falamos das prodigiosas escarpas do tempo para espantar a morte. E do crescimento dos gladíolos. E das orquídeas. E da antiquíssima chama que alimenta esta fogueira. E da insónia dos gestos. E do sofrimento das almas magoadas. E da violência dos crepúsculos. E a vida inquieta e inóspita vai-se afastando de nós. A erva cresce. A lareira espanta o frio. A bruma desfaz-se. Uma voz longínqua irrompe pelo meio do rumor da manhã. Trazes o copo cheio de gotas de orvalho que apanhaste das folhas da macieira. A noite foi de amor, com cheiro a feno e a rosas de verão. Seguir-se-ão as vindimas e o cheiro melancólico do vinho mosto. E depois a canção dos salmos febris. E também a ansiedade da sabedoria e as súbitas bebedeiras das promessas. E o tempo em cima de nós. E as nuvens a doerem-nos nos olhos. E os crisântemos a desfazerem-se. Gotas de amargura repousam nas pétalas precocemente velhas das magnólias. Tanto jardim para tão pouca beleza. O tempo fica mais íntimo, comovido até. As paisagens mais brancas e o veneno mais doce. Campos e campos de doçura. O melhor é levar o cálice da velha e eterna aliança para o frio da adega. As luzes começaram a escurecer e as vozes a moldar o silêncio. E o nosso olhar entre as giestas e os sonhos. As aves começam a deixar os montes. E com elas vai mais um pedaço de vida. E nós a segurar os lábios para não tremerem de emoção. O rio cresce lento como a morte. Distraio-me com os campos de centeio e milho.

27
Nov23

660 - Pérolas e Diamantes: Exageros

João Madureira

Apresentação3-2 (3).jpg 

Os exageros do liberalismo em certos países já provaram que não são medidas inteligentes pois tendem a criar um movimento inverso. E existem mesmo discursos contraditórios. Por exemplo, a nossa sociedade chegou a um ponto em que tentamos que nenhuma mulher seja prejudicada pelo seu sexo. Mas, paradoxalmente, também as apresentamos como extremamente vulneráveis. E isto provoca inquietação e desnorte. Muitas jovens que crescem em sociedades ditas liberais, em vez de ouvirem dizer que poderão ser aquilo que quiserem, escutam o conselho de que devem ter cuidado com o lobo-mau, para estarem vigilantes no meio da floresta, porque a floresta é o mundo dos homens. Provavelmente não é a melhor maneira de criar raparigas livres e saudáveis. Existe uma extensa literatura de marxistas e pós-marxistas que é frontalmente explícita sobre o que está a acontecer. Os seus defensores, organizados em estruturas partidárias, afirmam que a classe operária não compareceu, ou desertou, da revolução, daí a necessidade de descobrir e integrar grupos minoritários de novo tipo para as pessoas se agregarem à sua volta. Nomeadamente, grupos sexuais minoritários, mulheres e grupos raciais também minoritários. Isso tornou-se demasiado explícito na luta política atual. Estes “revolucionários” de novo tipo acreditam que conseguirão formar uma ampla coligação de grupos diferentes – gays, mulheres e minorias raciais – e a partir desse núcleo organizarem a sociedade, ou, pelo menos, uma espécie de rebelião permanente, de modelo trotskista. Este tipo de “movimento revolucionário” começou nas universidades, onde alguma gente tem muito tempo livre. Então criaram uma coisa que é uma espécie de disciplina “não-disciplina”. A verdade é que não se trata de um qualquer derivado da ciência, mas de uma coisa que eles apelidaram de “ciências sociais”, em relação às quais a verdadeira ciência é profundamente cética. Este tipo de ciências não são rigorosas, nem demonstráveis. São literatura. Por isso é possível até construir uma carreira, fazendo asserções que nunca é necessário provar. E, o que é ainda melhor, também não podem ser desmentidas. Os liberais, bem vistas as coisas, andam a arranjar lenha para se queimarem. Quanto mais as pessoas sentirem que não podem dizer o que pensam mais provável é votarem em alguém que diz disparates. Quando alguém fala para uma plateia de gente sem emprego ou a passar fome e apenas se foca nos direitos dos trans, dos negros ou das trabalhadoras do sexo, o mais provável é que os votos na extrema-direita cresçam de forma exponencial. Houve um tempo em que ser gay era ilegal. Atualmente, não só é ótimo como é visto como a melhor condição social. Isso é ridículo. Eu sou pela igualdade, mas isso não o é, com toda a certeza. Pode parecer provocador, mas todos sabemos que as mulheres estão sempre mais próximas do feminismo quando são novas. Com o passar do tempo, essa ideia “revolucionária” começa a esmorecer. Também os gays, quando envelhecem, vão deixando de se entusiasmar com os desfiles do “seu” orgulho. Todos acabam (acabamos) por concluir que são como toda a gente. Nas campanhas eleitorais é frequente ouvir eleitores afirmarem que gostam de um determinado candidato, ou candidata, porque defende as mulheres, os gays, os negros ou outra coisa qualquer do género. Deixando secundarizadas as questões da competência. Por isso é que, cada vez mais, a política é o reino da incompetência e dos incompetentes, do fogo fátuo. Votar numa pessoa porque é mulher, gay, ou negra, é um argumento perto do vazio. Levando este tipo de argumentação a sério, qualquer dia o candidato perfeito do liberalismo, para combater o trumpismo, o bolsonarismo e o venturismo, apenas pode ser, ao mesmo tempo, mulher, gay e negro. Provavelmente essa passará a ser a santíssima trindade dos liberais, sobretudo de esquerda.

23
Nov23

Poema Infinito (689): A carta

João Madureira

IMG_4383 - cópia 4 (8).jpeg 

Uma velha carta repousa na mesa estranha, à luz do candeeiro. Anoitece. Sente-se o cheiro das glicínias e do fumo da lareira. As primaveras são como metáforas precoces. Alguns vaga-lumes vieram visitar-nos. Provavelmente estou no meio de um baile. Os corpos ganham ritmo, entre o divertido e o agitado, entre o espirituoso e o insistente. Sobressaem os fragmentos, as sequências e os refrões. Não é a música a desencadear a dança, mas a dança a música. Esboços de sons, confirmação de ritmos. Danças. Dança de rostos murchos, dança da vulgaridade do quotidiano, dança do delírio, dança da monotonia. Meia dúzia de sons felizes. Corpos agitados que se estimulam uns aos outros. Gotas de água deslizam pelos vidros das janelas. Aparece então sobre um deles uma forma de contornos indecisos, esboçando lentamente um rosto. Humano. Identifico dois olhos espantados. O tempo dilui os seus traços. Depois da confusão das pessoas, surge a confusão dos objetos. Alguém cobre o rosto com as mãos. A angústia e o desprezo vão-se volatilizando. O silêncio ficou descontrolado. A loucura fecha os olhos. Dentro, Pessoa bebe absinto e Natália Correia fuma pela sua cigarrilha. Não sei se chegarão a dançar. Ela diz: “As trevas da ignorância são piores do que as trevas da Idade Média.” Fernando Pessoa encolhe os ombros e bebe mais um pouco de absinto e amargura. Depois dedica-se a desenhar mais uma carta astral. Natália Correia põe a sua mão direita no oculto e, munida de um alguidar com água e um pêndulo, desloca-se pela casa perscrutando as energias positivas, procurando o ponto nevrálgico da casa. Dizem que os poetas conseguem ver através das paredes sujas. Aqui, mesmo sem rimar, tudo rima: os avós, os tios, o pai, a mãe, tudo a eito pela árvore genealógica. Escuto o barulho de água da fonte, o murmúrio da tarde até ao crepúsculo, as ausências. A claridade pode crescer de outra maneira. O horizonte espera sempre por si. O silêncio acompanha as sombras. O viajante constrói o caminho, retoca alguns passos. A memória acabará por inquietar o frio que revelará o destino. Escrevo uma segunda carta, com a memória em sangue. Tento recuperar a esperança, a divina perturbação de um início. São palavras de dor e de amor, palavras que estremecem como os dentes-de-leão. Lá fora, o vento frio puxa o pelo dos animais. Apoio o olhar na lente dos óculos. Visto daqui, o nevoeiro parece um oceano sinistro. Bebo os pequenos barulhos que se movem pelo ar. Reparo na frágil espessura das minhas mãos, nas veias que parecem raízes, no escuro traçado pelo horizonte. Movo os lábios no sentido de um beijo. O passado derrete-se como a cera de uma vela acesa. Deus parece um pavão exibindo a sua cauda. A cúpula da igreja e os telhados das casas emergem da névoa noturna. A memória mistura rostos e sons. Vozes. O medo cresce dentro das sombras. O medo é uma obsessão. Amanhece devagar. A solidão invade a casa. A solidão a vergar a luz, a aderir à memória, a definir o abandono. Os insetos fazem vibrar a luminosidade impercetível e as frações dos segundos. A noite definiu o reflexo da paixão e a sua ausência. Sinto o meu próprio corpo como se fosse outro. A vida estremece. As palavras criam a sua própria realidade, escondem o medo. Escondem-se como se fossem rostos atrás de máscaras. A carta fica a meio de ser escrita. 

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