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Ainda me lembro de me esconder na quietude da aldeia, de ouvir o sonoro canto do galo atravessando o ar límpido da manhã e de o pai acariciar o focinho atento e bonacheirão do cavalo preto do tio Esgaça. E também me lembro da cabana no extremo da localidade, na orla do bosque, onde a avó ia apanhar lenha seca ou níscarros. E eu a errar entre as árvores e a abraçar os seus troncos. A primavera exortava à clemência. Os pardais chilreavam ensurdecedoramente. A força do verde das folhas era poderosa. Era o tempo da guerra colonial. Alguém andava a espalhar brasas pelo país. A sensação de vazio era quase insuportável. Portugal estava em dúvida e em autodepreciação. Diziam-no surpreendentemente enorme, mas era pequenino. A sua biografia era ridícula e trágica, repleta de fraquezas, neuroses e dúvidas. O céu tinha a cor do drama. Uns a viverem a absoluta simplicidade das coisas. Outros a tentarem justificar o injustificável. A apregoarem que amar o país resultava do efeito de treino. Matar era um eufemismo. A satisfação do combate e da glória fazia parte da narrativa dramática. O arrependimento causava dor. A realidade começava a devorar tudo à sua volta. As sombras estavam plantadas por todo o lado. Estávamos sempre a ser vigiados. Eles estavam sempre por perto, mesmo disfarçados de vizinhos. Em sociedades assim há sempre muitos imitadores. Passavam a vida a amedrontar-nos. Vivia-se no meio de panegíricos e de verdades ilícitas. As notícias transformavam-se em rumores e os rumores em notícias. Com tudo isso se intimidavam as pessoas. O melhor era evitar chamar a atenção sobre si, esconder-se e ficar calado. Fazer de morto. A opinião pública era um sussurro. Apenas se podia rezar em voz alta, dentro da igreja. A polícia política disparava sobre a poesia, a prosa e a própria verdade, apelidando-a de mentira. E levava as pessoas e até a sua própria sombra para os interrogatórios. Os jovens iam para a guerra com olhos tímidos e sorridentes e vinham de lá com eles esbugalhados. Enlouquecidos. O país estava contaminado com a mania da perseguição. As verdades diziam-se com sussurros. O medo era constante. Era preciso trabalhar, dizia o ditador. Todos deviam ter cautela com aquilo que se dizia. A cautela fazia parte do medo e era feita a tal nível que a necessidade de vigilância individual era dispensável. Os portugueses vigiavam-se uns aos outros com assinalável êxito. Todos os caminhos iam dar a lado nenhum. Era um país triste, de denunciadores. Era necessário evitar contar piadas. Tudo estava em ordem: os maus na prisão, os rapazes a defenderem a fé e o império, as mulheres a pôr a casa em ordem: panelas, roupa interior, os livros religiosos, as ave-Marias. E os homens nos seus modestos trabalhinhos a ganharem para a sardinha para três e para as arganas e a pele do bacalhau com que se dava sabor às batatinhas. As pessoas, na rua, costumavam recuar em vez de avançar e tendiam a meter-se dentro das suas conchas e a esconderem os seus sentimentos. Era o país das Mil e Uma Noites sempre com um padreco a contar a mesma história. Era um país do medo, mas o medo e a esperança, por incrível que pareça, estão interligados. Quem tem medo, grita. Era necessário gritar. O silêncio, esse, aquele, era um verdadeiro crime contra a humanidade.
O sonho e a realidade
Quando era criança sonhava ser bailarino. Era uma aspiração bizarra em mim, já que não consigo sequer dançar o baile dos passarinhos, pois tenho pé de chumbo, ouvido de mercador e sofro da síndrome de timidez introspectiva anti-social. Mas, como ia dizendo, quando era pequeno sonhava muito e mal, como se vê. Sonhava também em ser pintor ou escritor ou agricultor. Sonhava muito em ser agricultor. Mas não era um sonho romântico, como à primeira vista pode parecer. Sonhava ser, não um agricultor à maneira dos meus avós, mas antes um agricultor abastado, com muitos e muitos e muitos hectares de terra, metade sequeiro e outra metade regadio, uma grande floresta, pastos, e até rios para os animais poderem beber à vontade. Queria ser o que hoje conhecemos com um agricultor tipo CAP, que é um agricultor rico, estudado, bem-falante com o seu escritório repleto de projectos financiados pela Europa, ou pelo Estado Português, pois para o dito tanto monta. Nas minhas fantasias cheguei mesmo a misturar o sonho de ser bailarino com o de ser agricultor abastado. Quando misturava os sonhos via-me a dançar como um cossaco em grandes festas rurais, para espanto dos aldeões, da minha criadagem e, até, para espanto do gado, especialmente do mais chegado, como os cães de caça, os cavalos de trote e os de corrida. Sim, cavalos de corrida, porque sonhava que tinha vários cavalos que ganhavam todas as corridas em que participavam. Mas eu, generoso como me sonhava, distribuía os prémios pelas instituições de caridade, obras de cariz social, apoio à ciência, aos ecologistas e às associações de defesa dos animais desvalidos, abandonados e carenciados e das plantas em vias de extinção. Nunca nos meus sonhos me vi a financiar a política ou políticos porque, os que então conhecia, eram, ao contrário dos de hoje, verdade seja dita, homens pouco sérios, ambiciosos, aldrabões compulsivos e demagogos inveterados. Naquela altura ainda as mulheres não se metiam nessas aventuras. Tinham mais que fazer. No meu sonho também organizava sumptuosos bailes clássicos, onde tudo vinha vestido a rigor e onde eu me encontrava, por genuíno imprevisto do destino, com uma princesa russa empobrecida, ou outra no género, vítima da fúria revolucionária dos maçons, bolcheviques, ou de ambos ao mesmo tempo, mas linda de morrer, por quem eu me apaixonava perdidamente, bem assim como ela por mim, e onde a própria me fazia declarações de amor na sua língua materna, traduzidas pela sua querida e estimada mãe, que era uma santa, mas que tinha sido violada pelos malditos revolucionários quando cantava ópera numa festa de aniversário do seu querido esposo, um rei honesto, intrépido, sereno, valente, sábio, poliglota, amante da arte e da agricultura e, curiosamente, também ele bailarino de grande talento… Depois acordava do sonho e ficava tão arreliado com a realidade que, mais tarde, me transformei num revolucionário e fui pérfido durante algum tempo.
Conversa captada por uma antena parabólica entre o Senhor e um pardal
– A maioria das pessoas limita-se a procurar a beleza em vez de criá-la.
– Piu, piu, piu, piu, piu.
– Olha à tua volta. Até eu já duvido que a beleza se encontre na natureza, da mesma forma que a verdade se encontra afastada da vida.
– Piu, piu, piu, piu, piu, piu, piu.
– Tens razão. Verdade e beleza são criações do próprio Homem.
– Piu, piu, piu, piu, piu, piu, piu, piu, piu.
– Tu estás mais velho, quer dizer, cresceste!
– Piu, piu, piu, piu, piu, piu, piu.
– Andas a ler romances?
– Piu, piu, piu, piu, piu.
– É estranho, isso de ler romances. Depois as pessoas passam a vida a perguntar umas às outras: já leste este? Já leste aquele?
– Piu, piu, piu, piu.
– Só Deus Meu Pai sabe o que estás para aí a dizer!
– Piu, piu.
– Então piu para ti também.
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