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As pessoas vestem-se agora de interlúdios. Caminham resguardadas do sol. Os seus rostos parecem máscaras kabuki. Rezam vitupérios de raiva como se o mundo estivesse para acabar. As suas inflexões são frias e terríveis. Parecem crianças sem infância. Passam por metamorfoses regressivas até serem larvas de novo. Carregam o velho ainda em novas. Memórias irreconhecíveis. Os sacrifícios deliberados são os mais apetecidos. Pobres crianças, nascidas e criadas no vácuo, mal pigmentadas, entre abstrações e sombras rosadas, entre obrigações e processos digestivos programados. Pálidas e sombrias, sentadas em bancos silenciosos. Ensinaram-lhes que o destino se pode virar contra elas. E a palidez. E as sombras. E até as abstrações coloridas. E que é cada vez mais difícil sonharem em jogar ao berlinde, ou ao botão. Todas a terminarem como haviam começado. Cheias de fúria implacável e insensível. E linhas de coisas inverosímeis começam a escrever-se: o cheiro das glicínias, os vaga-lumes, as compensações morais, as pilhas varridas pela ventania, a luz oblíqua, a sombra aprumada das cadeiras, o voo de expansão das aves, as mãos entrelaçadas, o anjo da salvação a afogar-se. E o esplendor da relva. E as lendas. Tudo à vista. Tudo encoberto. E ali estão inertes as inúteis porções de maravilha. O tempo progride em retas paralelas. Princípios definidos. Fins indefinidos. Todos possuídos por uma paciente e furiosa imobilidade. As caras fora dos corpos e dos lugares. Isto não é raiva, mas antes ânsia de fazer alguma coisa. O objetivo é o que menos interessa. Pensamentos a gritarem dentro de uma caixa de ressonância. Bem-vinda seja a transubstanciação dos egos. Espíritos inúteis dançando no meio dos jardins. Tudo a ser engolido pela buceta de Pandora. Génios e demónios à solta. Todos a lutar contra a velhice por meio de palavras. E o tempo a fugir-lhes por entre as mãos. São como crianças cheias de assombro e desespero. Alguém desenha rebanhos celestiais de serafins e querubins prontos para o sacrifico. É a encenação da deceção irónica do sofrimento. O céu também pode ser um inferno. A propensão para a graça pode ser uma desgraça. A ironia pode ser libertadora, mas também pode resultar em achincalhamento. As plumas dos quatro mosqueteiros começaram a descolorir e os seus sabres a enferrujar. Os heróis estão perdidos no nevoeiro e os deuses ficaram cegos pela monotonia e pela raiva. Roma já caiu e Jericó estremece antes de desabar. Todos a construírem a sua solitária apoteose. E ali estão agora juntos, cavalos, cães, homens e as suas respetivas armas. Todos juntos, mas separados apenas pela expectativas: uns são curiosos e os outros vingativos. Sempre assim foi o mundo. Ninguém foge ao seu destino por muito que corra. As exceções são agora a regra. A respiração evapora-se tenuemente na sala fria. E o velho José ali lívido à luz do luar. E ela, a Virgem, incandescente e rósea, mas sem réstia de calor espalhada pelo corpo. E os mendigos passeando com a cabeça inclinada para a frente a furarem o nevoeiro. Tudo isto se passa num tempo indefinido. Há quem tenha vergonha do amor. Provavelmente eu sou um deles. O céu pode ser uma leira de couves. Ou uma mãe a tratar do jericó. Ou o sabor ou o cheiro de um desejo. O mundo são as mães e os filhos por si gerados.
Todos nós fomos fogosos, odiosos, esperançados no futuro. Foi bonito e bom, esse tempo, enquanto durou, mas de pouco nos valeu. Líamos, antes de deitar, A Mãe, de Máximo Gorki, e ficávamos mergulhados em tristeza, cerrávamos os punhos de raiva e chorávamos verdadeiras lágrimas marxistas-leninistas. Depois tudo ficou kitsch e a metanarrativa progressista deu de si, como a pele quando envelhecemos. Tudo se transformou em rugas que nem o botox consegue disfarçar. A ilusão passou para o socialismo virtual. É tudo BD manhosa, heroic fantasy e jogos de computador. Apesar de não apreciar o kitsch, nem mesmo o de Pedro Almodovar ou do Goucha, não sinto verdadeira necessidade de troçar dele. No entanto, é necessário prestar muita atenção ao que se diz e escreve, para não hostilizar os bonzos do regime. Se pensarmos bem, tudo é kitsch, as emoções, a música, a arte, a própria literatura, a ação e a mesmíssima reflexão. Então da política nem é bom falar. Ninguém, absolutamente ninguém, nem comunistas ou fascistas, conseguiu transformar a energia revolucionária em força positiva. Daí o centro político (burguês por definição) se ter tornado balzaquiano. Depois de ler Lolita, empurrou o fetichismo para debaixo do tapete. Vícios privados, públicas virtudes. Por causa disso, por aqui andamos a cumprir formalidades, estabelecer contactos, fazer compras e a tratar da roupa. E também a ocuparmo-nos da saúde e a mantermos o corpo em atividade. Por isso é que o SNS está a rebentar pelas costuras. A partir de determinada idade, viver passa a ser uma atividade maioritariamente administrativa. E porque as conversas sobre sexo acabam por ser sempre um pouco grosseiras, o melhor é falarmos de política ou de coisas idênticas como, por exemplo, o show-business. Ou sobre microssociologia, mas para isso temos de escolher bem os interlocutores, senão a conversa pode descambar e acabar em pancadaria argumentativa. Pode não parecer, mas a província também tem os seus bonzos. A província também possui a sua própria metafísica. É bom recordar. Sim, é bom, mesmo que as recordações sejam em grande parte fabricadas, moldadas, ou mesmo inventadas. Recordamos o comboio a entrar ou a sair da estação, a ida às termas, as montanhas ao redor cobertas de neve, iluminadas e banhadas pelo sol, as pastagens e o rio cintilante, as encantadoras figuras femininas, as mães e as avós que usavam vestidos compridos, véus e lenços. Os homens cumprimentavam-nas, levavam a mão ao chapéu e sorriam. Todos, homens, mulheres, rapazes e raparigas, ostentavam um ar feliz. Aquele era o melhor dos mundos. Muitos adolescentes embrenhavam-se na coleção de selos ou herbanários. O mundo era limitado, atraente, e cheio de cores vivas. Estoiravam foguetes no ar e tocavam as bandas nos coretos. Havia até anjos nas clareiras e cães que ladravam aos homens maus e pecadores. Até se escreviam cartas de amor, com letra bem desenhada, onde pontificavam palavras refulgentes como “amor”, “bondade”, “felicidade”, “ternura”, “casamento”, “fidelidade” e “felicidade”. A verdade é que só nos apercebemos da felicidade quando a perdemos. Agora já não se trata de transformar o mundo, mas de torná-lo aceitável, transformando a violência, que está associada a toda a ação revolucionária, em riso. Isso é, pelo menos, aquilo que nos ensinam os bobos do regime, que ganham boa massa sob o disfarce de humoristas. Os bobos do regime são os máximos colaboracionistas do capitalismo, pois vendem-nos, com o seu sorriso pré-fabricado, tudo e mais não sei quê. Parecem enredos dentro de enredos, filmes dentro de filmes, bonecos dentro de supermercados. Aqui convém acrescentar certos tons schopenhauerianos para evocar o absurdo da nossa existência de bons selvagens dos supermercados e dos centros comerciais. Nós por lá à procura da boa carne embalada ao vazio, onde podemos ler na etiqueta: “Nascido e criado em Portugal. Abatido em Portugal.” A epidemia das “vacas loucas”, afinal, serviu para alguma coisa. Portugal moderniza-se a uma velocidade surpreendente. E por hoje é tudo. Vou até lá fora ver o sol que apareceu entre duas nuvens e a minha casa foi banhada, suponho, por uma luminosidade fulgurante.
Parece que o tempo começa a encolher sem razão aparente. Aparece. Desaparece. Desaparece e. Aparece. E eu a colecionar saudades. Esqueço a agressão, a indiferença, a hostilidade. O esquecimento. Sinto a parte terminal daquilo que é interminável. Durante a noite vi uma estrela cadente e pensei na avó. E ouvi os grilos. E depois os sinos. E os dias longos. E os pressentimentos. Com alguns passos hesitantes, atravesso a rua. Os objetos parecem fora de tempo. Declino como a tarde. Estendo a mão para os comprimidos. E para o copo de água. Afogo a dor enquanto olho para a mosca e para o seu zumbido. A sombra fatigada das casas desliza sobre o empedrado. O casario parece mudar de sítio. Pairo enquanto os brinquedos se desmancham no sótão. As luzes abafam-me. O frio roça a minha face. Confronto-me com a minha própria solidão. Esta calma é uma espécie de nada. Sono, pausa, síncope. Blocos de ar. É como sentir serenidade depois da violência. Lá fora, o ar transformou-se em lâminas de vento. A lentidão a engolir horizontes e a confirmar a paisagem familiar. Tudo parece estar intimamente ligado. O braseiro incandesceu. Ontem a lâmpada da sala rebentou por falta de uso. A mãe morde os lábios e rompe o silêncio. Chora. Sabe que não vai voltar. Depois cala-se. Todos acabamos por nos conformar. Tanto os sábios como os cretinos. Não foi a mãe que enlouqueceu, foram os outros. A mãe sempre desconfiou das histórias. Dos outros. Recupero a calma. O pai nunca mais vai voltar da taberna. Nem ele, nem os amigos. Nunca mais. A mãe morde os lábios e rompe o silêncio. Chora. Sabe que nunca mais vai voltar. As histórias são armadilhas. O pai era um grande mágico capaz de construir castelos com o fumo dos seus cigarros. O pai tinha ainda a grande virtude de tirar significado às coisas, sobretudo às que abusavam dele. A mãe gritava palavras. O pai sussurrava-as. A avó silenciava as que se lhe metiam pelo corpo dentro. Já a mim, as palavras dos santinhos, junto com as da cartilha maternal, atiraram-se-me aos olhos, todas de uma vez. Então comecei a ler. Junto com o oxigénio, comecei a respirar palavras. E ainda ali estão elas, as contradições, nas estantes da biblioteca: a sinceridade, o cinismo, o misticismo, o paraíso, o inferno, deus, satanás, a sensualidade, a bestialidade, a pureza. Tudo ao mesmo tempo ou em momentos diferentes. Tudo. Quase tudo. Quase nada. E a luz a incidir sobre a poeira. Tu és pó e a ele vais tornar. E a luz a incidir sobre a poeira. E a poalha a entrar-me pelos olhos dentro. E eu a observar os indícios. Lá fora ladra um cão. Várias pessoas tentam mastigar algumas palavras duras. A sua voz é mansa. É da idade. E golpeiam com o olhar os rostos mais expressivos. Há feridas que levam uma vida a cicatrizar. As sombras estão agora do lado errado. Algumas desenvolveram a estranha arte de fazer parar momentos. E as cores a desfazerem-se e a aderirem aos objetos. Sinto o cheiro da fruta e o da terra molhada. Vejo passar o vento e entretenho-me a observar o balanço das folhas. E as sombras das árvores a alongarem-se com o sol. Os desenhos das folhas reproduzem-se até ao infinito. Cada folha é diferente, cada instante é diferente, cada pessoa é diferente, apesar de sermos todos iguais. Então, no meio desta confusão quase inerte, penetra o silêncio e a solidão transforma-se numa estátua.
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