Poema Infinito (706): Alguém estragou isto tudo
Já foi encontrado o coração negro do mundo. Mas ainda ninguém encontrou o Criador. Apenas a energia. A energia está espalhada por todo o lado. Não existe Deus que tenhamos de seguir ou Demónio que temer. Os descrentes argumentam que ou Deus está disposto a pôr fim ao mal, ou não está. Ou melhor, dizem que ou Deus é capaz de travar o mal, ou não é. Ninguém gosta de gritos. Nem de almas atónitas. Nem de quem argumenta contra a luz. Nem de causas perdidas. Nem de boas intenções. Os idosos brincam. As crianças parecem assustadas. Epicuro argumentava que Deus ou era impotente ou malvado, pois se, como dizem, está disposto e pode travar o mal, qual a razão invocada para não o fazer? Existe ainda outra possibilidade. E não é a da sua ausência. Nem a da sua distração. Deus é, pura e simplesmente, incompetente. Pode estar disposto a impedir o mal, pois possui esse poder, mas é um ser muito desorganizado. Chega sempre atrasado aos seus encontros e é incapaz de estabelecer prioridades. É autista. Sente-se agora a energia entre o alfa e o ómega. O universo não distingue entre aquilo que é positivo e aquilo que é negativo. Tens a certeza? Tenho a certeza de que não existe nenhuma ordem no universo. Só ausências e vazio. Horizontes e vácuo. Desde sempre e para sempre. Sentem-se palavras amargas e doces, olhares petulantes, ofensas, críticas, coisas ocas. E energia. Estamos sentados no meio das sombras a respirar o vazio. E a escutar sussurros escuros. E vozes incógnitas a multiplicarem-se. Os que se afastam das sombras bloqueiam as portas de entrada. Ou de saída. Alguém estragou isto tudo e não necessitou de ajuda. É difícil distinguir as expressões dos orgasmos das de dor. Mas todos sabemos que são coisas diferentes. A criação da Babilónia foi premeditada com uma intenção demoníaca. Daqui vê-se o vapor quente e insondável. Eu desvio o olhar do céu azul nublado. Igualo a respiração do Cristo martirizado. Nos sonhos, as pessoas nunca são quem parecem. Na vida real acontece a mesma coisa. Aqueles que se vão embora sem avisar não têm o direito de fazer as vezes de heróis. Fica bem sairmos do mundo dos sonhos da mesma forma que entrámos. Os espíritos que se deslocam dentro dos sonhos têm os olhos cintilantes e distintas formas e tamanhos. Há sempre coisas para fazer, a maioria delas inúteis. Os demónios possuem sempre um chefe qualquer. Os néscios estão sempre a dar guarida à desilusão. Ninguém nasce demónio. Espreita-se pelo buraco do tempo e não se veem respostas. Apenas almas solitárias. O vento tanto leva como traz a tristeza. Nada que nos surpreenda. São raras as almas que honram as promessas. A noite vai avançando. A noite está inquieta. Até a desilusão exige perseverança. Os dedos do Criador estão cheios de artroses. Os humanos estão pregados ao chão de olhos fixos no céu. E Nele. Alguns vociferam. Nem os anjos conseguem voar. As suas asas pesam como chumbo. Alguém faz perguntas para as quais não existem respostas. Deus arma a sua cauda de pavão, assustando por momentos a serpente do mal escondida no meio da erva. Um casal de primatas acaricia-se sem jeito nenhum. O amor está lá todo, falta-lhes a pose. Foi nesse dia que Ele criou o ornitorrinco e o pangolim. Estava mal-humorado por causa das dores nas articulações. A fotografia de um progrom abre a exposição. Alguns humanos têm alma. Liberté, egalité, fraternité. Tudo no céu é muito lento e atrasado. É o costume. C’est magnifique.