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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

21
Mar24

Poema Infinito (706): Alguém estragou isto tudo

João Madureira

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Já foi encontrado o coração negro do mundo. Mas ainda ninguém encontrou o Criador. Apenas a energia. A energia está espalhada por todo o lado. Não existe Deus que tenhamos de seguir ou Demónio que temer. Os descrentes argumentam que ou Deus está disposto a pôr fim ao mal, ou não está. Ou melhor, dizem que ou Deus é capaz de travar o mal, ou não é. Ninguém gosta de gritos. Nem de almas atónitas. Nem de quem argumenta contra a luz. Nem de causas perdidas. Nem de boas intenções. Os idosos brincam. As crianças parecem assustadas. Epicuro argumentava que Deus ou era impotente ou malvado, pois se, como dizem, está disposto e pode travar o mal, qual a razão invocada para não o fazer? Existe ainda outra possibilidade. E não é a da sua ausência. Nem a da sua distração. Deus é, pura e simplesmente, incompetente. Pode estar disposto a impedir o mal, pois possui esse poder, mas é um ser muito desorganizado. Chega sempre atrasado aos seus encontros e é incapaz de estabelecer prioridades. É autista. Sente-se agora a energia entre o alfa e o ómega. O universo não distingue entre aquilo que é positivo e aquilo que é negativo. Tens a certeza? Tenho a certeza de que não existe nenhuma ordem no universo. Só ausências e vazio. Horizontes e vácuo. Desde sempre e para sempre. Sentem-se palavras amargas e doces, olhares petulantes, ofensas, críticas, coisas ocas. E energia. Estamos sentados no meio das sombras a respirar o vazio. E a escutar sussurros escuros. E vozes incógnitas a multiplicarem-se. Os que se afastam das sombras bloqueiam as portas de entrada. Ou de saída. Alguém estragou isto tudo e não necessitou de ajuda. É difícil distinguir as expressões dos orgasmos das de dor. Mas todos sabemos que são coisas diferentes. A criação da Babilónia foi premeditada com uma intenção demoníaca. Daqui vê-se o vapor quente e insondável. Eu desvio o olhar do céu azul nublado. Igualo a respiração do Cristo martirizado. Nos sonhos, as pessoas nunca são quem parecem. Na vida real acontece a mesma coisa. Aqueles que se vão embora sem avisar não têm o direito de fazer as vezes de heróis. Fica bem sairmos do mundo dos sonhos da mesma forma que entrámos. Os espíritos que se deslocam dentro dos sonhos têm os olhos cintilantes e distintas formas e tamanhos. Há sempre coisas para fazer, a maioria delas inúteis. Os demónios possuem sempre um chefe qualquer. Os néscios estão sempre a dar guarida à desilusão. Ninguém nasce demónio. Espreita-se pelo buraco do tempo e não se veem respostas. Apenas almas solitárias. O vento tanto leva como traz a tristeza. Nada que nos surpreenda. São raras as almas que honram as promessas. A noite vai avançando. A noite está inquieta. Até a desilusão exige perseverança. Os dedos do Criador estão cheios de artroses. Os humanos estão pregados ao chão de olhos fixos no céu. E Nele. Alguns vociferam. Nem os anjos conseguem voar. As suas asas pesam como chumbo. Alguém faz perguntas para as quais não existem respostas. Deus arma a sua cauda de pavão, assustando por momentos a serpente do mal escondida no meio da erva. Um casal de primatas acaricia-se sem jeito nenhum. O amor está lá todo, falta-lhes a pose. Foi nesse dia que Ele criou o ornitorrinco e o pangolim. Estava mal-humorado por causa das dores nas articulações. A fotografia de um progrom abre a exposição. Alguns humanos têm alma. Liberté, egalité, fraternité. Tudo no céu é muito lento e atrasado. É o costume. C’est magnifique

 

 

18
Mar24

674 - Pérolas e Diamantes: A luta continua

João Madureira

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Por vezes somos dominados pelo cansaço. E também porque a luta continua. Provavelmente não. O diabo do escapismo sempre a sussurrar-nos ao ouvido. E nós a tentar diferentes tentativas de fuga à missão. Impossível. Pobre é o escritor que se deixa aprisionar pelas suas próprias palavras. Eu não desconfio delas. Desconfio é daqueles que lutam sobretudo com a forma, sobrestimando tudo o resto. Quem se esconde atrás da forma é porque desconfia das palavras. A temática sexual é geradora de desconfiança. A arte acontece entre pessoas concretas, necessariamente imperfeitas. Bendita arte. A literatura tipicamente sedutora, tende a ser pedagógica, por isso não inspira confiança. E é desnecessária. A má arte, por incrível que pareça, é sempre a mais representativa da pátria. A beleza tem os seus mistérios. Que beleza de nação cheia de gente que gosta de passarada, especialmente da de comer. E de bolachas Maria para embeber no café com leite. E de animais de estimação, sobretudo cães e gatos. E de porquinhos mealheiros. E de peixinhos vermelhos a nadar em círculos dentro de aquários minúsculos. Gente que gosta de sonhar acordada, escrever poesia romântica, doar sangue e falar impecavelmente línguas europeias. E que se pela por derramar teorias sobre a qualidade, ou a falta dela, do treinador da sua equipa de futebol. Que aprecia sentir as brisas a soprar nas esquinas e que adora o verão de São Martinho, castanhas e vinho e de contar pela milionésima vez a lenda do tal legionário romano que ofereceu metade da sua capa a um mendigo enregelado. Gente que se atrapalha com os números, com os sinais diacríticos, com os presságios, com as miríades, as complexidades estatísticas e os palimpsestos das aventuras numéricas das outras gentes. Esta é gente que se orgulha de gostar muito de caldeirada. Daí teorizar misturando aspetos sociológicos, antropológicos, metafísicos, éticos, religiosos, filosóficos, culturais, musicais, intelectuais, poéticos, artísticos, históricos, militares, judicias, ambientais, políticos, raciais, morais, futebolísticos, físicos, musculares, ginecológicos, prostáticos, dentários e até urinários. O que esta pacífica gente mais gosta de fazer é comer, beber e jogar às cartas. Gosta também de regressar a casa, de visitar a família e de convencer a vizinhança de que a sua vida é um sucesso. Durante as festas dos povos, agora deu-lhes para se enfiarem dentro de sacos de serapilheira, calçar sandálias mal-amanhadas feitas por artesãos de cacaracá, colocar uma espada de madeira à cinta e representar o papel de um lusitano que nunca existiu, a não ser na imaginação da rapaziada mais pândega. A peroração dos adeuses é que é o cabo dos trabalhos. Parece a história interminável. Estas pessoas gostam de fugir umas das outras, apesar de dizerem o contrário. Neste país de poetas, a poesia não se consegue concretizar. É ineficaz. Apesar de apesar… a estupidez é descarada, as pessoas são melodramáticas, tendem sempre para o sentimentalismo, para o phatos, para a palhaçada. Esta gente, esta gente indominável, momentos antes de alcançar o cais de chegada, apenas pensa no ponto de partida. Ora isto é saudade. Quando agora se olha para o céu, a tonalidade que se percebe é a de um azul reciclado. Atualmente é tudo reciclado. Até a bondade. E a mesmíssima liberdade. Ora isso faz com que toda a gente ande ligeiramente intoxicada com salmonelas e seja alérgica a leituras e a discussões literárias. Tantos anos de escola e de universidade e não se consegue arranjar emprego. Apesar disso, fico entusiasmado só de pensar no futuro. Quando forem velhos vai ser fantástico. Logo é que vai ser divertido, uma chuva de meteoros. E memórias. E chupa-chupas. E cromos de futebol. E ler duas páginas do Astérix na revista Tintim. Para o Tintim, propriamente dito, já não há pachorra. E depois a solidão e o silêncio. Ou outras coisas simples que me levam de volta ao tempo antigo. Mas não é apenas isso. A vida é bela se insistires. As saudades que eu já tinha da minha alegre casinha tão modesta… Já não há pachorra. Este porreirismo nacional vai dar cabo de nós.

14
Mar24

Poema Infinito (705): Os proletários

João Madureira

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Os proletários continuam a subir aos céus. O seu brilho é ofuscante. Conseguem, com muito esforço, manter a cabeça ereta. Homens e mulheres de todas as raças, ascendem nus e olham para os seus sexos como se estivessem ali a mais. São anjos feitos de ferro, potássio, cálcio, sódio. Só mais um esforço e logo terminarão a tarefa. Acabaram os prelúdios, basta abrirem a boca para conseguirem gritar a sua gramática operária. Sentem-se, por breves momentos, mais sintáticos, mais económicos, mais sociais. Mas menos humanos. Durante séculos muitos foram irmanados com as pedras no fundo das minas, outros dedicaram-se à cerâmica e transformaram o barro em pratos e faianças e jarras ou noutros artigos mais ou menos admiráveis, baratos ou caros. Os mais intrépidos e corajosos fizeram chispar os infernos nos estaleiros de aço, fazendo ou desfazendo navios. Sobre o lado esquerdo do céu, sobem numa espécie de torre de refrigeração de uma central nuclear, os operários fabris, comerciais e bancários, acariciando o ferro, as pedras, a madeira, o plástico, o algodão, a lã e o papel impresso. Outros leem ainda Platão, Aristóteles, Hegel e Kant, ou transportam debaixo do braço telas pintadas. Tudo a subir aos santos céus: a cultura, a política, a civilização, os estados, as fronteiras, as catedrais, o ouro, o incenso e a mirra. Tudo a balançar, a oscilar, a palpitar, a crescer e a mingar. Todos a contar os minutos, as horas, os dias e os anos como se estivessem a rezar o terço. Lá em baixo, os que ficaram continuam a calcular, a repartir, a cortar e a recortar, a embalar e a expedir os excedentes pelos comboios, pelos cargueiros marítimos, por aviões, por camiões e a fazerem as últimas ligações por faxes, telemóveis, correio eletrónico e embrulhos almofadados. A incerteza cresce, oscila e balança. Os homens e as mulheres continuam a transformar-se em barro. Todos dentro do sonho, acariciando-se e abençoando tudo. As aparições tocam o sol e as máquinas aveludadas, aflorando os corpos, tateando a alegria e a noite que se faz dia e as bocas beijam-se como se fossem murmúrios. Tudo se move lentamente para a frente e para trás. As cabeças inclinadas, choram sobre os seus próprios corpos. Tudo continua a subir devagar. Sobretudo os anjos proletários. O ar vibra mais onde o sol cai a pique. Os romeiros de Canterbury continuam a ser os cães fidelíssimos de Deus, deixando dedadas de sangue nas paredes dos prostíbulos. Querubins epiléticos fazem pela vida. Construções líquidas sobem no ar, libertando-se da solidão. Turbas de eunucos empurram o céu até ao inferno. Deus faz que dorme. Muitos podam a árvore do mal, proletários e burgueses, cristãos, islamitas e ateus. Todos agnósticos à sua maneira. Ainda não se sabe se são pessoas ou fotografias. Tudo acabará por arder antes do juízo final. Tudo o que fomos e aquilo que fizemos se transformará em poeira. O recolher obrigatório ainda decorre. Há sempre espaço no céu, mas de pouco serve. Como ninguém lá pode construir, não tem valor nenhum. Os homens e as mulheres que usam máscara sorriem sem que se veja. Alguém tem de o fazer. Uma ambulância da Cruz Vermelha choca de frente com outra do Crescente Vermelho. Não há feridos. Apenas mortos.

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