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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

11
Mar24

673 - Pérolas e Diamantes: Ainda me lembro...

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 2 (1).jpg 

Ainda me lembro quando me deitava a ler Dostoiévski. Dessas noites frias. Dessas noites brancas. Dessas noites em branco. Foi um dos primeiros atos deliberados e conscientes que ajudaram a definir o meu mundo. Foi como se a Terra tivesse parado. Engoli muita daquela prosa inquietante em grandes tragos. Foi a primeira amostra que eu tive da alma humana. Dostoiévski foi o primeiro escritor a revelar-me a sua alma, se é que teve apenas uma. Provavelmente eu já seria um rapaz um bocadinho estranho, mas com Dostoiévski tornei-me decidida e irremediavelmente um ser excêntrico. Esses acontecimentos são, provavelmente, irrevogáveis. Senti-me então só no mundo. A solidão atingiu-me como um tornado. Senti-me estranho no meio da minha própria gente. As vagas de solidão continuaram a atingir-me como se estivesse a nadar numa praia de literatura. Tudo doido e eu, cansado, a tentar lutar contra o meu mundo. Entre o tudo e o nada. Os meus sonhos passaram a ser como metamorfoses. Sonhos e mais sonhos. Sonhos dentro de sonhos. Nunca pude jogar o jogo dos snobes. Nunca o fui e nunca o serei. Nunca frequentei esses meios. E a dita sociedade entedia-me e chega  a provocar-me enjoo. Aos poucos lá fui à razão. Nós somos a obra-prima do absurdo. A nossa loucura não tem pretexto, pois provém do contexto. Apesar das revoluções, e de outras traições (tradições?) históricas, ainda se continua a rezar a ladainha dos apelidos sonantes. Pois por aí continuam os mitos, as hierarquias, as honrarias. E as subserviências. E as “monarquices”, essa literatura de pechisbeque, essa mitologia imatura, esse snobismo desprezível, esses preconceitos ridículos. A estética é ruim e o encanto duvidoso. Apesar da aparência de modernidade, tudo isto tresanda a mofo. Eles gostam de interpretar o presente com os olhos do passado. São álbuns de outono com folhas secas. Essa gente gosta de pensar que nada mais nos resta do que nos embebermos com o perfume subtil das recordações, com bosques onde cantam rouxinóis antigos. Apesar dos disfarces, sente-se a esfinge da morte lenta e da impotência. As formas são sagradas, não Deus. O seu crepúsculo nem sequer é historicamente justificado. O jogo deles é cantarem para os outros os admirarem. Está na hora de revermos até os lugares-comuns. Não é a velha história que tem de nos impor o futuro. Temos de ser nós próprios a criá-lo. As pessoas sérias não se prestam a papéis de figurantes. Eu, por causa das coisas, cá continuo a escrevinhar. Os sapatos de molde antigo são-me sempre apertados nos pés, fazem-me calos. A mediocridade, por cá, é excessiva. E isso eu não consigo compreender. Eles sempre a declamar as imortais lapalissadas. E lá vamos celebrar porque todos celebram e mentir porque todos mentem. Dizem que a culpa não é das pessoas, mas das situações. Será? Ser e não ser faz parte da mentira. Da dramaturgia antiga. Estou em crer que Rabelais não tinha na ideia ser “histórico” ou “a-histórico”, nem sequer tencionava desenvolver uma “escrita absoluta” e muito menos prestar tributo à “arte pura”. Nem caraterizar a sua época. Resumindo, não revelava qualquer intenção, porque escrevia como quem se alivia. Malhava naquilo que o irritava, combatia quem se lhe metia no caminho, escrevia por prazer, para o seu prazer e para o prazer de quem o lia. Escrevia o que lhe vinha à cabeça. Apesar disso, ou por isso mesmo, expressou, melhor do que nenhum outro, a sua época e até pressentiu a época vindoura, criando uma arte pura e, por isso mesmo, eterna. Ao exprimir-se com inteira liberdade, condensava a essência eterna da humanidade e de si próprio, enquanto filho da sua época e profeta dos tempos vindouros. O conselho que ainda hoje mais me convence é: “Escreve o que te dita o coração.” Não devemos abdicar nunca da nossa própria verdade, pois de outra forma renunciamos provavelmente ao único heroísmo em que assenta o orgulho, a força e a vitalidade da literatura. Estou, estamos todos, já um bocado fartos de poetas que se dizem prosadores, de santos que se sentem rebeldes, de clássicos que dizem ser aparentados à vanguarda, de patriotas apátridas, de ativistas sociais que se identificam como eremitas. É uma perda de tempo andar a tentar explicar o óbvio.

07
Mar24

Poema Infinito (704): Saudade

João Madureira

IMG_4383 - cópia 4 (1).jpeg 

Este silêncio está um pouco embaciado pelo fumo do cigarro do pai. O movimento das suas mãos ajuda a disfarçar a surpresa na sua cara. Eu brinco com aviões de papel, na solidão instalada dentro de casa. Faço agora a travessia dos anos pelo meio do meu embaraço. E ainda pelo medo. Eu agora para aqui de olhos quietos deixando passar as horas de espanto. A música. A cintilação das estrelas. Lá fora as folhas de outono voam na direção do inverno. O pai a ir embora no velho comboio a vapor. E eu a ficar no frio. A lareira dos meus antepassados está apagada. O pai mexe com os dedos o seu cabelo penteado para trás. As memórias são como água pesada. Os olhos do pai foram sempre inocentes. Encerravam a mágoa do mundo. Algumas memórias são pontos de apoio. Outras são pura tristeza. Tristeza pura. A minha tristeza tem localização indefinida. A sua fotografia estremece nas minhas mãos. Choro como quando vi pela primeira vez o filme “Ladri di Biciclette”. Por vezes costumo rezar alguns dos seus diálogos em italiano, começando pelo nome. A minha bicicleta está no terraço. O pai já se foi há muito. Falo do que verdadeiramente me falta, porque o amo. E a mãe a levar-me de comboio para a cidade, no mesmo velho comboio em que foi o pai. E eu de nariz esmagado contra o vidro na carruagem. E a mãe a guardar as malas, os recados e a solidão. E a avó que ficou na aldeia com palavras poucas, com os potes ao lume, com os calos nas mãos, com o seu amor silencioso e sábio aconchegado dentro do coração. A chicolateira a fazer café ao lume, os potes a ferver, o cheiro a estrume dos currais e das terras. E o avô a sacudir os socos cheios de lama, a batê-los nas escadas. E o vento a soprar nas serras. E depois a luz a entrar pelas frinchas das paredes de madeira e a manhã a dançar e o galo a cantar empinando a cabeça na direção do céu azul. Cada cor tem o seu próprio movimento. A avó a chorar nos meus cabelos, a encher-me de beijos e a acariciar-me com as mãos engelhadas. Agora sou eu que me vou embora. O comboio apita, deita muito fumo e parte. A avó ali fica, vestida de preto a dizer adeus, embrulhada em tristeza. E eu a ouvir o estranho barulho cadenciado das rodas de ferro a passarem pelo intervalo dos carris, também com as lágrimas a sulcarem-me o rosto. A enfiar nos bolsos as mãos frias e alguns pedaços do adeus. E ela depois a voltar para a sua casa de pedras irregulares e de madeira mal aparelhada, para a sua cozinha com cheiro a lenha, fumo, batatas e couves cozidas e azeite a ferver na sertã. Agora sento-me nas pausas, enquanto escrevo. Quando a chuva é muita o sol é sempre pouco para a secar. Os velhos lugares parecem sonâmbulos. Tudo tão húmido como as lágrimas da avó. E as minhas. Apesar de nada já me surpreender, penso que ainda vivo na idade das surpresas. Com tanto ir e vir, perdi Deus pelo caminho, no meio da poalha húmida e da cortina das memórias. No meio dos labirintos anónimos. As memórias estão tão afiadas que cortam como navalhas. E as horas a ficarem mais lentas, mais tristes, mais fechadas. Eles já cá não estão para amarem e serem amados. E eu a alinhar palavras já limpas de ilusão e de medo. Que raio de higiene! E de sufocação. O amor agora é muito mais lento. Perdeu a arrogância da ingenuidade. O meu coração está mais atento, mas também muito mais fraco. A esperança já não nos acena. E eu sempre a partir antes de chegar. Isto não tem saída. Isto não tem saída?

04
Mar24

672 - Pérolas e Diamantes: Excertos de Ulisses versus Alice

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 8 (3).jpg 

E diz o coxo do Nabokov, dando a mão a Lolita: “Vai lá rapaz, corre o que puderes, agora estás por tua conta, na vida ou se vence ou se perde, o resto não interessa.” Talvez o sexo, mas isso já são contas de outro rosário. Nem só os carros usam lubrificante. Crentes de todos os credos, uni-vos. Os profetas ou são uns fala-barato ou ilusionistas. Também eu aprendi a rezar na igreja e pratiquei o ritual, mas hoje reconheço que era bem melhor terem-me ensinado as ladainhas em linguagem gestual. Talvez o exercício de falar com Deus fosse agora diferente. Ele a rir-se por um lado. E eu pelo outro. Ele surdo-mudo e eu cheio de graça. Está cada vez mais difícil manter a paciência para a discussão religiosa. A superstição também é uma divindade. A Alice tropeçou no seu buraco e caiu redonda em cima do Coelhinho Branco. Coitado do láparo. A empregada doméstica portuguesa, com a sua mania de tudo limpar com Omo, fez do chão um autêntico ringue de patinagem. Madame B. lambeu-lhe a ferida com a língua com a intenção de limpar e curar a pele com a sua saliva. Dizem que tem propriedades bacteriológicas. Chegaram então os três reis do Oriente para visitarem o enteado de Dom Quixote. Doidas, doidas, doidas, andam as galinhas, para porem o ovo lá no buraquinho, raspam, raspam, raspam, para alisar a terra, bicam, bicam, bicam, para fazer o ninho. Assim falava Zaratustra. Pergunta o Embuçado: “Por que continuo a vestir este traje de serapilheira, como se fosse o arrependido facínora Dom Nuno Álvares Pereira?” Há perguntas que atormentam. Vai sendo cada vez mais difícil aturar tantos profetas. Moisés, Jesus, Maomé. Tanta religião para tão pouca fé. A verdade é que a Alice, do outro lado do espelho, brinca com as gatinhas, sobretudo com a preta que tem a culpa de tudo. A outra, que é branca, como não podia deixar de ser, ronrona de satisfação. Entretanto, a Alice para ali está, aninhada a um canto do seu grande sofá, meia adormecida e a falar consigo mesma enquanto a gata preta, a traquina, se ocupa muito a divertir-se com um novelo de lã que Madame B. enrolou pacientemente. Depois a gata branca começa a correr atrás da própria cauda. Entretanto, aparece Dom Camilo e dá um beijinho na Alice para a fazer perceber que está desgraçada, que não desengraçada. Faz parte do destino das heroínas sem propósito. Dom Camilo, com muito carinho e sentimento, vem devolver o livro que ela lhe emprestou. A Alicinha não sabe onde o colocar. A verdade é que esta casa anda de pernas para o ar. Dom Camilo diz: “Estou farto de tropeçar no teu buraco. E também no chato do teu Coelho Branco. Por que razão não lhe dás o destino devido?” Ela, colocando a gata no chão: “Por quem é, Dom Camilo, não o sabia tão insensível com os animais. Eles têm os seus próprios direitos. Especialmente esse bonito láparo, que é o meu principal conselheiro e o meu maior amparo.” “Coitada de ti, linda princesa, entregue nas patas de um coelho. A tua mãe não tem juízo nenhum.” “Olhe, Dom Camilo, vá dar a gorjeta ao cego Gaudêncio, pois enquanto não lhe pedir tréguas, ele vai continuar a tocar a mazurca Ma Petite Marianne até nos pôr a todos loucos. Ele pode ser cego, mas tem muita vontade. O meu caro amigo sabe bem que o acordeão é um instrumento sensível e que chega a sofrer quando o contrariam. E o cego Gaudêncio, quando lhe chega a mostarda ao nariz, dispara em todos os sentidos. Ou seja, toca tudo e mais alguma coisa. Reconheço que as três doninhas domesticadas que trouxe da sua Galiza são obedientes e grandes bailarinas, mas andam sempre atrás do meu coelho com más intenções.” “Também eu sofro muito. Sofro quando olho para a Madame B. É tão fixada em ti que me leva a desconfiar de alguma coisa. Estranha.” “Por favor, Dom Camilo, não se ponha agora com as suas extravagâncias.” Ele, o Dom Camilo, gosta de contrariar a nossa menina. Ulisses foi, com outros rapazes, apanhar lenha para a fogueira. É precisa muita lenha. A lareira do castelo é enorme. Pôs-se de repente muito frio e começou a nevar. Qualquer pessoa habituada a estas coisas diria que vem aí o Natal, mas não é verdade. Alice ouve a neve a bater nas vidraças. E espanta-se com esse som suave e tranquilo. Parecem os beijos que lhe dá Madame B.

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