673 - Pérolas e Diamantes: Ainda me lembro...
Ainda me lembro quando me deitava a ler Dostoiévski. Dessas noites frias. Dessas noites brancas. Dessas noites em branco. Foi um dos primeiros atos deliberados e conscientes que ajudaram a definir o meu mundo. Foi como se a Terra tivesse parado. Engoli muita daquela prosa inquietante em grandes tragos. Foi a primeira amostra que eu tive da alma humana. Dostoiévski foi o primeiro escritor a revelar-me a sua alma, se é que teve apenas uma. Provavelmente eu já seria um rapaz um bocadinho estranho, mas com Dostoiévski tornei-me decidida e irremediavelmente um ser excêntrico. Esses acontecimentos são, provavelmente, irrevogáveis. Senti-me então só no mundo. A solidão atingiu-me como um tornado. Senti-me estranho no meio da minha própria gente. As vagas de solidão continuaram a atingir-me como se estivesse a nadar numa praia de literatura. Tudo doido e eu, cansado, a tentar lutar contra o meu mundo. Entre o tudo e o nada. Os meus sonhos passaram a ser como metamorfoses. Sonhos e mais sonhos. Sonhos dentro de sonhos. Nunca pude jogar o jogo dos snobes. Nunca o fui e nunca o serei. Nunca frequentei esses meios. E a dita sociedade entedia-me e chega a provocar-me enjoo. Aos poucos lá fui à razão. Nós somos a obra-prima do absurdo. A nossa loucura não tem pretexto, pois provém do contexto. Apesar das revoluções, e de outras traições (tradições?) históricas, ainda se continua a rezar a ladainha dos apelidos sonantes. Pois por aí continuam os mitos, as hierarquias, as honrarias. E as subserviências. E as “monarquices”, essa literatura de pechisbeque, essa mitologia imatura, esse snobismo desprezível, esses preconceitos ridículos. A estética é ruim e o encanto duvidoso. Apesar da aparência de modernidade, tudo isto tresanda a mofo. Eles gostam de interpretar o presente com os olhos do passado. São álbuns de outono com folhas secas. Essa gente gosta de pensar que nada mais nos resta do que nos embebermos com o perfume subtil das recordações, com bosques onde cantam rouxinóis antigos. Apesar dos disfarces, sente-se a esfinge da morte lenta e da impotência. As formas são sagradas, não Deus. O seu crepúsculo nem sequer é historicamente justificado. O jogo deles é cantarem para os outros os admirarem. Está na hora de revermos até os lugares-comuns. Não é a velha história que tem de nos impor o futuro. Temos de ser nós próprios a criá-lo. As pessoas sérias não se prestam a papéis de figurantes. Eu, por causa das coisas, cá continuo a escrevinhar. Os sapatos de molde antigo são-me sempre apertados nos pés, fazem-me calos. A mediocridade, por cá, é excessiva. E isso eu não consigo compreender. Eles sempre a declamar as imortais lapalissadas. E lá vamos celebrar porque todos celebram e mentir porque todos mentem. Dizem que a culpa não é das pessoas, mas das situações. Será? Ser e não ser faz parte da mentira. Da dramaturgia antiga. Estou em crer que Rabelais não tinha na ideia ser “histórico” ou “a-histórico”, nem sequer tencionava desenvolver uma “escrita absoluta” e muito menos prestar tributo à “arte pura”. Nem caraterizar a sua época. Resumindo, não revelava qualquer intenção, porque escrevia como quem se alivia. Malhava naquilo que o irritava, combatia quem se lhe metia no caminho, escrevia por prazer, para o seu prazer e para o prazer de quem o lia. Escrevia o que lhe vinha à cabeça. Apesar disso, ou por isso mesmo, expressou, melhor do que nenhum outro, a sua época e até pressentiu a época vindoura, criando uma arte pura e, por isso mesmo, eterna. Ao exprimir-se com inteira liberdade, condensava a essência eterna da humanidade e de si próprio, enquanto filho da sua época e profeta dos tempos vindouros. O conselho que ainda hoje mais me convence é: “Escreve o que te dita o coração.” Não devemos abdicar nunca da nossa própria verdade, pois de outra forma renunciamos provavelmente ao único heroísmo em que assenta o orgulho, a força e a vitalidade da literatura. Estou, estamos todos, já um bocado fartos de poetas que se dizem prosadores, de santos que se sentem rebeldes, de clássicos que dizem ser aparentados à vanguarda, de patriotas apátridas, de ativistas sociais que se identificam como eremitas. É uma perda de tempo andar a tentar explicar o óbvio.