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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

29
Abr24

680 - Pérolas e Diamantes: Esta vida de reformado...

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 8 (5).jpg 

Um dia destes dei por mim a pensar o que as pessoas andariam a pensar. Talvez em assuntos pouco importantes. Imaginava-as concentradas. Muitas inocentes. Outras convencidas. Muitas cheias de certezas. Outras repletas de incertezas. De facto, a maioria delas é faladora. Mas poucas pessoas são fazedoras. A vida, na maior parte do tempo, é uma grande chatice. Muitas conversam, porque pensam que têm algo de interessante para dizer, mas a maior parte resmunga, porque não sabe fazer outra coisa, e também por causa da economia e dos políticos em geral. Depois pensam, as citadas pessoas, nos fantasmas das coisas passadas e nas oportunidades perdidas e… A verdade é que comecei a ficar aborrecido e tentei deixar de pensar. Mas não consegui. Depois tentei deixar de conseguir. Mas também não consegui. Qualquer altura é boa para tomar uma atitude. Mas a verdade é que o frio não ajuda. Tento então pensar na Revolução Francesa (de facto, eu tenho um pouco a mania das revoluções) e tentar entender as suas causas e, ainda, tentar perceber o século em que se deu. Como música de fundo oiço a peça minimalista das raquetes de ténis a bater na bola de um qualquer jogo transmitido pelos canais desportivos. O interesse é mínimo e a chatice máxima. Mas não me queixo. Esta vida de reformado está a dar cabo de mim, raparaparaparaparaparaparim, esta vida de reformado está a dar cabo de mim, raparaparaparaparaparaparim, hey… Por vezes saio de casa de bom humor e regresso a ela de mau humor. Outras saio dela mal humorado e regresso com um humor do caraças. Há dias assim! Depois lá torno às rotinas e, por descuido ou pura distração, volto a encontrar-me com aqueles que ou falam de impostos ou de política. Finjo então pressa ou tarefa inadiável e dali me vou até onde possa descansar a paciência. Homem prevenido vale por dois. Há gente erudita que enquanto fala se assemelha aos gatos mansos depois de enfardarem meia dúzia de canários. Também existem pretensos fidalgos que consideram que o passado é muito mais importante do que o presente. Estes, diga-se em abono da verdade, são os que possuem um mau feitio incomodativo. Como diz o povo, uns pintam a manta e outros o mesmíssimo Diabo. E por aqui andamos todos a fingir entusiasmo. E a discutir os infortúnios do mundo. E as ementas saudáveis. E o aquecimento global. E os direitos dos animais e dos LGBT+. Nestes debates aparecem sempre aqueles que fazem perguntas idiotas sobre assuntos importantes e também aqueles que fazem perguntas bastante sensatas sobre assuntos idiotas. É a vida. Muitos deles são dos que ficam com uma expressão vazia por não terem encontrado interesse ao lerem Candide ou O Deus das Moscas. É sempre difícil mostrar-lhes como a literatura pode fornecer ferramentas para a vida. Por vezes põem-me de lado. Por vezes é bom ficar à parte. Acusam-me de mudar de ideias. Eu digo-lhes que só muda de ideias quem as tem, caso contrário é impossível. Já deixei de tentar entender o mundo. Bebo o meu chá em silêncio. Penso nuns e noutros e reconheço que as várias posições e incongruências têm os seus atrativos. E aqui estou, no quarto de um hotel com vista para o mar e para uma praia com pouca areia. A aborrecer-me. Os meus pensamentos começam a andar em círculos. Não admira que me sinta tonto. Tudo na vida é uma questão de tempo. Até a morte e a metafísica. E o colesterol e a hipertensão e a diabetes e os problemas nos joelhos. Todos nós rodeados de turistas que olham fixamente para as montras ou visitam as igrejas e fotografam tudo o que mexe e remexe. A verdade é que esta vida de reformado me tem provocado as mais variadas emoções. Acho que agora percebo melhor o pacifismo de Tolstói, o budismo, a infância, as montanhas russas, Woody Allen, as mudanças filosóficas e mesmo as opiniões incertas. Até já encontro significado em algumas abstrações. Podemos não ser simpáticos uns para os outros, mas somos deferentes. Deferentes e indiferentes. Nós conseguimos combinar bem ambas as coisas. Temos que abrandar a decadência para um ritmo que nos permita acompanhar o presente sem desesperar. E tentar perceber as ameaças globais às florestas tropicais, à vida selvagem, às baleias, aos ratos-de‑água, aos polvos bebés, etc. E tal. Agora temos de nos assegurar que somos pessoas higiénicas, não alcoólicas, não racistas, anti-homofóbicos, admiradores dos Beatles. Mas, que Deus me perdoe se é que pode, ainda não consigo distinguir lá muito bem um sherry seco de um martini extrasseco e ambos e dois de um porto tawny branco extremamente delicodoce. Depois da experiência, vou precisar de um exorcismo.

25
Abr24

Poema Infinito (711): Os dias fatiados

João Madureira

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A vida dos outros tinha uma dinâmica própria. A minha parecia que não. Nas noites de vento e chuvosas, as cordas de secar a roupa batiam no zinco da parede e produziam uma cadência musical inexpressiva e assintomática. Nessas noites, deitado na minha cama, debaixo de cobertores mais pesados que quentes, ouvia outros barulhos que não me davam sossego. Éramos jovens e pouco sabíamos. As surpresas eram raras. E as que surgiam, na sua maior parte, não eram lá muito agradáveis. Os dias eram fatiados, cheios de buracos, túneis, caminhos e portões. E lenha para pitar. Estavam sempre fora das histórias que ouvíamos contar. Nos montes, fruto da minha imaginação, os duendes escavavam minas e faziam circular a água pelos regos que serviam para regar o milho e as batatas. Ou os feijões, as cebolas e os tomates. Eram os obreiros dos jericós da aldeia. A escola era uma tribo caótica onde se sofria muito para aprender. Eu tinha dentro da cabeça muitos super-heróis. E nenhum deles era parecido com o meu professor. Copiava das revistas os desenhos mais expressivos. E escrevia pequenos textos incongruentes, mas já ligeiramente hiperbólicos, desiludidos e tristes. Ou desalmados e carentes de fé, esperança e caridade, como pregava o senhor abade. Queria ganhar tempo mas a minha mãe dizia que o andava a perder. A minha mãe nunca me percebeu lá muito bem. Nem eu a ela, verdade seja dita. Sei que gostava de ir para os montes gritar como as lobas. Ou que se sentia vingada quando isso afirmava. Não sei de onde lhe vinha tanta raiva. Nem para o que lhe servia. Por vezes rebentava num choro compulsivo cheio de desculpas e contradições. O meu pai fumava e tudo lhe desculpava. O que sei é que aquela dor era mesmo dela. À sua maneira, tanto o pai como a mãe eram os meus super-heróis de proximidade. A mãe era a heroína da força de vontade. E, por vezes, do desalento. E do chinelo corretivo. O pai era o herói da tolerância e da indiferença. Pouco tinha e de pouco necessitava. Esse superpoder irritava muito a minha mãe. Estes superpoderes eram tão óbvios que eu só mais tarde é que os reconheci. Nos verões da minha infância, a mãe usava um vestido de manga cavada, cor-de-rosa, com malmequeres e gipsófilas estampadas, usava ósculos tipo vespa, sapatos altos e o pai substituía a farda cinzenta por um fato azul impecavelmente engomado, que o fazia parecer o Alan Delon em férias na província. A mim enfarpelavam-me com um conjunto de camisa e calções amarelos, sapatos de verniz. Fazia parte da tradição irmos a Chaves tirar a fotografia de família. A minha irmã Rosa também nos acompanhava, vestida de branco, com a sua cara zangada. A falta de entusiasmo tinha a sua razão de ser. Lembro-me muito bem das flores azuis que havia no meio do feno, de me sentar à sombra, junto ao riacho, de reparar em tudo o que se passava na copa das árvores. Pássaros a discutirem uns com os outros e os outros animais a cuidarem da sua vida sem se importarem com mais nada. O que me deixava pasmado. Eu tentava perceber a maneira correta de fazer as coisas. Era a minha forma de agradar aos meus pais e à família mais próxima. E também fazia as minhas orações que cada vez mais tinham um sabor a bolachas de água e sal e a óleo de fígado da bacalhau. Mas tudo o que não mata, engorda. Não é, mãe?

22
Abr24

679 - Pérolas e Diamantes: Depois dos safanões...

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 3 (2).jpg 

Depois dos safanões e das melodias insinuantes, dos combustíveis argumentativos, das lamúrias, das diferenças e das indiferenças, das intenções políticas, louváveis, e dos instrumentos de composição, a monotonia povoa-nos os enganos. E os desenganos. A ironia é amarga. Toda a ironia é amarga, mas pode ser eficaz. Por vezes perdemos o medo e ganhamos ira. E outras adquirimos a ira e perdemos o medo. Temos de inverter a equação tradicional. Claro que é muito difícil conciliar os filmes de Don Siegel com a ligeireza antinazi de Música no Coração. E eu à procura do Tenente Blueberry. Muitas vezes o li em tardes de chuva com o gosto, ou o desgosto, de me enfiar em labirintos. E eu sem bússola. Há sempre encontros… bons e maus. Bons ou maus. Vivam, então, os lugares-comuns do idiotismo. A revolução era viciosa mas, caros amigos e inimigos, a contrarrevolução é ainda pior. Daí o triunfo das drogas sintéticas em detrimento das outras. O último moicano ainda faz parte dos meus pesadelos de adolescente. E o Errol Flynn aos pontapés ao Rato Mickey. Corin Tellado ainda vai ser tese de doutoramento elogiosa de algum adulador de Philip Roth. A vingança serve-se fria como um bife saído do frigorífico de um talho kosher ou halal. E os cobóis e os índios navajos a dançarem e a baterem palmas e a darem beijos distraídos uns aos outros. E o tenente Blueberry a tocar o seu clarim para espantar a caça. Ou nem tanto como isso. Melhor é colecionar cães de porcelana. São chiques e não fazem chichi. As ditas novas vagas não passam de velharia reciclada. Quanto ao que a música diz respeito, vendo, ou melhor, ouvindo o que por aí se toca e grava, lembro-me amiúde das palavras do velho poeta inglês Coleridge (1772-1834): “Os cisnes cantam antes de morrer – e não seria mau / Se certas pessoas morressem antes de cantar.” Há gente entendida que diz que alguma música é melhor do que soa. Claro que questiono tal afirmação, mas quem sou eu para discordar. Verdade seja dita, sempre desconfiei dos apreciadores de Marino Marini. E lá estão os de sempre a obedecer ao espírito da manada. A mediocridade é disciplinada. Toda esta modernidade de pacotilha está em ponto-morto. Não atropela mas também não deixa avançar. Todos estamos à espera que a procissão passe. Os andores são os de sempre, luzidios e sem pó visível a olho nu. Então que avance. Vivam os meias-tintas. Os calimeros desfilam no fim para fechar o préstito. Eles e os escuteiros enfiados dentro dos seus calções, de lenço tabaqueiro ao pescoço e com aquele chapéu que é o conceito mais aproximado de desaprendizagem ritual. E o Corpo de Deus desfila sob o toldo da indiferença. Há pessoas que parecem lacrimejar, outras lembram a solidão, mas provavelmente são felizes. Eu já não sei se a fé está nos textos ou nas pessoas. Mas também a quem é que isso interessa? O aquecimento global é geral. E olhem que o problema não se resolve com rezas ou com atentados realizados com bolas de tinta contra as paredes ou contra os casacos e as camisas dos ministros. E eu a agarrar-me, como posso, aos pontos de interrogação. E os outros a safá-los com borrachas íngremes e a colocarem no seu lugar pontos finais. E parágrafo. Tudo incerto como se fosse certo. Tudo mentira como se fosse verdade. Sempre a apostarem na colocação de freios, como se fosse preciso travar logo no momento do arranque. Pode parecer estranho, mas muitas vezes não conseguimos saber se aquilo que vemos é aquilo para onde estamos a olhar ou é aquilo que queremos ver. Dizem que há um ditado, provavelmente apócrifo, que diz “lá por eu ser paranoico, não quer dizer que não exista por aí uma conspiração contra mim”. Pode ser presunção minha, mas o tom é suave. A mim não me afetam as retaguardas morais. Claro que os conspiradores atualmente parecem pacificados, domesticados, e até bons homenzinhos. É mesmo divertido vê-los disfarçados de santos populares. Antes tocassem realejo e pintassem paredes, como antigamente faziam. Agora andam de bicicleta e de canivete no bolso para descascarem as maçãs biológicas que compram na feira das varandas. A verdade é que para gente tão ideológica falta-lhes o essencial, a ideologia. Nos tempos que correm, até os lugares-comuns são preguiçosos.

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