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Fragmentos do Big Bang caem em cima de nós como areia do deserto. A Torre de Babel ficou soterrada. E nós impávidos e serenos. Como quem chora de impotência. Tudo incomoda os deuses: árvores, crianças, cães, gatos, burros e porcos. E nós a chupar palavras como se fossem sorvetes tóxicos. Eu não vou à terra já desde o incêndio das poulas e do pinhal. Esqueci-me de tudo. De viajar de comboio. Do nome das estações. Da luminosidade dos vales. Das reminiscências. Do musgo para os presépios. Das folhas dos azevinhos. Das cantilenas da avó. E da mãe. Da indiferença do rio. Das lascas de luz a entrarem pelas frinchas das paredes de tábua. E a tragédia familiar a estremecer. Julgava-me pronto a abraçar a normalidade, mas não consigo. No entanto, a fascinação permanece e também os trilhos campestres orvalhados, a plenitude dos caminhos, as quebras do silêncio e a adstringência provocada pelo vinho tinto. Nós a sentirmos a potência íngreme dos montes. O objetivo da natureza é existir. Ainda tenho na boca o sabor demasiado doce dos rebuçados da Régua quando vínhamos de Lisboa visitar a família. À aldeia. Eu punha então cara de comunhão solene, que o padre me ensinou, para espanto de todos. E fingia perceber o mundo. Depois o avô morreu e a luz do sol começou a colapsar. As badaladas do sino da igreja ainda hoje me fazem estremecer de dor. Até os pássaros se vestiram de luto. E a mãe a chorar como se não houvesse amanhã. Odeio rebuçados da Régua e badaladas de sinos. Gosto de ouvir pingos de chuva e o violoncelo de Rostropovich. Depois estudava a angústia que estava sempre cheia de acentos circunflexos. O som dos violinos provoca-me tonturas. E embaraça-me. Assim como o cheiro da graxa quando puxava o lustro às botas e às polainas do pai antes de ele ir para o serviço. O pai enfrentava o mundo sempre com o calçado a luzir, o chapéu bem composto na cabeça e o sabre pendurado no cinturão por cima do casaco da farda. Por vezes via-o gotejar restos de um sorriso sereno. Já a avó cheirava a hortelã e a ervas frescas que ela ia colher ao monte para alimentar os coelhos. Agora a minha imaginação rodopia como um dervixe em dança perpétua. E nós, os néscios, a tropeçarmos nos buracos da realidade. Há flores que encontram sempre os ângulos mais favoráveis dos jardins. E eu a decifrar voos. Sou fã dos pré-rafaelitas porque tentaram devolver a inocência ao olhar. O brilho das estrelas também cansa. E a mesmíssima insignificância. Quero aprender a dizer xô às falhas básicas. E a generosidade a abrir o deslumbramento do sacrário. E de tudo o que há lá dentro. Um cálice dourado vazio, ar, pão ázimo e vinho para servir às colherinhas. O céu hospeda o desalento da monotonia. A pomba do Espírito Santo voou com os pombos para outro pombal. Apenas os artistas conseguem voltar à casa em ruínas da infância. E magoarem-se. Eu debaixo da macieira a remoer o pecado e a mastigar o silêncio. É estranha a perfeição deste mundo. Imperfeito. E a flor do desejo a boiar no cimo de um poço fundo cuja água rega todo o jericó disponível. O vento desprende-se das esquinas e começa a abanar as árvores do jardim. Não é avisado procurar o sentido da vida no meio das aldeias devastadas. O Espírito Santo ficou translúcido e esvoaça pela nave da velha igreja. Como um pássaro cego. Sento-me então numa pedra a escutar o rumor sagrado do regato.
Por vezes dou por mim satisfeito pelo vazio que carateriza a província. Pelo facto de alguns loucos continuarem a desafiar o destino. Pela beleza telúrica das pedreiras a céu aberto e a das minas que estão para chegar. Dos pequenos cantos. E a questão existencial a impor-se: ser ou não ser. Provinciano. O romantismo é patético, mas saboroso. E o discernimento dorme um sono retemperador. Portugal continua a ser o melhor país do mundo. Ou quase. Há por aqui muita gente sensata, talvez um pouco fútil, mas! Todos temos os nossos limites. O cabrito estava bom e o vinho não lhe ficou atrás. Abençoado país. Abençoada província. Os melhores de todos nós usam camisolas polo, mantêm uma silenciosa admiração enquanto escutam e até nos olham fixamente através dos óculos de sol. Saber beber faz parte da sua esmerada educação. E saber estar. E saber esperar a sua vez. Isto tudo enquanto por cima das nossas cabeças lindos e aerodinâmicos drones fazem grandes planos do casario e das suas relíquias históricas. E depois chegam as televisões, ainda mais provincianas que a própria província, e filmam os miúdos e os graúdos, todos a dançar e as bandas a tocar. E filmam também as missas cantadas nas capelas. E o senhor abade a sorrir ou a levantar a hóstia consagrada. E Cristo por ali aos embolões. E não podem faltar os bandos de aves a sobrevoar a paisagem e a enfiarem-se pelo televisor dentro. Depois de tanta agitação cultural, musical e gastronómica, acabamos por nos sentir mal. Mas, como tudo isto é uma questão de interesse filosófico, só nos resta colaborar, tanto de forma literal como metafórica. Um pouco daquilo de que gostamos faz-nos sempre bem. Quando o temperamento começa a ficar incerto, então é o cabo dos trabalhos. Sim, eu sei, há muitas formas técnicas de aliviar a frustração, umas mais técnicas e outras mais filosóficas, mas, bem, prefiro ficar-me por aqui, pelo menos por agora. Tudo isto me leva a pensar nesta nossa nova juventude, na sua ousadia em usar calças de ganga rasgadas ou remendadas e com o cabelo ou muito comprido ou quase inexistente. Ou seja, esta rapaziada não é de meias tintas. Jovens asseados e com bons cortes de cabelo estão fora de moda. Esses riam de forma discreta e fumavam cigarros feitos com folhas de tabaco pitado, como se fossem verdadeiros atores ou atrizes do cinema francês. Os de agora, chupam uma espécie de máquina colorida e parece que engolem todo o fumo, não desperdiçando nada. Deve ser para evitarem o desperdício, motivados pelas novas leis ecológicas. Honra lhes seja feita, a nova rapaziada não só é bem informada, como é coerente. Claro que, com as guerras e o aquecimento global, o seu futuro ainda está em balanço. Mas logo se verá. A esperança é a última a morrer. Pelo menos era isso que se dizia no meu tempo. Portugal, para o bem e para o mal, continua a ser um dos mais antigos guardiões da antiguidade. Daí a sua intemporalidade. Será que, com a modernidade da nossa juventude, esta nobre nação conseguirá continuar a levantar esse mui nobre e leal estandarte? Apesar de tudo, continuo a pensar que estas novas gerações constituem a cobertura necessária para as nossas incertezas. Já as velhas estão exiladas na província onde os seus representantes mais exímios e talentosos residem nas velhas casas senhoriais passeando os seus cães de caça rafeiros resultantes dos cruzamentos extemporâneos entre bulldogs e cães pastores. Alguns ainda conseguem ir até Benidorm aturar os filhos e o netos a passar férias ao sol. A tática da dissimulação é sempre a mesma. Os subterfúgios é que são diferentes. Tudo junto resulta numa enorme chatice. A verdade é que a velha geração provinciana prefere viver entre camponeses rústicos do que conviver com veraneantes ruidosos e perfeitamente banalizados. A velha geração é filha da boa vontade. E a nova da esperança desorientada. Tudo lhes serve. E nada lhes serve. Sentem-se sempre insatisfeitos. Já os da velha geração perderam quase tudo, sobretudo o encanto de se julgarem importantes. E também o sentido de humor. Viver na província sem sentido de humor é difícil. Mesmo muito difícil.
Pousa a luz do sol sobre as árvores. Não os pássaros. Caem as folhas com o acompanhamento da música de Ray Lema. Transcendance. Pois que assim seja. Bright Shadows, Anne Paceo. Que assim seja. Pois. Que assim seja. Nehanda. Bateria e saxofone. Strangers? Estrangeiros somos nós todos. Entretanto os livros vão naufragando e as aldeias desaparecem como se fossem almas danadas. Todos estamos à espera da solução final. Todos somos agentes secretos em universos proibidos. Todos somos o Padre Cruz das borboletas. Formigas que desprezam outras formigas e o próprio formigueiro. E eu com vontade de me reunir com Corto Maltese em Samarcanda. As boas abelhas trabalham longe das trovoadas. Dizem que as velhas raposas também choram. Somos como leões negros no meio da neve. Ou como um frango do aviário entre a fauna da Tasmânia. Dizem que Lenine foi à Lua, mas estou em crer que não regressou. Todas as paredes da realidade possuem brechas. Por elas entra a água da desilusão. O tempo a gotejar em pérolas transparentes. Este sonho não me permite voar sem ti. Parece uma ode marítima que nos enternece. Depois chega a estranha sensação da ausência. Tudo fora das paisagens, em agonia, como se o mundo fosse uma espécie de lua sibilante. Todo o dia, tudo aos tombos. O desprezo. O luxo. O riso. Os astros parecem feitos de papel machê. Os que habitam este mundo possuem a peregrina ideia de julgarem as pessoas que vivem num mundo paralelo, do outro lado do espelho. Ao velho porto chegam barcos carregados de vento. As certezas vão-se acanhando com a idade. Tudo a ser cozido em lume brando, a verdade, o amor, as ilusões. Os velhos marinheiros ficam com os olhos azuis de tanto olharem o mar. E com a pele rendilhada por causa do sol. Disseram-lhes que vale a pena esperar. E eles acreditaram. Os pássaros levantam-se da terra. Mil olhos a contarem mil pássaros. E os marinheiros a acreditarem em mil histórias. Ninguém consegue perceber o silêncio admirado que lhes goteja da boca. As recordações permanecem, espalhadas pelo velho casario. Os antigos plátanos empurram o inverno um pouco mais para o lado. O ensejo devorou os velhos trilhos. Já não há tempo para longas viagens. Esta pátria que nos abafa com as suas histórias já era assim antes das autoestradas, antes das estradas, antes dos caminhos, antes dos mosteiros, antes das igrejas, antes das capelas, antes das naus, antes dos castelos, antes dos fortes, antes dos castros. Eles sempre a soprarem mentiras sobre o mar. A virem buscar os melhores para os levarem para longe, para sítios onde não fazem falta nenhuma. Nada de substancial mudou. Apenas as tardes milenárias revelam alguma da fúria que rasgou o chão até o tornar nu. Também as memórias se transformaram em ruínas. Os que por cá ficaram foram obrigados a ajudar os anjos a estenderem as ondas até à borda das praias. E a sentarem-se quietos e calados a vigiarem as sombras. E a guardarem em arcas os velhos desenhos das pegadas, das asas e dos voos das aves. E a enxotarem os meninos que vinham apanhar conchas nas marés vazias. Nos dias santos deixavam as praias frias e desertas como agora estão. Mas eu não regressei a este lugar para ouvir lendas e lamentos. Mas sim para escutar os recados do silêncio. Dentro desse silêncio está toda a verdade possível. É impossível.
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