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O sucesso, nestes tempos anacrónicos e pós-modernos, vale mais do que a honra, a verdade e a competência. Por outro lado, os brandos costumes são ridículos. E as insónias são íntimas. O bem, caros amigos, não se faz à força. As boas ações dos escuteiros são para inglês ver. Há também os engraçados, aqueles que se enchem de graça por causa da desgraça de outros. Será que o bem deve ser sempre defendido, seja qual for o risco? A mim ensinaram-me que sim. Mas hoje tal aforismo é vítima da democrática dúvida metódica. Agora é tudo mais jardins, relva, árvores, flores, piscinas, cães, gatos. E carros elétricos. E gente apaixonada pela física dos cliques. Daí não vem nenhum mal ao mundo. Pudera. Estrabão disse que esta nossa gente vivia de alarmes e assaltos contínuos, arriscando a vida em investidas, mas não em grandes empresas, pois eram incapazes de aumentar as suas forças juntando-se uns aos outros. Isto já nos tempos antigos. Por cá, os reacionários são verdadeiros e os liberais de pacotilha. Os primeiros são fascinados pelos círios. Os outros pela demagogia. O nosso zelo ideológico, sempre estudado em livros traduzidos, nunca passou da leitura das badanas. Da capa à contracapa, sem passar pelo aborrecimento da papelada constituída pelas páginas interiores. Esta gente prazenteira medra com os elogios e vive de simples fogachos. Os feitos em si são de pouca monta, mas o alarde feito à volta deles é sempre de arromba. Os portugueses são bons a esconjurar o azar, mas nem por isso a sorte lhes costuma bater à porta. Tudo neles é instintivo. Emotivo. Os discursos bem argumentados são tarefas para outros. Afinal, parece que já não há inferno e céu, apenas um purgatório pacífico, seguro e confortável. Isso é o estado social. Temos de nos habituar ao amor. Faz parte do mundo moderno o máximo de simpatia com o mínimo de incómodo. Há pessoas a quem a honestidade parece uma coisa impiedosa e quase insuportável. Mas, como dizia Heraclito de Tarento, citado pelo bom Rabelais, deve-se cortar a corda do navio ancorado em vez de se perder tempo a desprendê-la, isto, claro está, quando a necessidade nos apressa. A prudência lusa é parecida com a daqueles atenienses que só conferenciavam depois de tudo estar consumado. Daí o aforismo do futebolista tripeiro João Pinto, citado pelos pândegos de Lisboa: “Prognósticos só no fim do jogo.” E aí está a saudade. A bendita saudade da velha e pobre casa familiar, das chaminés da aldeia a fumegar, do rio da nossa terrinha, das pequenas colinas e das brisas serranas. Ai esta saudade dos velhos costumes, das ancestrais tradições e das paisagens simples e estáveis! E aí está a província a tornar-se obsessiva, saudosa de que se repita o passado. Já o poeta desdenha a província. E a província desdenha o poeta. E daqui não se sai, daqui ninguém nos tira. Vista de longe, a província é simples e cor-de-rosa; vista de perto evidencia cores mais sombrias e asperezas que a saudade tenta disfarçar. E aí estão os desconchavos modernos a desabar sobre a província. Ai que saudade dos pastéis de bacalhau sobre pires de plástico, dos cotos de presunto enegrecidos pelo tempo e dos carapaus de escabeche com vários dias. E das conversas pachorrentas. E do zumbido das moscas. E dos copos de tinto servidos em cima do balcão. E do jogo do sapo. O centro da família costumava ser a criança, o porco e as galinhas. Agora é o bife de peru e o cão ou o gato. Claro que as crianças ainda são mimadas, conjuntamente com o cão, o gato e o periquito. E até há brinquedos para todos. Apesar de ainda se esbracejar durante as discussões, sobretudo nas familiares, à procura de consolações e certezas, a verdade é que a metafísica vai rareando e as religiões se vão aniquilando umas às outras. A política e o futebol ficam fora de portas. Sim, afinal todos temos saudades das costureiras, dos alfaiates e dos sapateiros remendões. E de reis e princesas. E de Salazares e Caetanos. E de pobres reais e verdadeiros, daqueles que andavam rotos pelas ruas e cheiravam mal. Provavelmente o snob Evelyn Waugh tem razão: “É arrogante e imprudente esperar que as classes baixas falem verdade.” Ai esta tendência para a subserviência. Este apelo primitivo pela servidão.
Neste deserto não existe uma única sombra até onde os olhos avistam. Não tem marcas de cronologia. Nem história humana. Ou divina. Tanto pode ser o começo, como o fim do mundo. Não há seres humanos. Nem cavalos. Ou lobos. Apenas criaturas. Literárias. A terra dilui-se no céu. A ordem natural das coisas é violenta. A ideia de arrumar o caos é civilizadora. A sua geologia é o próprio medo. São os cegos aqueles que mais abrem os olhos. O menino lê o destino de ser homem. As explosões são internas. Os movimentos da alma conseguem sequencializar as emoções, definindo as expressões máximas de espanto, sofrimento, terror e alegria. Daqui vê-se o invisível macaco morto de um quadro de Rembrandt. Todos os mais de cinquenta autorretratos do pintor olham na sua direção. Todos os deuses partiram, deixando o céu vazio. Foram reunir-se para outro lado. Os deuses têm poder. Por isso pensam que possuem uma grande alma. Alguns humanos pensam o mesmo. George Orwell também por lá se passeia, desempenhado o papel de secretário de um Deus todo poderoso. Anda a escrever o Triunfo dos Deuses, que é uma espécie do Triunfo dos Porcos, com outras personagens. Por aqui a vida continua. Ligeiramente triste. Faz tudo parte da insciência da tradição. Todos a caminharmos para o abismo com o auxílio de bengalas, ou muletas. Foi há muito tempo, e noutro lugar, que a avó aprendeu a depositar morangos silvestres, embrulhados com a sua luz estival, dentro de frascos de conserva. Tudo agora é póstumo: as mesas compridas que serviram para as bodas da família, as porcelanas e as faianças, as prateleiras de madeira, as panelas, as frigideiras, os bules do chá, os armários polidos, as camas arrefecidas. Tudo em ferida. Buracos negros. Fotografias amarelecidas e enfiadas dentro de envelopes gastos. E a memória a perder a esperança de não se afundar definitivamente. Já ninguém consegue contar uma história a partir destas imagens. Os objetos perderam peso. Todos fomos apanhados de surpresa pelo tempo. Tudo a arrefecer devagar da antiga presença humana. A casa parece um barril lacrado com uma mensagem dentro. Tudo a perder volume. A simplificação das memórias tornaram-se imperativas. Essa é a sua lógica. Os ângulos arredondaram-se e as lacunas começaram a preencher-se sozinhas. A narração sobre o passado pode muito bem transformar-se na narração do futuro. As fotografias tanto podem mentir como dizer a verdade. Homens com chapéus e bigodes, mulheres com chapeuzinhos, de saias compridas e sorrisos curtos. Raparigas e rapazes de olhares penetrantes. Crianças com orelhas de abano. É daqui que eu provenho. Um silêncio atrás do outro. Todos olham para mim como se eu fosse um vidente de espíritos. As semelhanças entre mim e eles são imperfeitas. É de família, na meia idade todos sofremos de uma ligeira depressão crónica. Tudo nos foge da mão. Tudo perde velocidade. Os objetos destruíram o seu lugar e não encontraram outro. Apenas conseguimos “desobservá-los”. A fantasia transformou-se em medo. Trabalhar no território do passado tem os seus riscos. Se permanecermos muito tempo lá é difícil sair dele ileso. No entanto, a água que corre no rio perto de casa continua a gorgolejar em volta das poldras onde todos costumávamos atravessar.
Acordei mal disposto. Hoje deu-me para o cinismo e logo de manhã dei com um tipo irrisório que foi capaz de citar, num mesmo discurso, as evidências práticas dos pequenos comerciantes e frases de Nietzsche. Este tipo de indivíduos impressiona-me. Depois são mesmo capazes de virem com o argumento, mais que estafado, da fome no mundo e dos direitos do homem. O salvamento moral consiste em assumir a responsabilidade concreta de um ente mais fraco. Para isso, até um animal doméstico serve. Alguns dias, e eu que o diga, fico com a consciência ainda mais nítida da doença, da fraqueza e da morte. Quero pensar que sou compreensivo e mesmo dotado de inspirações coincidentes com a bondade. Não quero jamais renunciar à humanidade, ao amor, à simpatia, à estima, à compreensão mútua. Com a idade sinto-me animado a ter relações humanas cheias de intenções caridosas e amigáveis. E em ficar feliz por ver toda a gente. Feliz. Bem, melhor dizendo, quase toda. Não devemos nunca renunciar a um pouco de sinceridade. A atitude humorística deve ser deixada aos bobos. O problema é quando, como diz Schopenhauer, o instinto sexual morre, pois, a partir daí, está consumido o verdadeiro núcleo da vida. É do filósofo a seguinte metáfora aterradora: “A existência humana assemelha-se a uma representação teatral que, iniciada por atores vivos, terminasse com autómatos vestidos com os mesmos trajes.” Bem, pela parte que me toca, eu não quero tornar-me num autómato. Como escreveu Dostoiévski, eu quero continuar a sentir o sabor da “vida viva”. Sim, eu sei, nós somos seres incompletos, mas, apesar de tudo, a mim custa-me admiti-lo. Ao meu sistema de codificação ainda lhe custa descodificar certas evidências. O meu subconsciente diz: “Vamos divertir-nos à farta.” Mas logo a minha consciência me diz que o meu corpo já não é o que era. Eu tento fazer-me distraído, culpando os princípios de surdez por isso. Dizem que há vibrações especiais, estágios de espiritualidade e outras coisas afins. Mas o meu agnosticismo faz logo o seu papel de grilo falante: “Isso é tudo treta.” Apesar da idade, ainda conservo o humor e o sentido do ridículo. Por vezes vou até à piscina. Depois saio dela. E é tudo. Ou quase tudo. Abstraindo-me da proliferação dos radicais livres, da pontagem do colagénio, da fragmentação da elastina e da acumulação de lipofuscina do interior das células do fígado. Quanto não vale ler Michel Houellebecq e Philip Roth nos feriados laicos ou laicizados e Lobo Antunes e Saramago nos dias santos ou santificados. Outro problema, e que não é despiciendo, é a porra da semântica. Ou a semântica da porra. Se o Bocage fosse vivo isto ia ser o cabo dos trabalhos. Sodoma e Gomorra. E as estátuas de sal. E Jerusalém. Jerusalém, o mesmo mito, o mesmo sonho. E todos nós a enxugarmos todas as lágrimas derramadas. Estas são santas. O tom de voz é flexível e lírico, marcando as pausas delicadas e meditativas. Os crescendos são entusiásticos. Os ecos das Jornadas Mundiais da Juventude continuam a fazer o seu caminho. Tudo isso nos convida a meditar sobre as borboletas. A luxúria apenas está permitida aos grandes artistas e aos seus profetas. Tudo neste mundo pós-moderno se funde: a religião, a ciência, a arte, a criação, o amor, sim, o amor (LOVE em linguagem universal), a diversão, a ternura e o sorriso (SMILE na linguagem atrás citada). Como é bela a vida, meus amigos. Como é bela a linguagem anagógica. Tudo é belo quando bem enquadrado: os gostos, os sabores e até o próprio jejum. O segredo está na arte de mastigar. Devagar. Lembrei-me então desta versão menos escatológica da Vocação Animal, de Herberto Helder (apesar de eu preferir e recomendar a versão original): “Aprendi como é devagar – comer devagar, sorrir, dormir devagar, pensar e morrer – aprendi devagar.” Continuo a gostar de HH apesar da filtragem poética que lhe tira o sabor denso e provocatório. Mas continuo a não gostar do chocolate, por causa da gordura. É a minha homenagem a Nietzsche, cujo pensamento me continua a irritar. Continuo também a tentar lavar de mim as marcas do pecado de Adão. Claro que Deus dispunha de todo o saber-fazer e de método. Mas não havia necessidade. Coitada da Eva. Se calhar era necessário modificar o seu destino ao nível biológico.
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